A
mulher gorda chamou-me, deu-me uma cadeira, examinou-me a roupa, o
couro cabeludo, as unhas e os dentes. Em seguida abriu a caixinha A
branca, retirou o folheto:
— Leia.
— Não
senhora, respondi confuso.
Ainda
não havia estudado as letras finas, menores que as da carta de A B
C.
Necessário
que me esclarecessem as dificuldades. D. Maria resolveu
esclarecê-las, mas parou logo, deixou-me andar só no caminho
desconhecido. Parei também, ela me incitou a continuar. Percebi que
os sinais miúdos se assemelhavam aos borrões da carta, aventurei-me
a designá-los, agrupá-los, numa cantiga lenta que a professora
corrigia. O exercício prolongou-se e arrisquei a perguntar até onde
era a lição.
— Está
cansado? sussurrou a mulher.
— Não
senhora.
— Então
vamos para diante.
Isto
me pareceu desarrazoado: exigiam de mim trabalho inútil. Mas
obedeci. Obedeci realmente com satisfação. Aquela brandura, a voz
mansa, a consertar-me as barbaridades, a mão curta, a virar a folha,
apontar a linha, o vestido claro e limpo, tudo me seduzia. Além
disso a extraordinária criatura tinha um cheiro agradável. As
pessoas comuns exalavam odores fortes e excitantes, de fumo, suor,
banha de porco, mofo, sangue. E bafos nauseabundos.
Os
dentes de Rosenda eram pretos de sarro de cachimbo; André Laerte
usava um avental imundo; por detrás dos baús de couro, brilhantes
de tachas amarelas, escondiam-se camisas ensanguentadas.
Agora,
livre das emanações ásperas, eu me tranquilizava. Mas não estava
bem tranquilo: tinha a calma precisa para arrumar, sem muitos
despropósitos, as sílabas que se combinavam em períodos concisos.
Dominava os receios e a tremura, desejava findar a obrigação antes
que estalasse a cólera da professora.
Com
certeza ia estalar: impossível manter-se um vivente naquela
serenidade, falando baixo.
A
cólera não se manifestou — e explorei diversas páginas. Então
D. Maria me interrompeu, fez-me alguns elogios moderados. Pedi-lhe
que marcasse a lição. Indicou vagamente o meio do livro.
— E
o princípio?
Declarou
que não valia a pena repisar as folhas já lidas e conservou-me
perto dela. Provavelmente era recomendação de meu pai. Ao
apresentar-me, exagerara-me a rudeza e a teimosia. Um pretexto:
isolava-me, temendo que me corrompesse, permitia-me raros
companheiros inocentes. Às vezes esquecia a vigilância, autorizava
os passeios ao cercado, onde o moleque José e os garotos vadiavam.
Findo
o embaraço, fechei o volume e observei os colegas. A caixa de pinho,
a roupa de fustão branco e os sapatos roxos incutiam-me alguma
segurança. No íntimo julgava-me fraco. Tinham-me dado esta
convicção e era difícil vencer o acanhamento.
Começou
vida nova. Semanas e semanas tentei ambientar-me. Não me exibia
natural e chinfrim, diligenciava por qualquer modo compensar as
minhas deficiências. Exprimia-me deploravelmente. E pouco tempo nos
deixavam para comunicações. Na ausência da professora,
abandonávamos os nossos lugares, cochichávamos. Vários tipos
mostraram-me indiferença ou antipatia, e Cecília, cheia de arestas
e orgulhosa, arrepiou-se, empinou-se, a boca torcida, um desdém tão
grande nos olhinhos acesos que me desviei vexado, com receio de
molestá-la.
Isso
me privou de excelentes mestres. Na verdade os melhores que tive
foram indivíduos ignorantes. Graças a eles, complicações eruditas
enfraqueceram, traduziram-se em calão.
Felizmente
D. Maria encerrava uma alma infantil. O mundo dela era o nosso mundo,
aí vivia farejando pequenos mistérios nas cartilhas. Tinha dúvidas
numerosas, admitia a cooperação dos alunos, e cavaqueiras
democráticas animavam a sala. Certo dia apareceu na gaveta da mesa
um objeto com feitio de lápis. Lápis graúdo, alvacento numa
extremidade, escuro na outra. Que seria?
Toda
a aula foi interrogada, examinou o pedaço de madeira, apalpou-o,
mordeu-o, balançou a cabeça e estirou o beiço indecisa. D. Maria
recolheu-se, ponderou, afinal sugeriu que talvez aquilo fosse medida
para Seu Antônio Justino cortar fumo. Seu Antônio Justino cortava
sem medida o fumo de corda.
E
a raspadeira de borracha, imprestável e sem ponta, ficou sobre a
mesa, a desafiar-nos a argúcia, a inspirar-nos humildade, junto à
palmatória. A escola exigia palmatória, mas não consta que o
modesto emblema de autoridade e saber haja trazido lágrimas a
alguém. D. Maria nunca o manejou. Nem sequer recorria às ameaças.
Quando se aperreava, erguia o dedinho, uma nota desafinava na voz
carinhosa — e nós nos alarmávamos. As manifestações de
desagrado eram raras e breves. A excelente criatura logo se fatigava
da severidade, restabelecia a camaradagem, rascunhava palavras e
algarismos, que reproduzíamos.
Não
me ajeitava a esse trabalho: a mão segurava mal a caneta, ia e vinha
em sacudidelas, a pena caprichosa fugia da linha, evitava as curvas,
rasgava o papel, andava à toa como uma barata doida, semeando
borrões. De nada servia pegarem-me os dedos, tentarem dominá-los:
resistiam, divagavam, pesados, úmidos, e a tinta se misturava ao
suor, deixava na folha grandes manchas. D. Maria olhava os estragos
com desânimo, procurava atenuá-los debalde. As consolações
atormentavam-me, e eu tinha a certeza de que não me corrigiria.
Uma
vez em que me extenuava na desgraçada tarefa percebi um murmúrio:
— Lavou
as orelhas hoje?
— Lavei
o rosto, gaguejei atarantado.
— Perguntei
se lavou as orelhas.
— Então?
Se lavei o rosto, devo ter lavado as orelhas.
D.
Maria, num discurso, afastou-me as orelhas do rosto, aconselhou-me a
tratar delas cuidadosamente. Isto me encheu de perturbação e
vergonha. Se a mulher me desse cocorotes ou bolos, eu me zangaria,
mas aquela advertência num rumor leve deixou-me confuso, de olhos
baixos, com desejo de meter-me na água, tirar do corpo as impurezas
que ofendiam vistas exigentes. Nunca minha família se ocupava com
semelhantes ninharias, e a higiene era considerada luxo. Lembro-me de
ter ouvido alguém condenar certa hóspeda que, antes de ir para a
cama, pretendia banhar-se:
— Moça
porca.
A
observação da mestra pareceu-me descabida, mas afligi-me,
esquivei-me a exames desagradáveis, e à noite dormi pouco. Na manhã
seguinte levantei-me cedo, abri a janela da sala de jantar,
cheguei-me ao lavatório de ferro, enchi a bacia, vagarosamente, para
não acordar as pessoas e o papagaio. Ainda havia um pretume no
quintal e silêncio nos quartos. Fiquei talvez uma hora a
friccionar-me, a ensaboar-me, até que o sol nasceu e as dobradiças
das portas rangeram.
Fui
olhar-me ao espelho da sala: as orelhas se arroxeavam, como se
tivessem recebido puxavantes. Estariam bem limpas? As mãos se
engelhavam, insensíveis, mas isto não tinha importância. O que me
preocupava eram as orelhas. Continuei a asseá-las rigoroso, e ao
cabo de uma semana surgiram nelas esfoladuras e gretas que
dificultaram as esfregações.
A
professora notou o exagero, segredou-me que deixasse as orelhas em
paz. Desobedeci: havia contraído um hábito e receava outra
admoestação, pior que insultos e gritos.
Graciliano
Ramos, in Infância
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