segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

A literatura de 30

Nesta época de escrita excessiva e leitura apressada temos uma grande quantidade de escritores mais ou menos anônimos e fervilham nos bureaux dos livreiros trabalhos inéditos. Para alguma coisa a Revolução de 30 serviu. Apareceu o hábito da leitura, de repente ficamos curiosos, às vezes imprudentemente curiosos, e como nem todos podemos ler línguas estranhas, porque a nossa instrução seja minguada ou porque a baixa do câmbio haja dificultado a importação do papel e das ideias, tratamos de fabricar estas coisas — e a indústria do livro levantou a cabeça. O que é singular no movimento que se opera nestes últimos anos é que ele vem de dentro para fora. Antigamente um cidadão escrevia no Rio, e as suas obras, hoje quase todas definitivamente mortas, impunham-se ao resto do país. Para que um provinciano publicasse um livro aqui era necessário, não que ele pudesse fazer um livro, mas que se aventurasse a uma viagem e, acostumado a pisar no asfalto, entrasse na Garnier com uma carta de recomendação dum acadêmico. Como isso vai longe! Depois das tentativas separatistas de São Paulo, de Minas, do Rio Grande do Sul e do Nordeste, o país encontra-se afinal dividido. Realizou-se na literatura o que indivíduos importantes não conseguiram em política: tornar independentes várias capitanias desta grande colônia. Quem já viu fora de Porto Alegre a cara do Sr. Erico Verissimo? Entretanto ele é hoje um romancista notável, um romancista notabilíssimo. O Sr. Lins do Rego faz a maior parte dos seus livros em Maceió, lugar terrível, absolutamente impróprio a esse gênero de trabalho. E a Sra. Rachel de Queiroz produziu excelentes romances numa rede. Estamos completamente livres da obrigação de ir à rua do Ouvidor e visitar as livrarias. Trabalharemos em qualquer parte, no Brás ou no Acre. Correremos o risco de ficar ignorantes, os homens sábios dirão que somos analfabetos. Ficaremos espantados descobrindo coisas que há cem anos eram velhas e escorregaremos no solecismo com uma constância desesperadora. Seremos ingênuos e indiscretos narrando as coisas que existem por este mundo ruim, não as que desejaríamos que existissem. Pasmosamente ingênuos. Provavelmente o público se vai enjoar dos nossos palavrões e da nossa simplicidade. E como a concorrência é grande, os editores estarão saciados dentro em pouco e bocejarão diante das pilhas de manuscritos. Lançaremos com dificuldade um livro que passará despercebido e dará prejuízo ao livreiro. Queixar-nos-emos amargamente da incompreensão, do mau gosto dos leitores. Parece que estou bancando o profeta e procurando verrumar o futuro. É um modo de falar: eu devia ter posto isso no presente. Já existe de fato superprodução, pelo que o público principia a aborrecer-se dos nossos produtos. É possível que a atenção que o público nos dispensou tenha sido apenas um entusiasmo de fogo de palha. Dentro de alguns anos estaremos definitivamente esquecidos. A curiosidade do leitor estará satisfeita, estancar-se-á a sede de imprevisto e pitoresco. E andaremos pelas livrarias, acanhados e barbudos, uns coelhonetos sem gramática, oferecendo à toa volumes imprestáveis — Baladilhas, Romanceiro. Junto com essas porcarias os livros que escrevemos com alma. Provavelmente seremos todos uns vendedores ambulantes ordinários, presentes e passados. Imaginar, copiar, observar. Observamos, sem dúvida. Mas isto não vale nada. Os mais inteligentes dirão que estamos imitando umas bestas caducas. Acharemos naturalmente que isto é um país perdido.
Graciliano Ramos, in Garranchos

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