sábado, 7 de abril de 2018

Franqueza para machucar

Os casais terminam se odiando porque eles se reduzem. Se no começo ambos enxergam apenas o lado bom e se apaixonam, com a convivência, tomam gosto pela agressão gratuita. Não que o lado bom tenha desaparecido, é que não tem mais graça.
Com o pretexto da franqueza, preparam o veneno. Há uma esperança enganosa de que o pedido de desculpas apague a grosseria, que a compreensão abole a ofensa, que a cumplicidade é maior do que as adversidades.
Não fazem por mal, mas fazem. Espancam o primeiro que aparece pela frente. O primeiro que aparece é sempre um ou o outro. Afinal, são os únicos que estão em casa.
Como se conhecem perfeitamente, os dois passam a listar os defeitos numa discussão ou numa tola conversa. Como se os defeitos dependessem de reprise.
Ele dá uma opinião sobre o casamento e ela o desqualifica, avisando que ele não tem base moral na família para dizer isso. E mexe os galhos podres sobre sua cabeça.
Ela chega com mechas no cabelo e ele lembra que é a terceira vez em duas semanas que ela volta do salão com um novo corte.
Ele põe uma camisa listrada todo feliz e ela pergunta se ele sairá desse modo ridículo.
Ela está nervosa com as contas do cartão e ele vem com um sermão de que ela gasta o desnecessário, sendo que parte do superficial são o sorvete e as frescuras que ele pede no mercado.
Ele recebe um elogio de uma mulher e ela, de pronto, chama a menina, que nem conhece, de piranha e interesseira.
Ela estaciona o carro numa brecha impossível. Ao invés de elogiar, ele declara que é o mínimo que se pode fazer depois de 45 horas de autoescola.
Ele se sente um pouco mais musculoso, ela logo encontra com as mãos:
Ainda tem uma barriguinha.
Ela compra lingerie e se assanha de perfume, ele confessa que teve um dia cheio. Um dia cheio que não apaga a televisão.
Ele tenta dançar, depois de inúmeras reclamações de que não se mexe em festas.
O que você achou?, pergunta, eufórico, depois da balada.
Melhor ficar parado, ela diz, categórica.
Ela é convidada para uma festa dos colegas e ele transforma sua ida em favor e sacrifício. Claro que ela não se diverte, termina entretendo o marido que não deseja se enturmar.
Os casais não necessitam simular quando não se tem vontade. Mas é sadomasoquismo reprovar de modo permanente quem amamos.
Ninguém ajudará sua companhia falando a verdade, mas sendo a verdade.
Fabrício Carpinejar, in Ai meu Deus, ai meu Jesus

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