Os
adultos continuavam à mesa, bebendo, falando e rindo, enquanto eu,
metido num canto sob o vão da escada, analisava, curioso, a cueca
que tinha acabado de ganhar de Natal. Conjecturava, mais
especificamente, a respeito de uma pequena e retangular
incongruência, costurada em seu elástico: uma etiqueta.
Durante
meus primeiros anos de vida, a função das cuecas foi um enigma. Pra
que usar uma sunga de algodão por baixo da calça, a apertar-nos o
pinto, o saco e a bunda, se a todas essas partes do corpo era tão
agradável o toque macio do moletom? O mistério arrastou-se até o
dia em que meu pai, ouvindo-me reclamar da etiqueta de uma bermuda, a
me pinicar as costas, sugeriu que eu vestisse uma cueca. Das trevas
fez-se a luz. Então era isso, claro: elas existiam para nos proteger
das etiquetas!
Como
eram engenhosos os adultos: para cada doença um remédio, para cada
problema uma solução, cada coisa no mundo tinha uma função. Assim
segui pensando até aquele Natal, quando abri o pacotinho de plástico
e fui novamente engolfado pela noite da ignorância: se me dessem um
cachorro com etiqueta, tudo bem; um carro com etiqueta, numa boa; um
caqui, sem problemas: mas uma cueca, cuja função era exatamente…
Decidido
a resgatar a lógica perdida, fui até a mesa de jantar, cavei uma
brecha entre meu tio e minha mãe e, crente de que a etiqueta falaria
por si, coloquei a cueca no meio da mesa. Minha mãe a pegou,
esticou, olhou de um lado, do outro, olhou pra mim:
— Que
que foi, Antonio?
— A
etiqueta, mãe!
— Tô
vendo, e daí?
— Ué,
a cueca não é pra etiqueta não pinicar?
Os
adultos riram, mas não me intimidei:
— Se
não é pra proteger da etiqueta, pra que que serve a cueca?
As
risadas cessaram e depois de um breve silêncio todos começaram a
palpitar ao mesmo tempo.
— Serve
pra não prender o pinto no zíper — disse uma tia.
— É
pra deixar tudo juntinho e não ficar balançando de um lado pro
outro — sugeriu meu avô.
— É
pra proteger — opinou um primo.
Prender
no zíper? Mas e quando usava moletom ou short? Deixar tudo juntinho?
Mas o legal era que aquilo balançava, ué. Proteger o pinto? Do quê?
De quem? E se de fato algo ou alguém resolvesse atacá-lo, cobri-lo
com aquela fina camada de algodão não me parecia a melhor
estratégia. (Uma cueca de aço, como a de uma armadura, seria muito
mais útil — e, pensando bem, muito mais legal.)
Não
podia aceitar aquelas respostas, tanto por serem ruins quanto por
serem muitas: cada coisa neste mundo tinha uma explicação e eles
não sabiam me dar a da cueca. Na volta ao vão da escada, passei
pela cozinha, peguei uma tesoura e, encolhido em meu rincão, cortei
rente à costura a fonte da minha angústia. Agora a etiqueta não me
causaria incômodo algum. Algo mais sutil, porém, passaria a me
pinicar, daquela noite em diante: se eles não sabiam nem a função
da cueca, como confiar no resto?
Antonio
Prata, in Nu, de botas
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