Para
Agnaldo Farias: velho Mohun de guerra
O
leitor talvez conheça o baiacu, ou os sabores desse peixe de água
doce e salgada. Eu conheço outro: o Baiacu de Ouro, um prêmio
literário que recebi em Manaus, há uns vinte anos.
Um
dia alguém me telefonou e deu a notícia. Agradeci com duas palavras
e disse que eu não ia fazer discurso na solenidade da entrega. Minha
surpresa maior foi o envelope balofo que recebi junto com o Baiacu.
Não era um cheque, era dinheiro mesmo: um maço de notas velhas e
amassadas, como se recebe no garimpo. Mas, como a inflação também
era balofa, meu ânimo arrefeceu. O valor do prêmio era segredo, e
este garimpeiro de palavras não ia contar em público o valor do
trabalho privado.
Tive
que ouvir um discurso, felizmente breve, e mesmo brevíssimo, sem
firulas e salamaleques. Depois quatro músicos interpretaram o
“Quarteto n o 1”, de Villa-Lobos.
Eram
músicos búlgaros, louros de rostos rosados, e todos usavam traje a
rigor na noite abafada. O envelope gordo não entrava no meu bolso,
tive que segurá-lo enquanto ouvia o primeiro movimento do Quarteto
do grande compositor. Depois do “Canto lírico” me entreguei a um
devaneio: não fosse a queda do Muro de Berlim, esses virtuosos das
cordas não estariam interpretando com esmero “Melancolia” diante
de um escritor emocionado, que apalpava um envelope obeso. Esses
músicos são a maior contribuição da queda do Muro para o
Amazonas, pensei, prestando atenção à harmonia, vendo mãos
búlgaras movimentar arcos e beliscar cordas, o suor escorrendo de
queixos e orelhas do país dos Bálcãs até gotejar no assoalho de
uma cidade amazônica.
Aplaudi
de pé, o coração disparado.
Quando
saí da sala, abri o envelope, contei as cédulas de cruzados: dava
para alimentar meu gato por três meses e ainda levá-lo a um bom
veterinário.
Leon,
Leon, meu querido e inesquecível felino de rua, agora aos meus
cuidados e, de agora em diante, com a pança cheia e uma consulta
marcada. A pelagem da cor de açafrão, o olhar aceso e misterioso, o
miado rouco e indômito, tudo nele lembrava um filhote de
onça-vermelha.
Algo
dentro de mim — talvez minha esperança teimosa — dizia que a
estatueta do Baiacu de Ouro era realmente de ouro. Bom, o peixe
inteiro de ouro maciço seria pedir muito, mas de ouro pelo menos as
barbatanas, de ouro uma pontinha da cauda ou um dos olhos. Mas não:
era uma estatueta de latão, toda dourada: mera fantasia para um
escrevinhador de mundos fantasiosos.
Comprei
fiadas de jaraquis para o meu Leon, dei-lhe uma cama digna e um
colchão novo: pedrinhas brancas e polidas, que nem ovos de codorna.
Enfim, dei a Leon o próprio Baiacu, para que ele sonhasse com um
peixe enorme, fora d’água. A estatueta, cravada num cubo de
madeira, prendia a porta aberta do balcão, assim evitaria o barulho
quando o vento enraivecia. O bater de portas é um dos grandes
traumas da minha infância: o barulho seco, terrível e inesperado me
sobressaltava em noites de tempestade. E como a porta do balcão era
a única rebelde do meu lar, designei a estatueta para ser sua
sentinela diuturna.
Lembro
que Leon aproximava-se do Baiacu, eriçava as orelhas e afiava as
garras, ensaiando o salto certeiro. Quando entardecia, os raios de
sol, mais amansados, incidiam magicamente sobre o latão, criando
reflexos estranhos que enfeitiçavam o felino. Penso que ele não via
apenas um baiacu, via também cardumes cintilantes, refletidos no
vidro da porta; talvez visse uma possibilidade real de nunca mais
passar fome, como milhões de gatos de rua, seus semelhantes
paupérrimos, sem prêmios, sem consultas, afagos, jaraquis. Sem
nada. E quando Leon decidiu dar o bote fatal e abocanhar sua presa,
percebeu que esse peixe era de mentira, como se dissesse que os
prêmios, de algum modo, são apenas fantasias fugazes.
O
tempo passou, Leon ganhou um epitáfio escrito pela minha pena, a
estatueta de latão extraviou-se numa de minhas mudanças. E a
vaidade daquele tempo, uma vaidade tão grande que parecia inchada,
secou por completo.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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