“É
essa rua?”, perguntei ao motorista.
Duas
décadas atrás era uma das ruas mais bucólicas da zona oeste.
Observei o que restava do casario baixo, um e outro sobrado
sobrevivente, e notei, sem surpresa, a ausência de árvores. Um
parque próximo à marginal do rio Pinheiros é um oásis no bairro
barulhento.
Aquela
rua não estava no meu itinerário, nem era o meu destino. Nosso
itinerário mudou quando o motorista começou a contar sua história.
Uma história de um brasileiro que atravessou o oceano atrás de
emprego, de grana, de uma vida melhor.
Abrantes
teve tudo isso quando chegou à Califórnia. Primeiro ele trabalhou
como jornaleiro: acordava às cinco da manhã e deixava pilhas de
jornal em dezenas de lugares, mas esse emprego dava pouco dinheiro.
Morava num bairro latino de Compton, subúrbio paupérrimo de Los
Angeles.
“Em
Compton tem gente de toda parte, até da Ásia”, ele disse. “A
violência lá é brasileira, gangues mexicanas pra dar com pau. Os
caras só andam armados, são loucos por armas, nunca vi tanta arma.
Mas quando eles sabem que você é brasileiro e não quer encrenca, a
coisa fica mais fácil.”
Abrantes
conheceu um mexicano, entregador de pizza, e se apresentou ao gerente
da pizzaria. Disse que na América o destino de brasileiros pobres é
ser entregador de pizza. Ele ganhava em cinco dias o que ganharia em
um mês de trabalho no Brasil. Mas ralava dia e noite, só descansava
uma segunda-feira por mês. Um ano depois, a namorada viajou para
Compton.
“Não
aguentou três semanas”, ele disse. “Voltou para São Paulo com
os quatro mil dólares que eu tinha economizado. Disse pra ela: ‘Dá
a metade pra minha mãe’. Me deixou sozinho na batalha, e eu morria
de saudade dela e da velha. Quando tirei uma semana de férias, fui a
Las Vegas, fiquei num hotel barato, uns trinta dólares a diária.
Joguei, me diverti, perdi quatrocentos dólares na jogatina e voltei
para a pizzaria. Uma noite, eu ia sair para fazer uma entrega em
Beverly Hills, quando vi um monumento na porta da pizzaria. Sabe quem
era? Raquel Welch, doutor.”
“Não
sou doutor”, eu disse.
“A
própria, doutor. A pizza dançou nos meus braços. Meu amigo
mexicano me disse: ‘Es la mujer del patrón, hombre’. Aí
eu soube que o meu patrão tinha dezenas de pizzarias na Califórnia.
Raquel usava um vestido prateado, muito chique, parecia uma
serpente.”
“Que
maravilha, eu disse. Mas não era a filha dela?”
“Não,
era ela, a Raquel, de carne e osso. Ia pedir um autógrafo, mas achei
que o patrão não ia gostar e desisti. Depois veio a crise
econômica… E a saudade aumentou. Era pizza demais na minha vida.
Comia e entregava pizza, meu corpo cheirava a pizza. Meu mundo era só
pizza…”
“Pizza
e muita saudade”, eu disse.
“De
minha mãe, aquela senhora que o doutor está vendo na janela. Também
sentia saudade dessa rua, dos botecos, da loucura de São Paulo.”
“E
de sua namorada, é claro.”
“Uma
safada, doutor. Embolsou os quatro mil dólares, deixou minha mãe a
pão e água, coitada. Diz que abriu um salão de beleza em Vila
Esperança. Era o sonho dela. Mas consegui juntar uma grana e comprei
este carro. Rodo dia e noite, mas venho jantar com a minha velha,
durmo de meia-noite às seis da manhã e saio de novo. Vamos tomar um
café?”
Saltamos
e entramos na casa. Uma casinha modesta, com um pequeno jardim na
entrada: bananeiras malcuidadas, sem flores, as folhas queimadas pelo
frio, aqui e ali umas avencas pálidas espremidas em latas
enferrujadas.
A
mãe era uma mulher gorda, simpática e tão vesga que eu ficava
desnorteado quando olhava para mim. Me abraçou como se eu fosse um
velho amigo de Abrantes. Serviu-nos café e bolo de fubá, disse que
o filho era um rapaz lutador, falava inglês e espanhol, e ganhara um
dinheirinho nos Estados Unidos.
Um
cachorro vira-lata, já velho, veio lamber meus sapatos; depois
cheirou minha calça, rondou meu corpo, deu um salto capenga e caiu
na minha barriga. Me levantei para me livrar do bicho fedorento.
“Ele
também conheceu Beverly Hills”, disse a mãe.
“O
cachorro?”
“Não,
o cachorro nunca saiu daqui. Meu filho é que entrou em muitas
mansões de Beverly Hills. Mas o bom mesmo é a rua Sumidouro. Não
é, filho? É aqui que mora a mamãe.”
“O
doutor já sabe disso, mãe.”
“De
vez em quando meu filho traz um passageiro pra me conhecer”, ela
disse. “Fico tão orgulhosa…”
Agradeci
o café e o bolo, tirei a carteira para pagar a corrida, mas Abrantes
recusou. Insisti em pagar.
“De
jeito nenhum. Na próxima o doutor paga”, ele disse. E me entregou
um cartão.
Fui
a pé para casa. Minha roupa cheirava a vira-lata sujo. Isso é o de
menos, pensei. Porque não é todo dia que você pega um táxi,
conhece um brasileiro que regressou à pátria para morar com a mãe,
come dois pedaços de um delicioso bolo de fubá e ainda encontra
assunto para escrever uma crônica.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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