sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Cueca

Os adultos continuavam à mesa, bebendo, falando e rindo, enquanto eu, metido num canto sob o vão da escada, analisava, curioso, a cueca que tinha acabado de ganhar de Natal. Conjecturava, mais especificamente, a respeito de uma pequena e retangular incongruência, costurada em seu elástico: uma etiqueta.
Durante meus primeiros anos de vida, a função das cuecas foi um enigma. Pra que usar uma sunga de algodão por baixo da calça, a apertar-nos o pinto, o saco e a bunda, se a todas essas partes do corpo era tão agradável o toque macio do moletom? O mistério arrastou-se até o dia em que meu pai, ouvindo-me reclamar da etiqueta de uma bermuda, a me pinicar as costas, sugeriu que eu vestisse uma cueca. Das trevas fez-se a luz. Então era isso, claro: elas existiam para nos proteger das etiquetas!
Como eram engenhosos os adultos: para cada doença um remédio, para cada problema uma solução, cada coisa no mundo tinha uma função. Assim segui pensando até aquele Natal, quando abri o pacotinho de plástico e fui novamente engolfado pela noite da ignorância: se me dessem um cachorro com etiqueta, tudo bem; um carro com etiqueta, numa boa; um caqui, sem problemas: mas uma cueca, cuja função era exatamente…
Decidido a resgatar a lógica perdida, fui até a mesa de jantar, cavei uma brecha entre meu tio e minha mãe e, crente de que a etiqueta falaria por si, coloquei a cueca no meio da mesa. Minha mãe a pegou, esticou, olhou de um lado, do outro, olhou pra mim:
Que que foi, Antonio?
A etiqueta, mãe!
Tô vendo, e daí?
Ué, a cueca não é pra etiqueta não pinicar?
Os adultos riram, mas não me intimidei:
Se não é pra proteger da etiqueta, pra que que serve a cueca?
As risadas cessaram e depois de um breve silêncio todos começaram a palpitar ao mesmo tempo.
Serve pra não prender o pinto no zíper — disse uma tia.
É pra deixar tudo juntinho e não ficar balançando de um lado pro outro — sugeriu meu avô.
É pra proteger — opinou um primo.
Prender no zíper? Mas e quando usava moletom ou short? Deixar tudo juntinho? Mas o legal era que aquilo balançava, ué. Proteger o pinto? Do quê? De quem? E se de fato algo ou alguém resolvesse atacá-lo, cobri-lo com aquela fina camada de algodão não me parecia a melhor estratégia. (Uma cueca de aço, como a de uma armadura, seria muito mais útil — e, pensando bem, muito mais legal.)
Não podia aceitar aquelas respostas, tanto por serem ruins quanto por serem muitas: cada coisa neste mundo tinha uma explicação e eles não sabiam me dar a da cueca. Na volta ao vão da escada, passei pela cozinha, peguei uma tesoura e, encolhido em meu rincão, cortei rente à costura a fonte da minha angústia. Agora a etiqueta não me causaria incômodo algum. Algo mais sutil, porém, passaria a me pinicar, daquela noite em diante: se eles não sabiam nem a função da cueca, como confiar no resto?
Antonio Prata, in Nu, de botas

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