Observou
a jovem parada na esquina, aproximou-se, solícito.
– Vou
ajudá-la a atravessar a rua!
– Não
quero atravessar coisa nenhuma.
– Claro
que quer. É que aqui o trânsito é infernal. Mais de dez foram
atropelados nessa esquina.
– Meu
senhor! Estou esperando uma pessoa! Não quero atravessar a rua.
– Vai
atravessar! Fique calma, sei como trabalhar aqui, é o meu ponto.
–
Ponto?
– De
ação. Cada um de nós tem um ponto. Ganhei esse, tive sorte. É um
belo ponto!
–
Ganhou o que de quem? Surtou?
Ele
mostrou-se irritado. Estava tentando ajudar, era a sua missão e
recebia a recusa, a rejeição, era mal interpretado. Bem que havia
sido alertado. O ser humano vive uma fase ruim, ninguém quer se
abrir com os outros, desconfia-se de todos os gestos. Ele via que a
jovem estava ansiosa para atravessar, esperava uma oportunidade, mas
os carros não davam vez, era um egoísmo só. Estacionavam
para-choque com para-choque e riam de quem não conseguia passar
entre eles. Outros fingiam que paravam e, quando a pessoa colocava os
pés na rua, arrancavam com os pneus cantando, divertiam-se com os
sobressaltos, os sustos. Certa vez, uma velha que voltava do
supermercado atirou ao ar as compras, os ovos se quebraram. Desde
então, ela costuma ficar por ali, à espreita, e joga ovos podres
nas capotas dos carros, nos para-brisas. Quando tem a sorte de
encontrar janelas abertas – coisa rara, hoje, uma vez que todos
temem assaltos – joga os ovos no colo das pessoas e fica
antecipando o horror pelo fedor.
– Por
que você é grosseira com uma pessoa que procura fazer o bem?
– Você
não quer fazer o bem! Quer encher o meu saco! Essa cidade anda cheia
de loucos e não tem ninguém para nos defender.
– Louca
é você, que tenta atravessar a rua, não consegue e recusa a ajuda.
Finge que não quer atravessar, para não ficar me devendo um favor.
Pensa que vou pedir dinheiro. Não quero nada. Nada! Minha recompensa
eu sei qual é ao fazer o bem.
– Você
me conhece?
– Não!
– Sabe
onde moro? Onde vou?
– Não.
– Então
não pode saber se quero ou não atravessar a rua.
– Minha
menina! É uma coisa tão fácil atravessar essa rua. Por que não
enfrenta logo o problema?
– Odeio
que me chamem de menina! Odeio. Além disso, não existe problema.
Nunca foi, nunca será. Jamais atravessarei essa rua, não quero, não
vou, não vou, não vou…
– Está
ficando histérica. E tudo por cinco metros.
– Podia
ser mil quilômetros.
– Não
existem ruas com mil quilômetros de largura. Conhece alguma?
– Estou
falando em sentido figurado!
“Ela
não me entende e nem eu a ela”, pensou o homem, sem desanimar.
Tinha sido alertado que era assim mesmo. Uma luta. Guerra a ser
travada todos os dias, em todas as ruas. Humanos não compreendem
humanos, nem querem entender. Qual a maneira correta de agir? Seria
uma vergonha abrir o Manual na frente da jovem e consultar as regras.
Ele tinha certeza de que existia um capítulo denominado “Maneiras
certas para ajudar pessoas a atravessar as ruas”. Com itens
precisos sobre cegos, deficientes físicos, mentais, pessoas normais,
arredias, intransigentes, intolerantes, indecisas, chatas,
pernósticas, petulantes, arrogantes, tímidas, insolentes, beatas.
Era tão complexo o Manual, passara o mês inteiro a ler e a tentar
decorar, fazia confusão, eram mais de mil páginas em papel-bíblia.
A determinação era expressa: jamais consultar as normas diante dos
necessitados. Indicaria insegurança, incompetência. E se corresse,
por um instante, ao arbusto atrás do qual se escondia a velha que
atirava ovos? No entanto, a velha era irascível. Assim que ele
entrou no arbusto, ela gritou: “Fora, fora, fora, pusilânime. Vá
cumprir sua tarefa, ajudar as pessoas a atravessar a rua. Faz dias
que não cumpre o seu dever. Fora, fora!”. Com medo que ela
atirasse um ovo podre fedorento, ele se afastou. Andou um pouco,
escondeu-se no umbral de uma casa de tijolos avermelhados e, de
costas para que a jovem não visse, consultou o Manual. Quatro mil
páginas. Custou a encontrar o parágrafo que se referia a
Relutantes. Leu uma, duas vezes para certificar-se que faria a ação
correta e voltou. O Manual recomendava que poderia usar força,
abusar da violência caso o relutante recusasse. Era o que faria. A
jovem ia atravessar na porrada! Disposto a agarrá-la, chegou à
esquina. Não a viu. Mas ouviu.
– Olá,
olá!
A
jovem estava do outro lado da rua.
– Viu?
Atravessei, sem precisar de você.
–
Então, mentiu! Queria mesmo atravessar.
–
Naquela hora, não queria. Quis depois!
– Minha
intuição estava certa! Você não podia fazer isso.
– Fiz.
Você é incompetente. Perdeu a sua ação de hoje.
–
Maldita! Amaldiçoada sejas! Me enganou.
Sabia. Sabia de tudo!
Ela
riu, abriu a bolsa, exibiu triunfante um livro azul-marinho.
– Segui
o meu Manual. Ele é o contrário do seu!
Ignácio
de Loyola Brandão, in Cadeiras Proibidas
Qual a temática explorada pelo autor e sua relevância?
ResponderExcluir