quarta-feira, 4 de abril de 2018

Beverly Hills e a mãe da Rua Sumidouro

É essa rua?”, perguntei ao motorista.
Duas décadas atrás era uma das ruas mais bucólicas da zona oeste. Observei o que restava do casario baixo, um e outro sobrado sobrevivente, e notei, sem surpresa, a ausência de árvores. Um parque próximo à marginal do rio Pinheiros é um oásis no bairro barulhento.
Aquela rua não estava no meu itinerário, nem era o meu destino. Nosso itinerário mudou quando o motorista começou a contar sua história. Uma história de um brasileiro que atravessou o oceano atrás de emprego, de grana, de uma vida melhor.
Abrantes teve tudo isso quando chegou à Califórnia. Primeiro ele trabalhou como jornaleiro: acordava às cinco da manhã e deixava pilhas de jornal em dezenas de lugares, mas esse emprego dava pouco dinheiro. Morava num bairro latino de Compton, subúrbio paupérrimo de Los Angeles.
Em Compton tem gente de toda parte, até da Ásia”, ele disse. “A violência lá é brasileira, gangues mexicanas pra dar com pau. Os caras só andam armados, são loucos por armas, nunca vi tanta arma. Mas quando eles sabem que você é brasileiro e não quer encrenca, a coisa fica mais fácil.”
Abrantes conheceu um mexicano, entregador de pizza, e se apresentou ao gerente da pizzaria. Disse que na América o destino de brasileiros pobres é ser entregador de pizza. Ele ganhava em cinco dias o que ganharia em um mês de trabalho no Brasil. Mas ralava dia e noite, só descansava uma segunda-feira por mês. Um ano depois, a namorada viajou para Compton.
Não aguentou três semanas”, ele disse. “Voltou para São Paulo com os quatro mil dólares que eu tinha economizado. Disse pra ela: ‘Dá a metade pra minha mãe’. Me deixou sozinho na batalha, e eu morria de saudade dela e da velha. Quando tirei uma semana de férias, fui a Las Vegas, fiquei num hotel barato, uns trinta dólares a diária. Joguei, me diverti, perdi quatrocentos dólares na jogatina e voltei para a pizzaria. Uma noite, eu ia sair para fazer uma entrega em Beverly Hills, quando vi um monumento na porta da pizzaria. Sabe quem era? Raquel Welch, doutor.”
Não sou doutor”, eu disse.
A própria, doutor. A pizza dançou nos meus braços. Meu amigo mexicano me disse: ‘Es la mujer del patrón, hombre’. Aí eu soube que o meu patrão tinha dezenas de pizzarias na Califórnia. Raquel usava um vestido prateado, muito chique, parecia uma serpente.”
Que maravilha, eu disse. Mas não era a filha dela?”
Não, era ela, a Raquel, de carne e osso. Ia pedir um autógrafo, mas achei que o patrão não ia gostar e desisti. Depois veio a crise econômica… E a saudade aumentou. Era pizza demais na minha vida. Comia e entregava pizza, meu corpo cheirava a pizza. Meu mundo era só pizza…”
Pizza e muita saudade”, eu disse.
De minha mãe, aquela senhora que o doutor está vendo na janela. Também sentia saudade dessa rua, dos botecos, da loucura de São Paulo.”
E de sua namorada, é claro.”
Uma safada, doutor. Embolsou os quatro mil dólares, deixou minha mãe a pão e água, coitada. Diz que abriu um salão de beleza em Vila Esperança. Era o sonho dela. Mas consegui juntar uma grana e comprei este carro. Rodo dia e noite, mas venho jantar com a minha velha, durmo de meia-noite às seis da manhã e saio de novo. Vamos tomar um café?”
Saltamos e entramos na casa. Uma casinha modesta, com um pequeno jardim na entrada: bananeiras malcuidadas, sem flores, as folhas queimadas pelo frio, aqui e ali umas avencas pálidas espremidas em latas enferrujadas.
A mãe era uma mulher gorda, simpática e tão vesga que eu ficava desnorteado quando olhava para mim. Me abraçou como se eu fosse um velho amigo de Abrantes. Serviu-nos café e bolo de fubá, disse que o filho era um rapaz lutador, falava inglês e espanhol, e ganhara um dinheirinho nos Estados Unidos.
Um cachorro vira-lata, já velho, veio lamber meus sapatos; depois cheirou minha calça, rondou meu corpo, deu um salto capenga e caiu na minha barriga. Me levantei para me livrar do bicho fedorento.
Ele também conheceu Beverly Hills”, disse a mãe.
O cachorro?”
Não, o cachorro nunca saiu daqui. Meu filho é que entrou em muitas mansões de Beverly Hills. Mas o bom mesmo é a rua Sumidouro. Não é, filho? É aqui que mora a mamãe.”
O doutor já sabe disso, mãe.”
De vez em quando meu filho traz um passageiro pra me conhecer”, ela disse. “Fico tão orgulhosa…”
Agradeci o café e o bolo, tirei a carteira para pagar a corrida, mas Abrantes recusou. Insisti em pagar.
De jeito nenhum. Na próxima o doutor paga”, ele disse. E me entregou um cartão.
Fui a pé para casa. Minha roupa cheirava a vira-lata sujo. Isso é o de menos, pensei. Porque não é todo dia que você pega um táxi, conhece um brasileiro que regressou à pátria para morar com a mãe, come dois pedaços de um delicioso bolo de fubá e ainda encontra assunto para escrever uma crônica.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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