sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

D. Maria

A mulher gorda chamou-me, deu-me uma cadeira, examinou-me a roupa, o couro cabeludo, as unhas e os dentes. Em seguida abriu a caixinha A branca, retirou o folheto:
Leia.
Não senhora, respondi confuso.
Ainda não havia estudado as letras finas, menores que as da carta de A B C.
Necessário que me esclarecessem as dificuldades. D. Maria resolveu esclarecê-las, mas parou logo, deixou-me andar só no caminho desconhecido. Parei também, ela me incitou a continuar. Percebi que os sinais miúdos se assemelhavam aos borrões da carta, aventurei-me a designá-los, agrupá-los, numa cantiga lenta que a professora corrigia. O exercício prolongou-se e arrisquei a perguntar até onde era a lição.
Está cansado? sussurrou a mulher.
Não senhora.
Então vamos para diante.
Isto me pareceu desarrazoado: exigiam de mim trabalho inútil. Mas obedeci. Obedeci realmente com satisfação. Aquela brandura, a voz mansa, a consertar-me as barbaridades, a mão curta, a virar a folha, apontar a linha, o vestido claro e limpo, tudo me seduzia. Além disso a extraordinária criatura tinha um cheiro agradável. As pessoas comuns exalavam odores fortes e excitantes, de fumo, suor, banha de porco, mofo, sangue. E bafos nauseabundos.
Os dentes de Rosenda eram pretos de sarro de cachimbo; André Laerte usava um avental imundo; por detrás dos baús de couro, brilhantes de tachas amarelas, escondiam-se camisas ensanguentadas.
Agora, livre das emanações ásperas, eu me tranquilizava. Mas não estava bem tranquilo: tinha a calma precisa para arrumar, sem muitos despropósitos, as sílabas que se combinavam em períodos concisos. Dominava os receios e a tremura, desejava findar a obrigação antes que estalasse a cólera da professora.
Com certeza ia estalar: impossível manter-se um vivente naquela serenidade, falando baixo.
A cólera não se manifestou — e explorei diversas páginas. Então D. Maria me interrompeu, fez-me alguns elogios moderados. Pedi-lhe que marcasse a lição. Indicou vagamente o meio do livro.
E o princípio?
Declarou que não valia a pena repisar as folhas já lidas e conservou-me perto dela. Provavelmente era recomendação de meu pai. Ao apresentar-me, exagerara-me a rudeza e a teimosia. Um pretexto: isolava-me, temendo que me corrompesse, permitia-me raros companheiros inocentes. Às vezes esquecia a vigilância, autorizava os passeios ao cercado, onde o moleque José e os garotos vadiavam.
Findo o embaraço, fechei o volume e observei os colegas. A caixa de pinho, a roupa de fustão branco e os sapatos roxos incutiam-me alguma segurança. No íntimo julgava-me fraco. Tinham-me dado esta convicção e era difícil vencer o acanhamento.
Começou vida nova. Semanas e semanas tentei ambientar-me. Não me exibia natural e chinfrim, diligenciava por qualquer modo compensar as minhas deficiências. Exprimia-me deploravelmente. E pouco tempo nos deixavam para comunicações. Na ausência da professora, abandonávamos os nossos lugares, cochichávamos. Vários tipos mostraram-me indiferença ou antipatia, e Cecília, cheia de arestas e orgulhosa, arrepiou-se, empinou-se, a boca torcida, um desdém tão grande nos olhinhos acesos que me desviei vexado, com receio de molestá-la.
Isso me privou de excelentes mestres. Na verdade os melhores que tive foram indivíduos ignorantes. Graças a eles, complicações eruditas enfraqueceram, traduziram-se em calão.
Felizmente D. Maria encerrava uma alma infantil. O mundo dela era o nosso mundo, aí vivia farejando pequenos mistérios nas cartilhas. Tinha dúvidas numerosas, admitia a cooperação dos alunos, e cavaqueiras democráticas animavam a sala. Certo dia apareceu na gaveta da mesa um objeto com feitio de lápis. Lápis graúdo, alvacento numa extremidade, escuro na outra. Que seria?
Toda a aula foi interrogada, examinou o pedaço de madeira, apalpou-o, mordeu-o, balançou a cabeça e estirou o beiço indecisa. D. Maria recolheu-se, ponderou, afinal sugeriu que talvez aquilo fosse medida para Seu Antônio Justino cortar fumo. Seu Antônio Justino cortava sem medida o fumo de corda.
E a raspadeira de borracha, imprestável e sem ponta, ficou sobre a mesa, a desafiar-nos a argúcia, a inspirar-nos humildade, junto à palmatória. A escola exigia palmatória, mas não consta que o modesto emblema de autoridade e saber haja trazido lágrimas a alguém. D. Maria nunca o manejou. Nem sequer recorria às ameaças. Quando se aperreava, erguia o dedinho, uma nota desafinava na voz carinhosa — e nós nos alarmávamos. As manifestações de desagrado eram raras e breves. A excelente criatura logo se fatigava da severidade, restabelecia a camaradagem, rascunhava palavras e algarismos, que reproduzíamos.
Não me ajeitava a esse trabalho: a mão segurava mal a caneta, ia e vinha em sacudidelas, a pena caprichosa fugia da linha, evitava as curvas, rasgava o papel, andava à toa como uma barata doida, semeando borrões. De nada servia pegarem-me os dedos, tentarem dominá-los: resistiam, divagavam, pesados, úmidos, e a tinta se misturava ao suor, deixava na folha grandes manchas. D. Maria olhava os estragos com desânimo, procurava atenuá-los debalde. As consolações atormentavam-me, e eu tinha a certeza de que não me corrigiria.
Uma vez em que me extenuava na desgraçada tarefa percebi um murmúrio:
Lavou as orelhas hoje?
Lavei o rosto, gaguejei atarantado.
Perguntei se lavou as orelhas.
Então? Se lavei o rosto, devo ter lavado as orelhas.
D. Maria, num discurso, afastou-me as orelhas do rosto, aconselhou-me a tratar delas cuidadosamente. Isto me encheu de perturbação e vergonha. Se a mulher me desse cocorotes ou bolos, eu me zangaria, mas aquela advertência num rumor leve deixou-me confuso, de olhos baixos, com desejo de meter-me na água, tirar do corpo as impurezas que ofendiam vistas exigentes. Nunca minha família se ocupava com semelhantes ninharias, e a higiene era considerada luxo. Lembro-me de ter ouvido alguém condenar certa hóspeda que, antes de ir para a cama, pretendia banhar-se:
Moça porca.
A observação da mestra pareceu-me descabida, mas afligi-me, esquivei-me a exames desagradáveis, e à noite dormi pouco. Na manhã seguinte levantei-me cedo, abri a janela da sala de jantar, cheguei-me ao lavatório de ferro, enchi a bacia, vagarosamente, para não acordar as pessoas e o papagaio. Ainda havia um pretume no quintal e silêncio nos quartos. Fiquei talvez uma hora a friccionar-me, a ensaboar-me, até que o sol nasceu e as dobradiças das portas rangeram.
Fui olhar-me ao espelho da sala: as orelhas se arroxeavam, como se tivessem recebido puxavantes. Estariam bem limpas? As mãos se engelhavam, insensíveis, mas isto não tinha importância. O que me preocupava eram as orelhas. Continuei a asseá-las rigoroso, e ao cabo de uma semana surgiram nelas esfoladuras e gretas que dificultaram as esfregações.
A professora notou o exagero, segredou-me que deixasse as orelhas em paz. Desobedeci: havia contraído um hábito e receava outra admoestação, pior que insultos e gritos.
Graciliano Ramos, in Infância

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