sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Um personagem diabólico

Para complicar minha vida o governo da Frente Popular do Chile anunciou a chegada de um encarregado de negócios. Alegrei-me muitíssimo, uma vez que um novo chefe na embaixada poderia eliminar os entraves que o antigo pessoal diplomático tinha me prodigalizado em relação à emigração espanhola. Da Gare Saint Lazare desceu um rapazola magro, de óculos sem aro (pince-nez), que lhe dava um ar de velho ratinho de biblioteca. Teria uns vinte e quatro ou vinte e cinco anos. Com voz afeminada e aguda, entrecortada pela emoção, disse me reconhecer como chefe e que sua viagem visava somente colaborar como meu ajudante na grande tarefa de mandar para o Chile os “gloriosos derrotados da guerra”. Ainda que a satisfação de adquirir um novo colaborador se mantivesse, o personagem me inquietava. Apesar da adulação e dos exageros que me prodigalizava pareceu-me adivinhar alguma coisa falsa em sua pessoa. Soube depois que, com o triunfo da Frente Popular no Chile, tinha mudado violentamente de Caballero de Colón, organização jesuítica, para membro da juventude comunista. Esta, em pleno período de recrutamento, ficou encantada com seus méritos intelectuais. Arellano Marín escrevia comédias e artigos, era um conferencista erudito e parecia saber de tudo.
A Guerra Mundial se aproximava. A cada noite Paris esperava os bombardeios alemães e havia instruções em cada casa para refugiar-se dos ataques aéreos. Eu ia cada noite a Villiers sur Seine, a uma casinha em frente ao rio, que deixava cada manhã para retornar com pesar à embaixada.
O recém-chegado Arellano Marín tinha adquirido, em poucos dias, a importância que eu nunca consegui. Tinha-o apresentado a Negrín, a Álvarez del Vayo e a alguns dirigentes dos partidos espanhóis. Uma semana depois o novo funcionário era íntimo de todos eles. Entravam e saíam de seu escritório dirigentes espanhóis que eu não conhecia. Suas longas conversações eram um mistério para mim. De quando em quando me chamava para me mostrar um brilhante ou uma esmeralda que tinha comprado para sua mãe ou para me fazer confidências sobre uma loura coquetíssima que o fazia gastar mais que o devido nos cabarés parisienses. De Aragon e especial-mente de Elsa, a quem tínhamos refugiado no local da embaixada para protegê-los da repressão anticomunista, Arellano Marín fez-se amigo imediato, cumulando-os de atenções e pequenos presentes. A psicologia do personagem deve ter interessado Elsa Triolet uma vez que fala dele em uma ou duas de suas novelas.
Por tudo isto fui descobrindo que sua voracidade pelo luxo e pelo dinheiro ia crescendo diante de mim, ainda que eu nunca tenha sido muito astuto. Mudava de marcas de automóveis com facilidade, alugava casas suntuosas e aquela loura coquete parecia atormentá-lo cada dia mais com suas exigências.
Tive que transferir-me para Bruxelas para solucionar um problema dramático dos emigrados. Ao sair do modestíssimo hotel em que me alojei, encontrei-me boquiaberto com meu flamante colaborador, o elegante Arellano Marín. Acolheu-me com grandes protestos de amizade e me convidou a jantar naquele mesmo dia.
Fomos nos encontrar em seu hotel, o mais caro de Bruxelas. Tinha mandado colocar orquídeas em nossa mesa. Pediu naturalmente caviar e champanha. Durante o jantar, guardei um silêncio preocupado enquanto ouvia os mirabolantes planos de meu anfitrião, suas próximas viagens de recreio, suas aquisições de joias. Parecia-me ouvir um novo-rico com certos sintomas de demência mas a agudeza de seu olhar, a segurança de suas afirmações, tudo isso produzia em mim uma espécie de enjoo. Decidi pôr tudo em pratos limpos e lhe falar francamente de minhas preocupações. Pedi que tomássemos o café em seu quarto porque tinha algo a lhe dizer.
Ao pé da escadaria, quando subíamos para conversar, aproximaram-se dois homens que eu não conhecia. Ele lhes disse em espanhol que o esperassem, que desceria dentro de poucos minutos.
Apenas chegado ao seu quarto, deixei de lado o café. O diálogo foi tenso:
- Parece-me que vais por mau caminho. Estás te convertendo num frenético esbanjador. Pode ser que sejas demasiado jovem para entender isso. Mas nossas obrigações políticas são muito sérias. A sorte de mil emigrados está em nossas mãos e com isto não se brinca. Não me interessa teus assuntos mas quero te fazer uma advertência. Há muita gente que depois de uma vida desgraçada diz: “Ninguém me deu um conselho, ninguém me advertiu.” Contigo é diferente. Esta foi minha advertência. E agora vou embora.
Olhei-o ao despedir-me. As lágrimas corriam-lhe dos olhos até à boca. Tive um impulso de arrependimento. Teria ido longe demais? Aproximei-me e toquei no seu ombro:
- Não chores!
- Choro de raiva - respondeu.
Afastei-me sem uma palavra mais. Regressei a Paris e nunca mais o voltei a ver. Ao ver-me descer a escadaria, os dois desconhecidos que esperavam subiram rapidamente ao seu quarto.
O desenlace desta história teve lugar bastante tempo depois, no México, onde então eu era cônsul do Chile. Um dia fui convidado para almoçar com um grupo de refugiados espanhóis e dois deles me reconheceram.
- De onde me conhecem? - perguntei.
- Somos aqueles dois de Bruxelas que subiram para falar com seu compatriota Arellano Marín quando você desceu do quarto.
- E que aconteceu então? Sempre tive curiosidade de saber - disse.
Contaram-me um episódio extraordinário. Tinham-no encontrado banhado em lágrimas, preso de uma crise nervosa. E disse-lhes entre soluços: “Acabo de sofrer o maior choque da minha vida. Neruda saiu daqui para denunciá-los à Gestapo como perigosos comunistas espanhóis. Não pude convencê-lo de esperar algumas horas. Tem os minutos contados para escapar. Deixem-me suas valises que eu as guardarei e as farei chegar mais tarde a vocês.
- Que cretino! - disse-lhes. - Menos mal que de qualquer maneira conseguiram escapar dos alemães.
- Mas as valises continham noventa mil dólares dos sindicatos operários espanhóis e não voltamos nem voltaremos a vê-las.
No entanto mais tarde soube que o diabólico personagem tinha feito uma longa e agradável tournée pelo Oriente Próximo, desfrutando seus amores parisienses. Claro que a loura coquete, tão exigente, era um louro estudante da Sorbonne.
Tempos depois publicava-se no Chile sua renúncia do partido comunista. “Profundas divergências ideológicas obrigaram-me a tomar esta decisão”, assim dizia em sua carta aos jornais.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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