O
médico recebe o alerta: o velho Bartolomeu tinha saído de casa,
cirandarilho pelas ruas, ninguém sabia dele. Os caminhos são longos
quando se caminha apenas com as pernas. Há muito que a cabeça do
mecânico está cativa, algures, longe do corpo. Daí os receios da
sua inesperada surtida. Dona Munda, angustiada, joelhos por terra,
suplicara:
— Vá,
Doutor, procure o meu marido, que ele já deve estar combalido nalgum
beco sem a saída.
O
português assume a missão de resgate, segue pelos meandros da Vila
no encalço do doente. O seu rasto é fácil de reconstituir, em todo
o recanto Bartolomeu deixou sinais da sua passagem. Aqui e ali, o
velho se tinha perdido e se havia dirigido aos transeuntes para pedir
referências.
— Onde
é que você vive? — perguntavam-lhe.
— Eu
não vivo, eu apenas moro — respondia invariavelmente.
E
todos se recordam da resposta, apontando o mesmo caminho por onde
Bartolomeu havia descido poucas horas antes.
Em
Vila Cacimba toda a via pública é privada, espaço de intimidades
expostas, as moças trançando cabelos, as mulheres cozinhando,
meninos defecando. Aqui e além, homens varrem os quintais com
vassouras feitas de folhas de palmeira. Por que é que aqui, no meio
de tão vastas poeiras indígenas, se varrem tanto os terreiros? O
português não sabe a resposta. Em Cacimba, o quintal não é fora:
é um assoalhado, uma parte da casa. Nem o médico suspeita o quanto
ele está pisando em territórios sagrados, devassando intimidades
familiares.
“Boa
tarde, Doutoro!”, ouve-se de uma varanda onde dois alfaiates dão
uso a velhas máquinas de costura. Os rádios a pilhas estão
transmitindo em volume máximo, convertendo a rua numa feira de
domingo. A música é uma praça divina, privatizar o seu uso é
pecaminosa ofensa.
À
medida que se afasta dos recantos que ele tão bem conhece, Sidónio
vai-se perdendo em labirínticas paisagens. As ruinhas se convertem
em tortuosos atalhos, as pessoas deixam de falar português. O médico
afunda-se num mundo desconhecido, fora da geografia, longe do idioma.
O lugar perdeu toda a geometria, mais habitado pelo chão que por
cidadãos.
Aos
poucos, a estranheza dá lugar ao medo. Ali começa um continente que
Sidónio Rosa desconhecia. Apercebe-se quanto a sua África era
reduzida: uma praça, uma rua, duas ou três casas de cimento. Então,
ele se compenetra de quanto deslocada surgia a sua pessoa e como,
mesmo que não quisesse, ele muito dava nas gerais vistas. No fundo,
o português não era uma pessoa. Ele era uma raça que caminhava,
solitária, nos atalhos de uma vila africana.
De
repente, Sidónio Rosa se dá conta de que nunca na vida teve que
pedir por socorro. Sempre lhe pareceu ridícula essa súplica, a
própria palavra “socorro!” lhe parecia demasiado silabada para
ser gritada, mesmo em súbita e suprema aflição. Dava mais jeito o
anglo-saxónico “help!”. E pensou: “Gritarei por ajuda, se me
atacarem”. Depois, pensou: “E quem me vai escutar, mesmo que eu
grite alto e bom som?”.
—
Socorro! — ensaiou de si para
si, de modo a que ninguém escutasse.
Só
então o médico se apercebe de que chegou ao fundo de um vale
desabitado. A única construção é um velho barracão de zinco.
Sidónio detém-se na entrada desse armazém abandonado. Atrás dele
já se junta uma multidão. De entre o tenso silêncio dos mirones,
alguém estende um braço acusador:
— Ele
está lá dentro! O velho está com uma catorzinha!
O
português aproxima-se, sozinho, e escuta libidinosos gemidos. Por
respeito, ele se afasta, em recatado silêncio. E ali se deixa ficar
imóvel. Não quer que se aperceba que não sabe o que fazer. Ele é
médico, europeu, senhor de poderosas sabedorias. Os populares
ficaram mais longe, num círculo expectante. E assim decorre um tempo
sem nada mais decorrer. Até que se volta a escutar, vindos de dentro
do barracão, lânguidos gemidos, sinais de que o velho não deixava
seus créditos machos por mãos alheias.
Escutam-se
risos, o português sacode a cabeça e sorri com indulgência. A
situação lhe desperta lembranças dos seus namoros com Deolinda.
Lembra-se do seu quarto em Lisboa, garras de luz arranhando a noite,
um bater de pilão no peito. E a doce voz que repete:
— Tu
és o meu anjo-da-guarda.
E
a lembrança se desvanece. Aos poucos, os gemidos lhe vão parecendo
algo diverso: dolorosos queixumes, primeiro; sofridos estertores,
depois. Sidónio se questiona: o velho estaria nas últimas? Ao invés
de namorar, estaria ele agonizando? O português aproxima-se da porta
do armazém, chama por Bartolomeu. Não passa um instante e a mesma
sacramental expressão atravessa o zinco:
— E
porquê?
O
que sucedeu dentro daquele barracão nunca ninguém saberá. Uma
menina de serviços, se é que houvera, tinha, entretanto, saído
pelas traseiras. Ninguém lhe escutou os passos, não deixou traço.
O médico entrou no recinto vazio, ajudou o velho a erguer-se do
improvisado leito, uma desfiada esteira.
— Eu
queria sentir o coração, faz conta eu me auscultava por dentro.
Entende, Doutor?
—
Entendo, mas podia ter avisado.
— Eu
queria provar a mim mesmo que não estava morto.
— E
correu bem?
— O
amor corre sempre bem.
O
amor, dissera. A falta de convicção denunciava que queria dizer uma
outra coisa. De qualquer modo, ele se sentia cumpridor da tradição.
Dormira com uma moça tenra, ou como se diz na língua local: uma
miúda ainda não quente. Agora, o médico podia ser dispensado. Ele
já fora limpo, os fígados depurados, os sangues coados, os fluidos
mais destilados que aguardente.
— Devia
fazer amor era com Munda, sua esposa.
— Isso
depende só de si, Doutor.
— Como
de mim?
— Lhe
dê um remédio para atenuar a cabeça dessa teimosa.
— Mas
que remédio?
— Ora,
o senhor é doutor… Medicamente-lhe lá um xarope que faça a minha
Mundinha me aceitar, quem sabe, às tantinhas, ela me volta a amar?
— Não
há esse remédio. O senhor bem sabe…
—
Sempre há um remédio para tudo.
À
saída do barranco, o velho se sustenta no ombro do médico, inspira
fundo e fixa o olhar no alto das nuvens:
— É
isso, o céu?
O
velho duvidava, genuinamente? O médico inspecionou-lhe o rosto, pelo
canto do olho. Optou pela resposta cautelosa.
— Sim,
isso é o céu, lá em cima e mais em cima ainda, tudo isso é o céu.
— Quem
me dera ser ave. As aves não envelhecem nunca.
Suportados
um no outro, vão tombaleando de regresso a casa. Ainda assim, o
velho mecânico segue todo abotoado, exibindo a camisa que o médico
acabara de lhe ofertar.
— Não
foi só ontem. Hoje também é o meu dia de anos — diz com a
vaidade que ainda lhe sobra do cansaço.
À
medida que sobem a encosta, porém, o regresso se torna penoso, com
frequentes paragens.
— Eu
sinto tonturas, Doutor.
—
Tonturas ou vertigens?
— Qual
é a diferença?
— Na
tontura, sentimo-nos a rodar e o mundo está parado. Na vertigem,
quem roda é o mundo.
— No
meu caso, tudo roda, Doutor. Eu e mundo bailamos juntos.
Já
perto de casa são interceptados por uma mulher de mini-saia roxa e
chapéu vermelho de abas largas. Dirige-se, afogueada, a Bartolomeu:
— Ainda
não me pagou, vovô.
O
velho olha a mulher de alto a baixo e exclama:
—
Deviam fardar as putas. Seria mais fácil
identificá-las — prossegue reclamando. — Tanto servidor público
enverga fardamento, por que razão se esquecem das prostitutas?
—
Paga-me lá, vovô — insiste a
mulher.
— Não
tenho nada que pagar. Suca, famba!
Adivinha-se
ruidosa querela e o médico interpõe-se, receoso que Dona Munda tome
conta do escândalo. Em redor, os mirones já se reajuntaram.
— Eu
resolvo isto, minha senhora — diz o português —, venha
amanhã ao posto médico.
—
Quando se trata de dinheiro, amanhã é
coisa que nunca chega. Eu preciso agora dessa mola.
— Por
favor, fale baixo — insiste o médico. — Não vale a pena
acordar as pessoas lá de casa.
— Só
quero acordar o meu taco.
— Eu
vou conduzir o vovô a casa — sossega o português —, e
regresso já para falar consigo.
—
Deixe, Doutor — afirma
Bartolomeu, em voz alta —, deixe Roxinha fazer barulho que eu
quero que Munda me veja, assim, todo jovem, todo cheio de peito.
Sidónio
Rosa empurra Bartolomeu para dentro de casa. Pouco depois, o médico
regressa à rua, remexendo os bolsos, revirando a carteira. A mulher
que o esperava não tira os olhos das notas que vão sendo contadas.
Os olhos engordam quando a barriga emagrece.
— Ele
dormiu consigo?
—
Comigo? Não, eu só sou
intermediária. Vim da cidade montar um negócio de felicidades
instantâneas aqui na Vila.
— Por
que me está a devolver dinheiro?
— Só
paga metade, esse velho passou o tempo só chamando o nome de uma
outra.
— Uma
outra? Não seria uma Munda?
— Não,
ele chamava por uma tal Deolinda.
Fosse
por excesso de alma ou carência de pulmões, o português abriu a
boca em falso. Como o peixe, longe de água. Quase não se escutava
quando inquiriu:
—
Deolinda, tem a certeza?
— Até
pediu que se fizesse escuro e que ela dissesse certas coisas… e
pediu outras coisas muito estranhas…
Sidónio
Rosa viu abater-se sobre si o universo. O velho invocara, em pleno
namoro, o nome de sua namorada? Sentiu-se subitamente envelhecido,
carecendo ele mesmo de cuidados médicos. Reentra em casa, coração
desfeito, cabeça atordoada. Encontra Bartolomeu sentado na cama, de
peúgas subidas, pernas abertas.
—
Doutor, lhe peço, me dê um banho.
— Um
banho?
— Munda
sempre diz que cheiro a podre… Assim, eu mostro que sou mais
higiênico que o papel…
— Sou
médico, não sou enfermeiro.
— O
que preciso agora não é médico, nem enfermeiro. Preciso de um
amigo.
E
dirigiu-se, cambaleante, para a banheira. O médico ficou a vê-lo
tirar as roupas, o seu vulto magro de imensa barriga num teatro de
sombras chinesas.
—
Dar-me banho não é um pedido, é uma
paga…
— Não
entendo.
— Uma
paga por um certo remédio que o senhor encontrou nesta família…
— Por
um remédio?
— Um
remédio chamado Deolinda.
— Eu
nem conheço a sua filha.
— Eu
não saio à rua, doutor, estou encarcerado neste quarto. Mas tenho
ruas dentro de mim, ruas que saem de mim e me trazem notícias…
Vai
galgando para a velha banheira, mãos amparando-se obsessivamente nas
bermas. Sidónio Rosa retira-se, deixando-o imerso na água barrenta.
Na
sala, o português procura Munda por entre a penumbra. Num gesto
mecânico, as mãos nervosas repuxam os cortinados. A luz penetra de
um jorro, pequenos flocos de poeira esvoaçam, tontos, pela sala.
Sentada na grande cadeira, a dona da casa levanta o braço para se
proteger da inundação de claridade.
— Dona
Munda, está tudo bem?
— Tudo
— responde a mulher secamente.
— Não
me quer perguntar nada?
— Nada.
—
Bartolomeu já voltou, está no
quarto.
— Já
ouvi.
— Peço
desculpa, Dona Munda, mas eu fico impressionado… a senhora está
aí, sentada e calada, nem quis saber se o seu marido já tinha
regressado.
— Para
mim, ele nunca chegou a sair.
Sacode
um pano de pó num gesto vazio. Depois, o pano tomba, num desmaio sem
peso.
— Perdi
a vontade de limpar a casa.
Se
tivesse que arrumar não era a casa. Arrumaria, sim, as coisas que
não existem, os sussurros e suspiros que se acumulam pelos cantos.
Afinal, naquela casa não cheirava a coisa morta. Era o próprio
cheiro da casa que tinha morrido.
— Bom,
eu vou ao rio. É a minha hora de ir. Depois o senhor me fala,
Doutor…
Todos
os fins de tarde ela vai ao rio para chorar. Que tristezas a movem,
ninguém sabe. Mas desde há semanas que aquele é o seu ritual
religioso: no rio, ela permanece de pé, sob a cascata, encostada ao
paredão de rocha negra. E chora.
— O
rio me dá colo de mãe. É só isso…
O
médico interrompe-lhe a saída. O rio que espere, o choro que
aguarde. Há coisas urgentes para serem ditas sobre o marido, a sua
intempestiva fuga, a sua recente chegada.
— Tenho
uma outra pergunta.
— Só
gosto de perguntas que não pedem respostas.
— Em
que momento é que deixaram de dormir juntos?
— É
isso que quer saber? E porquê, Doutor?
— Por
razões médicas. Quando é que deixaram de dormir juntos?
—
Quando eu descobri tudo.
— Tudo
o quê?
—
Quando, ao namorarmos, ele disse o
nome dela.
— O
nome de quem?
— Dela.
—
Deolinda?
Munda
acena que sim. Teria sido essa a única vez que Bartolomeu saíra
verdadeiramente de casa. Saíra de casa, saíra dela, saíra do
mundo.
— Nunca
mais quis que ele me tocasse. — Falou com ele sobre o assunto? —
Não, para mim estava claro. — Mas ele podia sonhar com Deolinda
sem que fosse dessa maneira… — Uma mulher adivinha. Uma esposa
sente. Uma mãe sabe.
— É
por isso que o quer matar?
Acena
afirmativamente e repete: “Sim, é por isso”. Durante anos pensou
que necessitava de ter mais provas do incestuoso adultério. Mas, no
íntimo, Munda não queria provas. Receava que, ao ter a certeza da
sua culpa, já não o quisesse mais castigar. Preferia, assim, que
subsistisse uma poeira de dúvida sobre o assunto.
—
Outras vezes, porém, penso que já
nem é preciso matá-lo. Ele deixou de saber viver.
— O
seu marido apenas está doente.
— Essa
doença não é por acaso. Fui eu que a encomendei.
—
Sempre os feitiços… até a senhora,
Dona Munda?!
— Você,
Doutor, você também é um feiticeiro. Apenas tem medo dos seus
poderes.
— Pois,
eu digo uma coisa: se quiser matar, vai ter que usar os seus próprios
meios.
—
Pensando bem, talvez o meu marido
tenha razão: eu tenho poderes de feiticeira. Por exemplo,
adivinhei-o a si…
—
Adivinhou-me?
—
Sonhei que você vinha. E você trazia
o remédio. O remédio, isto é, a morte…
O
médico empurra o ar com ambas as mãos como se afastasse mais do que
uma simples ideia. A morte? Era suposto ser o inverso: ele trazia a
Vida, a cura, a morte da Morte.
— E
agora, com licença, Doutor, eu vou. Por favor, feche as cortinas de
novo.
O
escuro era uma espécie de vestimenta para a casa e de mortalha para
os espelhos. Atravessada pela luz, a morada dos Sozinhos se expunha
como uma obscenidade.
—
Agora, vou. O senhor não quer
esperar-me, aqui?
— Onde
vai?
— Já
disse, vou ao rio, não demoro.
— Eu
espero.
—
Quando voltar, já choradinha, vou-lhe
contar mais histórias sobre Deolinda. E lhe mostro mais coisas.
— Mais
coisas?
— Mais
fotos dela.
Mia
Couto, in
Venenos de Deus, remédios do Diabo
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