A
consciência da morte nos dá uma maravilhosa lucidez. D. Juan, o
bruxo do livro de Carlos Castañeda, Viagem a Ixtlan, advertia
seu discípulo: “Essa bem pode ser a sua última batalha sobre a
terra”. Sim, bem pode ser. Somente os tolos pensam de outra forma.
E se ela pode ser a última batalha, que seja uma batalha que valha a
pena. E, com isso, nos libertamos de uma infinidade de coisas tolas e
mesquinhas que permitimos se aninhem em nossos pensamentos e coração.
Resta então a pergunta: “O que é o essencial?”. Um conhecido
meu, místico e teólogo da Igreja Ortodoxa Russa, ao saber que tinha
um câncer no cérebro e que lhe restavam não mais que seis meses de
vida, chegou à sua esposa e lhe disse: “Inicia-se aqui a liturgia
final”. E, com isso, começou uma vida nova. As etiquetas sociais
não mais faziam sentido. Passou a receber somente as pessoas que
desejava receber, os amigos, com quem podia compartilhar seus
sentimentos. Eliot se refere a um tempo em que ficamos livres da
compulsão prática – fazer, fazer, fazer. Não havia mais nada a
fazer. Era hora de se entregar inteiramente ao deleite da vida: ver
os cenários que ele amava, ouvir as músicas que lhe davam prazer,
ler os textos antigos que o haviam alimentado.
O
fato é que, sem que o saibamos, todos nós estamos enfermos de morte
e é preciso viver a vida com sabedoria para que ela, a vida, não
seja estragada pela loucura que nos cerca.
Lembrei-me
das palavras de Walt Whitman: “Quem anda duzentos metros sem
vontade/ anda seguindo o próprio funeral/ vestindo a própria
mortalha...”.
Pensei
então nas minhas longas caminhadas pelo meu próprio funeral,
fazendo aquilo que não desejo fazer, fazendo porque outros desejam
que eu faça. “Sou o intervalo entre o meu desejo e aquilo que os
desejos dos outros fizeram de mim...” (Fernando Pessoa). Sou esse
intervalo, esse vazio – de um lado, o meu desejo (onde foi que o
perdi?); do outro lado, o desejo dos outros que esperam coisas de
mim. Não, não são os inimigos que me impõem o intervalo.
Inimigos: não lhes dou a menor importância. Os desejos que me pegam
são os desejos das pessoas que amo – anzóis na carne. Como tenho
raiva do Antoine de Saint-Exupéry – “tornamo-nos eternamente
responsáveis por aqueles que cativamos...”. Mas isso não é
terrível? Ser responsável por tanta gente? Cristo, por amar demais,
terminou na cruz. Embora não saibamos, o amor também mata.
Rubem
Alves, in Variações sobre o prazer
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