Nesta
época de escrita excessiva e leitura apressada temos uma grande
quantidade de escritores mais ou menos anônimos e fervilham nos
bureaux dos livreiros trabalhos inéditos. Para alguma coisa a
Revolução de 30 serviu. Apareceu o hábito da leitura, de repente
ficamos curiosos, às vezes imprudentemente curiosos, e como nem
todos podemos ler línguas estranhas, porque a nossa instrução seja
minguada ou porque a baixa do câmbio haja dificultado a importação
do papel e das ideias, tratamos de fabricar estas coisas — e a
indústria do livro levantou a cabeça. O que é singular no
movimento que se opera nestes últimos anos é que ele vem de dentro
para fora. Antigamente um cidadão escrevia no Rio, e as suas obras,
hoje quase todas definitivamente mortas, impunham-se ao resto do
país. Para que um provinciano publicasse um livro aqui era
necessário, não que ele pudesse fazer um livro, mas que se
aventurasse a uma viagem e, acostumado a pisar no asfalto, entrasse
na Garnier com uma carta de recomendação dum acadêmico. Como isso
vai longe! Depois das tentativas separatistas de São Paulo, de
Minas, do Rio Grande do Sul e do Nordeste, o país encontra-se afinal
dividido. Realizou-se na literatura o que indivíduos importantes não
conseguiram em política: tornar independentes várias capitanias
desta grande colônia. Quem já viu fora de Porto Alegre a cara do
Sr. Erico Verissimo? Entretanto ele é hoje um romancista notável,
um romancista notabilíssimo. O Sr. Lins do Rego faz a maior parte
dos seus livros em Maceió, lugar terrível, absolutamente impróprio
a esse gênero de trabalho. E a Sra. Rachel de Queiroz produziu
excelentes romances numa rede. Estamos completamente livres da
obrigação de ir à rua do Ouvidor e visitar as livrarias.
Trabalharemos em qualquer parte, no Brás ou no Acre. Correremos o
risco de ficar ignorantes, os homens sábios dirão que somos
analfabetos. Ficaremos espantados descobrindo coisas que há cem anos
eram velhas e escorregaremos no solecismo com uma constância
desesperadora. Seremos ingênuos e indiscretos narrando as coisas que
existem por este mundo ruim, não as que desejaríamos que
existissem. Pasmosamente ingênuos. Provavelmente o público se vai
enjoar dos nossos palavrões e da nossa simplicidade. E como a
concorrência é grande, os editores estarão saciados dentro em
pouco e bocejarão diante das pilhas de manuscritos. Lançaremos com
dificuldade um livro que passará despercebido e dará prejuízo ao
livreiro. Queixar-nos-emos amargamente da incompreensão, do mau
gosto dos leitores. Parece que estou bancando o profeta e procurando
verrumar o futuro. É um modo de falar: eu devia ter posto isso no
presente. Já existe de fato superprodução, pelo que o público
principia a aborrecer-se dos nossos produtos. É possível que a
atenção que o público nos dispensou tenha sido apenas um
entusiasmo de fogo de palha. Dentro de alguns anos estaremos
definitivamente esquecidos. A curiosidade do leitor estará
satisfeita, estancar-se-á a sede de imprevisto e pitoresco. E
andaremos pelas livrarias, acanhados e barbudos, uns coelhonetos sem
gramática, oferecendo à toa volumes imprestáveis — Baladilhas,
Romanceiro. Junto com essas porcarias os livros que escrevemos
com alma. Provavelmente seremos todos uns vendedores ambulantes
ordinários, presentes e passados. Imaginar, copiar, observar.
Observamos, sem dúvida. Mas isto não vale nada. Os mais
inteligentes dirão que estamos imitando umas bestas caducas.
Acharemos naturalmente que isto é um país perdido.
Graciliano
Ramos, in Garranchos
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