sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

A beleza de Buenos Aires


A literatura, os mapas e o cinema me convidaram a imaginar Buenos Aires antes de visitar essa cidade. Ainda assim, Buenos Aires me surpreendeu por sua beleza e civilidade, por seus cafés, restaurantes, livrarias, praças, parques e jardins, e pela cordialidade dos portenhos. É uma cidade esplêndida, no coração de uma América tão desagregada, tão miserável e decaída.
Claro que há muitos problemas em Buenos Aires, mas para quem vive em São Paulo ou em qualquer metrópole brasileira essas iniquidades são muito mais assustadoras. Vi pessoas dormindo sob pórticos e marquises; vi lixo acumulado nas ruas do centro, vi favelas (“vilas”) na periferia sudoeste da cidade. Há pessoas pobres em alguns bairros e vários catadores de papelão e dejetos; há imigrantes bolivianos, peruanos e paraguaios que vivem miseravelmente. Tudo isso é indigno. Mas vivemos num mundo indigno e injusto, para dizer o mínimo. Apesar disso, saí de Buenos Aires com a impressão de que perdemos o bonde na década de 1950, quando as capitais brasileiras — Rio e São Paulo à frente — poderiam ter sido planejadas. O que veio depois destruiu nossos sonhos: a extrema desigualdade social, a ganância e a ignorância de governos militares e civis, de prefeitos e vereadores que entregaram as cidades com seus centros históricos ao apetite voraz das imobiliárias e construtoras. Tudo isso fez das metrópoles brasileiras um caos medonho: um conjunto de fortalezas para os ricos e inúmeras favelas para os pobres e miseráveis. Entre esses extremos, a classe média paga caro para morar em edifícios horrorosos. E isso num país de arquitetos competentes e premiados, mas banidos profissionalmente, pois não puderam intervir no planejamento urbano e no projeto de edifícios.
Buenos Aires é uma lição de arquitetura e urbanismo. Parece uma cidade de várias idades: antiga, moderna e contemporânea. Uma cidade viva e cheia de encantos, que não desprezou suas tradições. Os bairros mais tradicionais — Palermo, San Telmo, Almagro, Caballito, La Recoleta, Chacarita, Flores e outros — não foram desfigurados por uma arquitetura feia e cafona. Um exemplo de projeto arquitetônico inovador em Buenos Aires é o conjunto de edifícios de Puerto Madero, com sua bela área de lazer que dá para o rio.
Os portos de Manaus e Porto Alegre — só para dar exemplos do Norte e do Sul — estão absurdamente de costas para o rio. Uma das poucas capitais brasileiras que transformou a área portuária num lugar belo e agradável é Belém, uma cidade que, infelizmente, muitos brasileiros desconhecem.
Quase tudo em Buenos Aires foi e é projetado numa escala humana. Claro que há razões históricas que explicam tudo isso. O populismo e a corrupção estão arraigados na história política da Argentina e desta América, mas esse país sobreviveu a uma ditadura sangrenta, que culminou na guerra das Malvinas, a derradeira insanidade dos militares. E, apesar dos governos corruptos e populistas, a Argentina reergueu-se, Buenos Aires recuperou algo de seu esplendor e agora acolhe visitantes do mundo todo. O movimento cultural é intenso e, quando você passeia pela cidade, não se sente explorado ao frequentar um restaurante, um café, um teatro.
Triste a cidade cujo lazer depende de visitas a um shopping center. Poderia passar um mês em Buenos Aires sem pisar num shopping. Um mês? Uma vida inteira.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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