quinta-feira, 5 de abril de 2018

Última batalha sobre a terra

A consciência da morte nos dá uma maravilhosa lucidez. D. Juan, o bruxo do livro de Carlos Castañeda, Viagem a Ixtlan, advertia seu discípulo: “Essa bem pode ser a sua última batalha sobre a terra”. Sim, bem pode ser. Somente os tolos pensam de outra forma. E se ela pode ser a última batalha, que seja uma batalha que valha a pena. E, com isso, nos libertamos de uma infinidade de coisas tolas e mesquinhas que permitimos se aninhem em nossos pensamentos e coração. Resta então a pergunta: “O que é o essencial?”. Um conhecido meu, místico e teólogo da Igreja Ortodoxa Russa, ao saber que tinha um câncer no cérebro e que lhe restavam não mais que seis meses de vida, chegou à sua esposa e lhe disse: “Inicia-se aqui a liturgia final”. E, com isso, começou uma vida nova. As etiquetas sociais não mais faziam sentido. Passou a receber somente as pessoas que desejava receber, os amigos, com quem podia compartilhar seus sentimentos. Eliot se refere a um tempo em que ficamos livres da compulsão prática – fazer, fazer, fazer. Não havia mais nada a fazer. Era hora de se entregar inteiramente ao deleite da vida: ver os cenários que ele amava, ouvir as músicas que lhe davam prazer, ler os textos antigos que o haviam alimentado.
O fato é que, sem que o saibamos, todos nós estamos enfermos de morte e é preciso viver a vida com sabedoria para que ela, a vida, não seja estragada pela loucura que nos cerca.
Lembrei-me das palavras de Walt Whitman: “Quem anda duzentos metros sem vontade/ anda seguindo o próprio funeral/ vestindo a própria mortalha...”.
Pensei então nas minhas longas caminhadas pelo meu próprio funeral, fazendo aquilo que não desejo fazer, fazendo porque outros desejam que eu faça. “Sou o intervalo entre o meu desejo e aquilo que os desejos dos outros fizeram de mim...” (Fernando Pessoa). Sou esse intervalo, esse vazio – de um lado, o meu desejo (onde foi que o perdi?); do outro lado, o desejo dos outros que esperam coisas de mim. Não, não são os inimigos que me impõem o intervalo. Inimigos: não lhes dou a menor importância. Os desejos que me pegam são os desejos das pessoas que amo – anzóis na carne. Como tenho raiva do Antoine de Saint-Exupéry – “tornamo-nos eternamente responsáveis por aqueles que cativamos...”. Mas isso não é terrível? Ser responsável por tanta gente? Cristo, por amar demais, terminou na cruz. Embora não saibamos, o amor também mata.
Rubem Alves, in Variações sobre o prazer

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