Eu
venho de muito longe e trago aquilo que acredito ser uma mensagem
partilhada pelos meus colegas escritores de Angola, Moçambique, Cabo
Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. A mensagem é a
seguinte: Jorge Amado não foi apenas o mais lido dos escritores
estrangeiros. Ele foi o escritor que maior influência teve na gênese
da literatura dos países africanos que falam português.
A
nossa dívida literária para com o Brasil começa há séculos
atrás, quando Gregório de Matos e Tomaz Gonzaga ajudaram a criar os
primeiros núcleos literários em Angola e Moçambique. Mas esses
níveis de influência foram restritos e não se podem comparar com
as marcas profundas e duradouras deixadas pelo autor baiano.
Deve
ser dito (como uma confissão à margem) que Jorge Amado fez pela
projeção da nação brasileira mais do que todas as instituições
diplomáticas juntas. Não se trata de ajuizar o trabalho dessas
instituições, mas apenas de reconhecer o imenso poder da
literatura. Nesta sala estão outros que igualmente engrandeceram o
Brasil e criaram pontes com o resto do mundo. Falo, é claro, de
Chico Buarque e Caetano Veloso. Para Chico e Caetano, vai a imensa
gratidão dos nossos países que encontraram luz e inspiração na
vossa música, na vossa poesia. Para Alberto Costa e Silva vai o
nosso agradecimento pelo empenho sério no estudo da realidade
histórica do nosso continente.
Nas
décadas de 1950, 1960 e 1970, os livros de Jorge cruzaram o
Atlântico e causaram um impacto extraordinário no nosso imaginário
colectivo.
É
preciso dizer que o escritor baiano não viajava sozinho: com ele
chegavam Manuel Bandeira, Lins do Rego, Jorge de Lima, Erico
Verissimo, Rachel de Queiroz, Drummond de Andrade, João Cabral de
Melo Neto e tantos, tantos outros.
Em
minha casa, meu pai — que era e é poeta — deu o nome de Jorge a
um filho e de Amado a um outro. Apenas eu escapei dessa nomeação
referencial. Recordo-me de que, na minha família, a paixão
brasileira se repartia entre Graciliano Ramos e Jorge Amado. Mas não
havia disputa: Graciliano revelava o osso e a pedra da nação
brasileira. Amado exaltava a carne e a festa desse mesmo Brasil.
Neste
breve depoimento eu gostaria de viajar em redor da seguinte
interrogação: Porquê este absoluto fascínio por Jorge Amado,
porquê esta adesão imediata e duradoura?
É
sobre algumas dessas razões do amor por Amado que eu gostaria de
falar aqui.
É
evidente que a primeira razão é literária, e reside inteiramente
na qualidade do texto do escritor baiano.
Eu
tenho para mim que o maior inimigo do escritor pode ser a própria
literatura. Pior que não escrever um livro, é escrevê-lo
demasiadamente. Jorge Amado soube tratar a literatura na dose certa,
e soube permanecer, para além do texto, um exímio contador de
histórias e um notável criador de personagens. Recordo o espanto de
Adélia Prado, que, após a edição dos seus primeiros versos,
confessou: “Eu fiz um livro e, meu Deus, não perdi a poesia...”.
Também Jorge escreveu sem deixar nunca de ser um poeta do romance.
Este era um dos segredos do seu fascínio: a sua artificiosa
naturalidade, a sua elaborada espontaneidade.
Hoje,
ao reler os seus livros, ressalta esse tom de conversa íntima, uma
conversa à sombra de uma varanda que começa em Salvador da Baía e
se estende para além do Atlântico. Nesse narrar fluido e
espreguiçado, Jorge vai desfiando prosa e as suas personagens saltam
da página para a nossa vida quotidiana.
O
escritor Gabriel Mariano, de Cabo Verde, escreveu o seguinte: “Para
mim a descoberta de Amado foi um alumbramento porque eu lia os seus
livros e estava a ver a minha terra. E quando encontrei o Quincas
Berro d’Água eu estava a vê-lo na ilha de São Vicente, na minha
rua de Passá Sabe…”.
Esta
familiaridade existencial foi, certamente, um dos motivos do fascínio
nos nossos países. As suas personagens eram vizinhas não de um
lugar, mas da nossa própria vida. Gente pobre, gente com os nossos
nomes, gente com as nossas raças passeavam pelas páginas do autor
brasileiro. Ali estavam os nossos malandros, ali estavam os terreiros
onde falamos com os deuses, ali estava o cheiro da nossa comida, ali
estava a sensualidade e o perfume das nossas mulheres. No fundo,
Jorge Amado nos fazia regressar a nós mesmos.
Em
Angola, o poeta Mário António e o cantor Ruy Mingas compuseram uma
canção que dizia:
Quando
li Jubiabá
me
acreditei Antônio Balduíno.
Meu
Primo, que nunca o leu
ficou
Zeca Camarão.
E
era esse o sentimento: Antônio Balduíno já morava em Maputo e em
Luanda antes de viver como personagem literária. O mesmo sucedia com
Vadinho, com Guma, com Pedro Bala, com Tieta, com Dona Flor e
Gabriela e com tantas outras personagens fantásticas.
Jorge
não escrevia livros, ele escrevia um país. E não era apenas um
autor que nos chegava. Era um Brasil todo inteiro que regressava a
África. Havia pois uma outra nação que era longínqua mas não nos
era exterior. E nós precisávamos desse Brasil como quem carece de
um sonho que nunca antes soubéramos ter. Podia ser um Brasil
tipificado e mistificado mas era um espaço mágico onde nos
renascíamos criadores de histórias e produtores de felicidade.
Descobríamos
essa nação num momento histórico em que nos faltava ser nação. O
Brasil — tão cheio de África, tão cheio da nossa língua e da
nossa religiosidade — nos entregava essa margem que nos faltava
para sermos rio.
Falei
de razões literárias e de outras quase ontológicas que ajudam a
explicar porque Jorge é tão Amado nos países africanos. Mas
existem outros motivos, talvez mais circunstanciais.
Nós
vivíamos sob um regime de ditadura colonial. As obras de Jorge Amado
eram objeto de interdição. Livrarias foram fechadas e editores
foram perseguidos por divulgarem essas obras. O encontro com o nosso
irmão brasileiro surgia, pois, com o épico sabor da afronta e da
clandestinidade. A circunstância de partilharmos os mesmos
subterrâneos da liberdade também contribuiu para a mística da
escrita e do escritor. O angolano Luandino Vieira, que foi condenado
a catorze anos de prisão no Campo de Concentração do Tarrafal, em
1964 fez passar para além das grades uma carta em que pedia o
seguinte: “Enviem o meu manuscrito ao Jorge Amado para ver se ele
consegue publicar lá, no Brasil”.
Na
realidade, os poetas nacionalistas moçambicanos e angolanos ergueram
Amado como uma bandeira. Há um poema da nossa Noémia de Sousa que
se chama “Poema de João”, escrito em 1949, e que começa assim:
João
era jovem como nós
João
tinha os olhos despertos,
As
mãos estendidas para a frente,
A
cabeça projetada para amanhã,
João
amava os livros que tinham alma e carne
João
amava a poesia de Jorge Amado.
E
há, ainda, uma outra razão que poderíamos chamar de linguística.
No outro lado do mundo se revelava a possibilidade de um outro lado
da nossa língua.
Na
altura, nós carecíamos de um português sem Portugal, de um idioma
que, sendo do Outro, nos ajudasse a encontrar uma identidade própria.
Até se dar o encontro com o português brasileiro, nós falávamos
uma língua que não nos falava. E ter uma língua assim, apenas por
metade, é um outro modo de viver calado. Jorge Amado e os
brasileiros nos devolviam a fala, num outro português, mais
açucarado, mais dançável, mais a jeito de ser nosso.
O
poeta maior de Moçambique, José Craveirinha, disse o seguinte numa
entrevista: “Eu devia ter nascido no Brasil. Porque o Brasil teve
uma influência tão grande que, em menino, eu cheguei a jogar
futebol com o Fausto, o Leônidas da Silva, o Pelé. Mas nós éramos
obrigados a passar por João de Deus, um D. Dinis, pelos clássicos
de Portugal. Numa dada altura, porém, nós nos libertamos com a
ajuda dos brasileiros. E toda a nossa literatura passou a ser um
reflexo da Literatura Brasileira. Quando chegou o Jorge Amado, nós
tínhamos chegado a nossa própria casa”.
Craveirinha
falava dessa grande dádiva que é podermos sonhar em casa. Foi isso
que Jorge Amado nos deu. E foi isso que fez Amado ser nosso,
africano, e nos fez, a nós, sermos brasileiros. Por ter convertido o
Brasil numa casa feita para sonhar, por ter convertido a sua vida em
infinitas vidas, nós te agradecemos, companheiro Jorge.
Mia
Couto, in E se Obama fosse africano?
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