A
literatura, os mapas e o cinema me convidaram a imaginar Buenos Aires
antes de visitar essa cidade. Ainda assim, Buenos Aires me
surpreendeu por sua beleza e civilidade, por seus cafés,
restaurantes, livrarias, praças, parques e jardins, e pela
cordialidade dos portenhos. É uma cidade esplêndida, no coração
de uma América tão desagregada, tão miserável e decaída.
Claro
que há muitos problemas em Buenos Aires, mas para quem vive em São
Paulo ou em qualquer metrópole brasileira essas iniquidades são
muito mais assustadoras. Vi pessoas dormindo sob pórticos e
marquises; vi lixo acumulado nas ruas do centro, vi favelas (“vilas”)
na periferia sudoeste da cidade. Há pessoas pobres em alguns bairros
e vários catadores de papelão e dejetos; há imigrantes bolivianos,
peruanos e paraguaios que vivem miseravelmente. Tudo isso é indigno.
Mas vivemos num mundo indigno e injusto, para dizer o mínimo. Apesar
disso, saí de Buenos Aires com a impressão de que perdemos o bonde
na década de 1950, quando as capitais brasileiras — Rio e São
Paulo à frente — poderiam ter sido planejadas. O que veio depois
destruiu nossos sonhos: a extrema desigualdade social, a ganância e
a ignorância de governos militares e civis, de prefeitos e
vereadores que entregaram as cidades com seus centros históricos ao
apetite voraz das imobiliárias e construtoras. Tudo isso fez das
metrópoles brasileiras um caos medonho: um conjunto de fortalezas
para os ricos e inúmeras favelas para os pobres e miseráveis. Entre
esses extremos, a classe média paga caro para morar em edifícios
horrorosos. E isso num país de arquitetos competentes e premiados,
mas banidos profissionalmente, pois não puderam intervir no
planejamento urbano e no projeto de edifícios.
Buenos
Aires é uma lição de arquitetura e urbanismo. Parece uma cidade de
várias idades: antiga, moderna e contemporânea. Uma cidade viva e
cheia de encantos, que não desprezou suas tradições. Os bairros
mais tradicionais — Palermo, San Telmo, Almagro, Caballito, La
Recoleta, Chacarita, Flores e outros — não foram desfigurados por
uma arquitetura feia e cafona. Um exemplo de projeto arquitetônico
inovador em Buenos Aires é o conjunto de edifícios de Puerto
Madero, com sua bela área de lazer que dá para o rio.
Os
portos de Manaus e Porto Alegre — só para dar exemplos do Norte e
do Sul — estão absurdamente de costas para o rio. Uma das poucas
capitais brasileiras que transformou a área portuária num lugar
belo e agradável é Belém, uma cidade que, infelizmente, muitos
brasileiros desconhecem.
Quase
tudo em Buenos Aires foi e é projetado numa escala humana. Claro que
há razões históricas que explicam tudo isso. O populismo e a
corrupção estão arraigados na história política da Argentina e
desta América, mas esse país sobreviveu a uma ditadura sangrenta,
que culminou na guerra das Malvinas, a derradeira insanidade dos
militares. E, apesar dos governos corruptos e populistas, a Argentina
reergueu-se, Buenos Aires recuperou algo de seu esplendor e agora
acolhe visitantes do mundo todo. O movimento cultural é intenso e,
quando você passeia pela cidade, não se sente explorado ao
frequentar um restaurante, um café, um teatro.
Triste
a cidade cujo lazer depende de visitas a um shopping center. Poderia
passar um mês em Buenos Aires sem pisar num shopping. Um mês? Uma
vida inteira.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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