sexta-feira, 13 de abril de 2018

Sempre há um remédio para tudo

O médico recebe o alerta: o velho Bartolomeu tinha saído de casa, cirandarilho pelas ruas, ninguém sabia dele. Os caminhos são longos quando se caminha apenas com as pernas. Há muito que a cabeça do mecânico está cativa, algures, longe do corpo. Daí os receios da sua inesperada surtida. Dona Munda, angustiada, joelhos por terra, suplicara:
Vá, Doutor, procure o meu marido, que ele já deve estar combalido nalgum beco sem a saída.
O português assume a missão de resgate, segue pelos meandros da Vila no encalço do doente. O seu rasto é fácil de reconstituir, em todo o recanto Bartolomeu deixou sinais da sua passagem. Aqui e ali, o velho se tinha perdido e se havia dirigido aos transeuntes para pedir referências.
Onde é que você vive? — perguntavam-lhe.
Eu não vivo, eu apenas moro — respondia invariavelmente.
E todos se recordam da resposta, apontando o mesmo caminho por onde Bartolomeu havia descido poucas horas antes.
Em Vila Cacimba toda a via pública é privada, espaço de intimidades expostas, as moças trançando cabelos, as mulheres cozinhando, meninos defecando. Aqui e além, homens varrem os quintais com vassouras feitas de folhas de palmeira. Por que é que aqui, no meio de tão vastas poeiras indígenas, se varrem tanto os terreiros? O português não sabe a resposta. Em Cacimba, o quintal não é fora: é um assoalhado, uma parte da casa. Nem o médico suspeita o quanto ele está pisando em territórios sagrados, devassando intimidades familiares.
Boa tarde, Doutoro!”, ouve-se de uma varanda onde dois alfaiates dão uso a velhas máquinas de costura. Os rádios a pilhas estão transmitindo em volume máximo, convertendo a rua numa feira de domingo. A música é uma praça divina, privatizar o seu uso é pecaminosa ofensa.
À medida que se afasta dos recantos que ele tão bem conhece, Sidónio vai-se perdendo em labirínticas paisagens. As ruinhas se convertem em tortuosos atalhos, as pessoas deixam de falar português. O médico afunda-se num mundo desconhecido, fora da geografia, longe do idioma. O lugar perdeu toda a geometria, mais habitado pelo chão que por cidadãos.
Aos poucos, a estranheza dá lugar ao medo. Ali começa um continente que Sidónio Rosa desconhecia. Apercebe-se quanto a sua África era reduzida: uma praça, uma rua, duas ou três casas de cimento. Então, ele se compenetra de quanto deslocada surgia a sua pessoa e como, mesmo que não quisesse, ele muito dava nas gerais vistas. No fundo, o português não era uma pessoa. Ele era uma raça que caminhava, solitária, nos atalhos de uma vila africana.
De repente, Sidónio Rosa se dá conta de que nunca na vida teve que pedir por socorro. Sempre lhe pareceu ridícula essa súplica, a própria palavra “socorro!” lhe parecia demasiado silabada para ser gritada, mesmo em súbita e suprema aflição. Dava mais jeito o anglo-saxónico “help!”. E pensou: “Gritarei por ajuda, se me atacarem”. Depois, pensou: “E quem me vai escutar, mesmo que eu grite alto e bom som?”.
Socorro! — ensaiou de si para si, de modo a que ninguém escutasse.
Só então o médico se apercebe de que chegou ao fundo de um vale desabitado. A única construção é um velho barracão de zinco. Sidónio detém-se na entrada desse armazém abandonado. Atrás dele já se junta uma multidão. De entre o tenso silêncio dos mirones, alguém estende um braço acusador:
Ele está lá dentro! O velho está com uma catorzinha!
O português aproxima-se, sozinho, e escuta libidinosos gemidos. Por respeito, ele se afasta, em recatado silêncio. E ali se deixa ficar imóvel. Não quer que se aperceba que não sabe o que fazer. Ele é médico, europeu, senhor de poderosas sabedorias. Os populares ficaram mais longe, num círculo expectante. E assim decorre um tempo sem nada mais decorrer. Até que se volta a escutar, vindos de dentro do barracão, lânguidos gemidos, sinais de que o velho não deixava seus créditos machos por mãos alheias.
Escutam-se risos, o português sacode a cabeça e sorri com indulgência. A situação lhe desperta lembranças dos seus namoros com Deolinda. Lembra-se do seu quarto em Lisboa, garras de luz arranhando a noite, um bater de pilão no peito. E a doce voz que repete:
Tu és o meu anjo-da-guarda.
E a lembrança se desvanece. Aos poucos, os gemidos lhe vão parecendo algo diverso: dolorosos queixumes, primeiro; sofridos estertores, depois. Sidónio se questiona: o velho estaria nas últimas? Ao invés de namorar, estaria ele agonizando? O português aproxima-se da porta do armazém, chama por Bartolomeu. Não passa um instante e a mesma sacramental expressão atravessa o zinco:
E porquê?
O que sucedeu dentro daquele barracão nunca ninguém saberá. Uma menina de serviços, se é que houvera, tinha, entretanto, saído pelas traseiras. Ninguém lhe escutou os passos, não deixou traço. O médico entrou no recinto vazio, ajudou o velho a erguer-se do improvisado leito, uma desfiada esteira.
Eu queria sentir o coração, faz conta eu me auscultava por dentro. Entende, Doutor?
Entendo, mas podia ter avisado.
Eu queria provar a mim mesmo que não estava morto.
E correu bem?
O amor corre sempre bem.
O amor, dissera. A falta de convicção denunciava que queria dizer uma outra coisa. De qualquer modo, ele se sentia cumpridor da tradição. Dormira com uma moça tenra, ou como se diz na língua local: uma miúda ainda não quente. Agora, o médico podia ser dispensado. Ele já fora limpo, os fígados depurados, os sangues coados, os fluidos mais destilados que aguardente.
Devia fazer amor era com Munda, sua esposa.
Isso depende só de si, Doutor.
Como de mim?
Lhe dê um remédio para atenuar a cabeça dessa teimosa.
Mas que remédio?
Ora, o senhor é doutor… Medicamente-lhe lá um xarope que faça a minha Mundinha me aceitar, quem sabe, às tantinhas, ela me volta a amar?
Não há esse remédio. O senhor bem sabe…
Sempre há um remédio para tudo.
À saída do barranco, o velho se sustenta no ombro do médico, inspira fundo e fixa o olhar no alto das nuvens:
É isso, o céu?
O velho duvidava, genuinamente? O médico inspecionou-lhe o rosto, pelo canto do olho. Optou pela resposta cautelosa.
Sim, isso é o céu, lá em cima e mais em cima ainda, tudo isso é o céu.
Quem me dera ser ave. As aves não envelhecem nunca.
Suportados um no outro, vão tombaleando de regresso a casa. Ainda assim, o velho mecânico segue todo abotoado, exibindo a camisa que o médico acabara de lhe ofertar.
Não foi só ontem. Hoje também é o meu dia de anos — diz com a vaidade que ainda lhe sobra do cansaço.
À medida que sobem a encosta, porém, o regresso se torna penoso, com frequentes paragens.
Eu sinto tonturas, Doutor.
Tonturas ou vertigens?
Qual é a diferença?
Na tontura, sentimo-nos a rodar e o mundo está parado. Na vertigem, quem roda é o mundo.
No meu caso, tudo roda, Doutor. Eu e mundo bailamos juntos.
Já perto de casa são interceptados por uma mulher de mini-saia roxa e chapéu vermelho de abas largas. Dirige-se, afogueada, a Bartolomeu:
Ainda não me pagou, vovô.
O velho olha a mulher de alto a baixo e exclama:
Deviam fardar as putas. Seria mais fácil identificá-las — prossegue reclamando. — Tanto servidor público enverga fardamento, por que razão se esquecem das prostitutas?
Paga-me lá, vovô — insiste a mulher.
Não tenho nada que pagar. Suca, famba!
Adivinha-se ruidosa querela e o médico interpõe-se, receoso que Dona Munda tome conta do escândalo. Em redor, os mirones já se reajuntaram.
Eu resolvo isto, minha senhora — diz o português —, venha amanhã ao posto médico.
Quando se trata de dinheiro, amanhã é coisa que nunca chega. Eu preciso agora dessa mola.
Por favor, fale baixo — insiste o médico. — Não vale a pena acordar as pessoas lá de casa.
Só quero acordar o meu taco.
Eu vou conduzir o vovô a casa — sossega o português —, e regresso já para falar consigo.
Deixe, Doutor — afirma Bartolomeu, em voz alta —, deixe Roxinha fazer barulho que eu quero que Munda me veja, assim, todo jovem, todo cheio de peito.
Sidónio Rosa empurra Bartolomeu para dentro de casa. Pouco depois, o médico regressa à rua, remexendo os bolsos, revirando a carteira. A mulher que o esperava não tira os olhos das notas que vão sendo contadas. Os olhos engordam quando a barriga emagrece.
Ele dormiu consigo?
Comigo? Não, eu só sou intermediária. Vim da cidade montar um negócio de felicidades instantâneas aqui na Vila.
Por que me está a devolver dinheiro?
Só paga metade, esse velho passou o tempo só chamando o nome de uma outra.
Uma outra? Não seria uma Munda?
Não, ele chamava por uma tal Deolinda.
Fosse por excesso de alma ou carência de pulmões, o português abriu a boca em falso. Como o peixe, longe de água. Quase não se escutava quando inquiriu:
Deolinda, tem a certeza?
Até pediu que se fizesse escuro e que ela dissesse certas coisas… e pediu outras coisas muito estranhas…
Sidónio Rosa viu abater-se sobre si o universo. O velho invocara, em pleno namoro, o nome de sua namorada? Sentiu-se subitamente envelhecido, carecendo ele mesmo de cuidados médicos. Reentra em casa, coração desfeito, cabeça atordoada. Encontra Bartolomeu sentado na cama, de peúgas subidas, pernas abertas.
Doutor, lhe peço, me dê um banho.
Um banho?
Munda sempre diz que cheiro a podre… Assim, eu mostro que sou mais higiênico que o papel…
Sou médico, não sou enfermeiro.
O que preciso agora não é médico, nem enfermeiro. Preciso de um amigo.
E dirigiu-se, cambaleante, para a banheira. O médico ficou a vê-lo tirar as roupas, o seu vulto magro de imensa barriga num teatro de sombras chinesas.
Dar-me banho não é um pedido, é uma paga…
Não entendo.
Uma paga por um certo remédio que o senhor encontrou nesta família…
Por um remédio?
Um remédio chamado Deolinda.
Eu nem conheço a sua filha.
Eu não saio à rua, doutor, estou encarcerado neste quarto. Mas tenho ruas dentro de mim, ruas que saem de mim e me trazem notícias…
Vai galgando para a velha banheira, mãos amparando-se obsessivamente nas bermas. Sidónio Rosa retira-se, deixando-o imerso na água barrenta.
Na sala, o português procura Munda por entre a penumbra. Num gesto mecânico, as mãos nervosas repuxam os cortinados. A luz penetra de um jorro, pequenos flocos de poeira esvoaçam, tontos, pela sala. Sentada na grande cadeira, a dona da casa levanta o braço para se proteger da inundação de claridade.
Dona Munda, está tudo bem?
Tudo — responde a mulher secamente.
Não me quer perguntar nada?
Nada.
Bartolomeu já voltou, está no quarto.
Já ouvi.
Peço desculpa, Dona Munda, mas eu fico impressionado… a senhora está aí, sentada e calada, nem quis saber se o seu marido já tinha regressado.
Para mim, ele nunca chegou a sair.
Sacode um pano de pó num gesto vazio. Depois, o pano tomba, num desmaio sem peso.
Perdi a vontade de limpar a casa.
Se tivesse que arrumar não era a casa. Arrumaria, sim, as coisas que não existem, os sussurros e suspiros que se acumulam pelos cantos. Afinal, naquela casa não cheirava a coisa morta. Era o próprio cheiro da casa que tinha morrido.
Bom, eu vou ao rio. É a minha hora de ir. Depois o senhor me fala, Doutor…
Todos os fins de tarde ela vai ao rio para chorar. Que tristezas a movem, ninguém sabe. Mas desde há semanas que aquele é o seu ritual religioso: no rio, ela permanece de pé, sob a cascata, encostada ao paredão de rocha negra. E chora.
O rio me dá colo de mãe. É só isso…
O médico interrompe-lhe a saída. O rio que espere, o choro que aguarde. Há coisas urgentes para serem ditas sobre o marido, a sua intempestiva fuga, a sua recente chegada.
Tenho uma outra pergunta.
Só gosto de perguntas que não pedem respostas.
Em que momento é que deixaram de dormir juntos?
É isso que quer saber? E porquê, Doutor?
Por razões médicas. Quando é que deixaram de dormir juntos?
Quando eu descobri tudo.
Tudo o quê?
Quando, ao namorarmos, ele disse o nome dela.
O nome de quem?
Dela.
Deolinda?
Munda acena que sim. Teria sido essa a única vez que Bartolomeu saíra verdadeiramente de casa. Saíra de casa, saíra dela, saíra do mundo.
Nunca mais quis que ele me tocasse. — Falou com ele sobre o assunto? — Não, para mim estava claro. — Mas ele podia sonhar com Deolinda sem que fosse dessa maneira… — Uma mulher adivinha. Uma esposa sente. Uma mãe sabe.
É por isso que o quer matar?
Acena afirmativamente e repete: “Sim, é por isso”. Durante anos pensou que necessitava de ter mais provas do incestuoso adultério. Mas, no íntimo, Munda não queria provas. Receava que, ao ter a certeza da sua culpa, já não o quisesse mais castigar. Preferia, assim, que subsistisse uma poeira de dúvida sobre o assunto.
Outras vezes, porém, penso que já nem é preciso matá-lo. Ele deixou de saber viver.
O seu marido apenas está doente.
Essa doença não é por acaso. Fui eu que a encomendei.
Sempre os feitiços… até a senhora, Dona Munda?!
Você, Doutor, você também é um feiticeiro. Apenas tem medo dos seus poderes.
Pois, eu digo uma coisa: se quiser matar, vai ter que usar os seus próprios meios.
Pensando bem, talvez o meu marido tenha razão: eu tenho poderes de feiticeira. Por exemplo, adivinhei-o a si…
Adivinhou-me?
Sonhei que você vinha. E você trazia o remédio. O remédio, isto é, a morte…
O médico empurra o ar com ambas as mãos como se afastasse mais do que uma simples ideia. A morte? Era suposto ser o inverso: ele trazia a Vida, a cura, a morte da Morte.
E agora, com licença, Doutor, eu vou. Por favor, feche as cortinas de novo.
O escuro era uma espécie de vestimenta para a casa e de mortalha para os espelhos. Atravessada pela luz, a morada dos Sozinhos se expunha como uma obscenidade.
Agora, vou. O senhor não quer esperar-me, aqui?
Onde vai?
Já disse, vou ao rio, não demoro.
Eu espero.
Quando voltar, já choradinha, vou-lhe contar mais histórias sobre Deolinda. E lhe mostro mais coisas.
Mais coisas?
Mais fotos dela.
Mia Couto, in Venenos de Deus, remédios do Diabo

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