Eu
queria um dia fazer uma crônica como uma valsa antiga. Que
rodopiasse pela página como, digamos, um velho comendador de fraque
e a sua jovem amiga. Cheia de rimas como quimera e primavera. Com
passos e compassos, ah quem me dera.
Talco
nos decotes, virgens suspirosas e uma sugestão de intriga.
Os
parágrafos seriam verso e figurações. No meio um lustre, na tuba
um gordo e em cada peito mil palpitações. Os namorados trocariam
olhares. As tias e os envergonhados nos seus lugares. E de repente
uma frase perderia o fio, soltando sílabas por todos os salões.
A
segunda parte me daria um nó.
Os
pares param, o maestro espera e ninguém tem dó.
Dou
ré, vou lá, já não caibo em mi.
E
então decreto - vá fá - é cada um por si!
Um,
dois, três.
Um,
dois, três.
A
minha orquestra seria toda de professores. Um de desenho, três de
latim, cinco de português e todos amadores. O baterista cheiraria
coca. O contrabaixista não parece o Loca? E o gordo da tuba um duque
da Bavária nos seus últimos estertores.
Um
cadete rouba o amor da filha de um magnata. Pescoço de alabastro,
boca de rubi e os olhos de uma gata. O namorado, despeitado, urde sua
vingança.
É
quase meia-noite e segue a contradança. O pai da moça dorme nos
seus sete queixos e sonha com uma negociata.
No
avarandado branco, onde vão ver a Lua
A
moça e o cadete, que a imagina nua,
Beijam-se
perdidamente a três por quatro.
E
o segundo traído sou eu, que não encontro rima para “quatro”.
Um,
dois, três.
Um,
dois, três.
Um
violinista, de improviso, olha o relógio e perde um bemol. poucas
linhas para acabar meu espaço e surgir o sol. Lá fora, o par
apaixonado. De tanto amor nem olha para o lado. Não vê o despeitado
que se aproxima, quieto e encurvado como um caracol.
Eu
mesmo me concedi esta valsa e, portanto, tenho a decisão. Que arma
usará o traído na sua vil ação? Uma adaga, fina e reluzente?
Combina mais com o requintado ambiente. Mas se errar o passo e o alvo
o vilão e, abrindo um filão, conspurcar o alvo chão?
Um
tiro na nuca é mais ligeiro
Mais
prático, moderno e certeiro.
Mas,
meu Deus, o que é que eu estou fazendo?
Comecei
com uma singela valsa e já tem gente morrendo! Um, dois, três.
Um,
dois, três.
Eu
só queria fazer uma crônica como uma valsa antiga. Que rodopiasse
pela página como um comendador cansado e sua compreensiva amiga.
Cheia de rimas sem compromisso aparente. Nem com couro, nem com
prata, nem com a crise do Ocidente. Decotes bocejando. Virgens
sonolentas e nem uma sugestão de briga.
Um,
dois, três.
Etc.
Luís
Fernando Veríssimo, in Comédias para se ler na escola
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