sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Partida do audaz navegante (trecho inicial)

Na manhã de um dia em que brumava e chuviscava, parecia não acontecer coisa nenhuma. Estava-se perto do fogo familiar, na cozinha, aberta, de alpendre, atrás da pequena casa. No campo, é bom; é assim. Mamãe, ainda de roupão, mandava Maria Eva estrelar ovos com torresmos e descascar os mamões maduros. Mamãe, a mais bela, a melhor. Seus pés podiam calçar as chinelas de Pele. Seus cabelos davam o louro silencioso. Suas meninas-dos-olhos brincavam com bonecas. Ciganinha, Pele e Brejeirinha — elas brotavam num galho. Só o Zito, este, era de fora; só primo. Meia-manhã chuvosa entre verdes: o fúfio fino borrifo, e a gente fica quase presos, alojados, na cozinha ou na casa, no centro de muitas lamas. Sempre se enxergam o barranco, o galinheiro, o cajueiro grande de variados entortamentos, um pedaço de um morro — e o longe. Nurka, negra, dormia. Mamãe cuida com orgulhos e olhares as três meninas e o menino. Da Brejeirinha, menor, muito mais. Porque Brejeirinha, às vezes, formava muitas artes.
Nesta hora, não. Brejeirinha se instituíra, um azougue de quieta, sentada no caixote de batatas. Toda cruzadinha, traçadas as pernocas, ocupava-se com a caixa de fósforos. A gente via Brejeirinha: primeiro, os cabelos, compridos, lisos, louro-cobre; e, no meio deles, coisicas diminutas: a carinha não-comprida, o perfilzinho agudo, um narizinho que-carícia. Aos tantos, não parava, andorinhava, espiava agora — o xixixi e o empapar-se da paisagem — as pestanas til-til. Porém, disse-se-dizia ela, pouco se vê, pelos entrefios: — “Tanto chove, que me gela!” Aí, esticou-se para cima, dando com os pés em diversos objetos. — “Ui, ui-te!” — rolara nos cachos de bananas, seu umbigo sempre aparecendo. Pele ajudava-a a se endireitar. — “...E o cajueiro ainda faz flores...” — acrescentou, observava da árvore não se interromper mesmo assim, com essas aguaceirices, de durante dias, a chuvinha no bruaar e a pálida manhã do céu. Mamãe dosava açúcares e farinhas, para um bolo. Pele tentava ajudar, diligentil. Ciganinha lia um livro; para ler ela não precisava virar página.
Ciganinha e Zito nem muito um do outro se aproximavam, antes paravam meio brigados, de da véspera, de uma briguinha grande e feia. Pele é que era a morena, com notáveis olhos. Ciganinha, a menina linda no mundo: retrato miúdo da Mamãe. Zito perpensava assuntos de não ousar dizer, coisas de ciumoso, ele abrira-se à espécie de ciúmes sem motivo de quê ou quem. Brejeirinha pulou, por pirueta. — “Eu sei por que é que o ovo se parece com um espeto!” —; ela vivia em álgebra. Mas não ia contar a ninguém. Brejeirinha é assim, não de siso débil; seus segredos são sem acabar. Tem porém infimículas inquietações: — “Eu hoje estou com a cabeça muito quente...” — isto, por não querer estudar. Então, ajunta: — “Eu vou saber geografia.” Ou: — “Eu queria saber o amor...” Pele foi quem deu risada. Ciganinha e Zito erguem olhos, só quase assustados. Quase, quase, se entrefitaram, num não encontrar-se. Mas, Ciganinha, que se crê com a razão, muxoxa. Zito, também, não quer durar mais brigado, viera ao ponto de não agüentar. Se, à socapa, mirava Ciganinha, ela de repente mais linda se envoava.
— “Sem saber o amor, a gente pode ler os romances grandes?” — Brejeirinha especulava. — “É, hem? Você não sabe ler nem o catecismo...” Pele lambava-lhe um tico de desdém; mas Pele não perdia de boazinha e beliscava em doce, sorria sempre na voz. Brejeirinha rebica, picuíca: — “Engraçada!... Pois eu li as 35 palavras no rótulo da caixa de fósforos...” Por isso, queria avançar afirmações, com superior modo e calor de expressão, deduzidos de babinhas. — “Zito, tubarão é desvairado, ou é explícito ou demagogo?” Porque gostava, poetista, de importar desses sérios nomes, que lampejam longo clarão no escuro de nossa ignorância. Zito não respondia, desesperado de repente, controversioso-culposo, sonhava ir-se embora, teatral, debaixo de chuva que chuva, ele estalava numa raiva. Mas Brejeirinha tinha o dom de apreender as tenuidades: delas apropriava-se e refletia-as em si — a coisa das coisas e a pessoa das pessoas. — “Zito, você podia ser o pirata inglório marujo, num navio muito intacto, para longe, lo-õ-onge no mar, navegante que o nunca-mais, de todos?” Zito sorri, feito um ar forte. Ciganinha estremecera, e segurou com mais dedos o livro, hesitada. Mamãe dera a Pele a terrina, para ela bater os ovos.
Mas Brejeirinha punha mão em rosto, agora ela mesma empolgada, não detendo em si o jacto de contar: — “O Aldaz Navegante, que foi descobrir os outros lugares valetudinário. Ele foi num navio, também, falcatruas. Foi de sozinho. Os lugares eram longe, e o mar. O Aldaz Navegante estava com saudade, antes, da mãe dele, dos irmãos, do pai. Ele não chorava. Ele precisava respectivo de ir. Disse: — “Vocês vão se esquecer muito de mim?” O navio dele, chegou o dia de ir. O Aldaz Navegante ficou batendo o lenço branco, extrínseco, dentro do indo-se embora do navio. O navio foi saindo do perto para o longe, mas o Aldaz Navegante não dava as costas para a gente, para trás. A gente também inclusive batia os lenços brancos. Por fim, não tinha mais navio para se ver, só tinha o resto de mar. Então, um pensou e disse: — “Ele vai descobrir os lugares, que nós não vamos nunca descobrir...” Então e então, outro disse: — “Ele vai descobrir os lugares, depois ele nunca vai voltar...” Então, mais, outro pensou, pensou, esférico, e disse: “Ele deve de ter, então, a alguma raiva de nós, dentro dele, sem saber...” Então, todos choraram, muitíssimos, e voltaram tristes para casa, para jantar...”
Pele levantou a colher: — “Você é uma analfabetinha ‘aldaz’.” — “Falsa a beatinha é tu!” — Brejeirinha se malcriou. — “Por que você inventa essa história de de tolice, boba, boba?” — e Ciganinha se feria em zanga. — “Porque depois pode ficar bonito, uê!” Nurka latira. Mamãe também estava brava? Porque Brejeirinha topara o pé em cafeteiras, e outras. Disse ainda, reflexiva: — “Antes falar bobagens, que calar besteiras...” Agora, fechou os olhos que verdes, solene arrependida de seu desalinho de conduta. Só ouvirá o rumorejo da chuvinha, que estarão fritando.
A manhã é uma esponja. Decerto, porém, Pele rezara os dez responsos a Santo Antônio, tãoquanto batia os ovos. Porque estourou manso o milagre. O tempo temperou. Só era março — compondo suas chuvas ordinárias. Ciganinha e Zito se suspiravam. Soltavam-se as galinhas do galinheiro, e o peru. Saía-se, ao largo, Nurka. O céu tornava a azul?
Guimarães Rosa, in Primeiras estórias

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