Giordano
Bruno foi queimado vivo em 1600. Depois de preso e processado em
Veneza, foi supliciado em Campo dei Fiori, condenado à morte pelo
Santo Ofício como “frade apóstata”, “herético impenitente,
pertinaz e obstinado”.
Em
meu pequeno quarto em Três de Maio, adolescente imberbe e insciente
das trapaças da vida, das injustiças que podemos receber das
pessoas mais próximas, dos amigos mais chegados, dos amores mais
intensos, eu imaginava a fogueira em que o filósofo padeceu. Eu o
via com os cabelos incendiados, a pele tostada e o orgulho nos
lábios.
Não
se pede misericórdia dos injustos, não se dobra a cerviz a quem nos
quer humilhar, não se muda de convicções científicas pela força,
mas pela superioridade do argumento contraditório. O que os
pré-socráticos ensinaram, Bruno compreendeu. E, em muitos sentidos,
pavimentou o caminho para Bacon e Descartes. Por pensar por conta
própria, transformou-se em carne viva e deixou de existir, e só
existiu para que Descartes pudesse pensar que o pensamento é que
constitui a verdadeira existência.
Fascinado
pela figura histórica de Giordano Bruno, logo procurei ler o que
pude e o que dele havia na biblioteca pública da cidade. Não
entendi muita coisa, pois o jovem de formação precária que eu era
não dominava a escolástica, o latim, a metafísica medieval. Mas se
não soube admirar-lhe a profundidade filosófica, soube, sim, e
muito, reconhecer-lhe o talento linguístico, a beleza sintática e a
riqueza imagética (refiro-me, aqui, aos tropos e não a sua
imaginação, que, aliás, era também prodigiosa).
Sei
que a maior parte de meus poucos alunos não leu a obra de Giordano
Bruno. Não os inculpo. Culpa tem o sistema educacional brasileiro,
culpa têm as novas pedagogias, que são aplicadas em nosso país com
a eficiência dos chás para emagrecer, culpa têm os pais, que
preferem o passeio no shopping com os filhos em vez da biblioteca
pública, dos museus e das galerias de arte.
Transcrevo-lhes
uma pequena passagem que me deu forças para enfrentar a mediocridade
geral em que vivia e me serviu de parâmetro ético nessa aventura de
ser escritor. Ela se encontra na introdução da “Epístola
preambular”, que abre o livro De l´infinito, universo e mondi,
publicado em 1584:
“Se
eu, ilustríssimo Cavaleiro (ele se dirigia ao Cavaleiro da Ordem do
Rei Cristianíssimo, o Senhor Michel de Castelnau, mecenas),
manejasse o arado, apascentasse um rebanho, cultivasse uma horta,
remendasse um paletó, ninguém faria caso de mim, raros me
observariam, poucos me censurariam, e facilmente poderia agradar a
todos. Mas, por eu ser delineador do campo da natureza, atento ao
alimento da alma, ansioso da cultura do espírito e estudioso da
atividade do intelecto, eis que me ameaça quem se sente visado, me
assalta quem se vê observado, me morde quem é atingido, me devora
quem se sente descoberto. E não é só um, não são poucos, são
muitos, são quase todos. Se quiserdes saber porque isto acontece,
digo-vos que a razão é que tudo me desagrada, que detesto o vulgo,
a multidão não me contenta, e só uma coisa me fascina: aquela, em
virtude da qual me sinto livre em sujeição, contente em pena, rico
na indigência e vivo na morte; em virtude da qual não invejo
aqueles que são servos na liberdade, que sentem pena no prazer, são
pobres na riqueza e mortos em vida, pois que têm no próprio corpo a
cadeia que os acorrenta, no espírito o inferno que os oprime, na
alma o error que os adoenta, na mente o letargo que os mata, não
havendo magnanimidade que os redima, nem longanimidade que os eleve,
nem esplendor que os abrilhante, nem ciência que os avive. Daí,
sucede que não arredo o pé do árduo caminho, por cansado; nem
retiro as mãos da obra que se me apresenta, por indolente; nem qual
desesperado, viro as costas ao inimigo que se me opõe, nem como
deslumbrado, desvio os olhos do divino objeto: no entanto, sinto-me
geralmente reputado um sofista, que mais procura parecer sutil do que
ser verídico; um ambicioso, que mais se esforça por suscitar nova e
falsa seita do que por consolidar a antiga e verdadeira; um
trapaceiro que procura o resplendor da glória impingindo as trevas
dos erros; um espírito inquieto que subverte os edifícios da boa
disciplina, tornando-se maquinador de perversidade. Oxalá, Senhor,
que os santos numes afastem de mim todos aqueles que injustamente me
odeiam; oxalá que me seja sempre propício o meu Deus; oxalá que me
sejam favoráveis todos os governantes do nosso mundo; oxalá que os
astros me tratem tal como à semente em relação ao campo, e ao
campo em relação à semente, de maneira que apareça no mundo algum
fruto útil e glorioso do meu labor, acordando o espírito e abrindo
o sentimento àqueles que não têm luz de intelecto; pois, em
verdade, eu não me entrego a fantasias, e se erro, julgo não errar
intencionalmente; falando e escrevendo, não disputo por amor da
vitória em si mesma (pois que todas as reputações e vitórias
considero inimigas de Deus, abjetas e sem sombra de honra, se não
assentarem na verdade), mas por amor da verdadeira sapiência e
fervor da verdadeira especulação me afadigo, me apoquento, me
atormento. É isto que irão comprovar os argumentos da demonstração,
baseados em raciocínios válidos que procedem de um juízo reto,
informado por imagens não falsas, que, como verdadeiras
embaixadoras, se desprendem das coisas da natureza e se tornam
presentes àqueles que as procuram, patentes àqueles que as miram,
claras para todo aquele que as aprende, certas para todo aquele que
as compreende”.
Quatrocentos
e vinte e seis anos depois dessas palavras, outras palavras não são
necessárias. Calo-me, sob o olhar sereno do filósofo, em meio ao
fogo.
Charles
Kiefer, in Para ser escritor
Nenhum comentário:
Postar um comentário