A vida,
que é, antes de tudo, o que podemos ser, vida possível, é
também, e por isso mesmo, decidir entre as possibilidades o que em
efeito vamos ser. Circunstâncias e decisão são os dois elementos
radicais de que se compõe a vida. A circunstância — as
possibilidades — é o que de nossa vida nos é dado e imposto. Isso
constitui o que chamamos o mundo. A vida não elege seu mundo, mas
viver é encontrar-se, imediatamente, em um mundo determinado e
insubstituível: neste de agora. Nosso mundo é a dimensão de
fatalidade que integra nossa vida. Mas esta fatalidade vital não se
parece à mecânica. Não somos arremessados para a existência como
a bala de um fuzil, cuja trajetória está absolutamente
predeterminada. A fatalidade em que caímos ao cair neste mundo — o
mundo é sempre este, este de agora — consiste em todo o contrário.
Em vez de impor-nos uma trajetória, impõe-nos várias e,
consequentemente, nos força... a eleger. Surpreendente condição a
de nossa vida! Viver é sentir-se fatalmente forçado a exercitar a
liberdade, a decidir o que vamos ser neste mundo. Nem um só instante
se deixa descansar nossa atividade de decisão. Inclusive quando
desesperados nos abandonamos ao que queira vir, decidimos não
decidir.
É, pois, falso dizer que na vida
“decidem as circunstâncias”. Pelo contrário: as circunstâncias
são o dilema, sempre novo, ante o qual temos de nos decidir. Mas
quem decide é o nosso caráter.
Tudo isto vale também para a vida
coletiva. Também nela há, primeiro, um horizonte de possibilidades,
e, depois, uma resolução que elege e decide o modo efetivo da
existência coletiva. Esta resolução emana do caráter que a
sociedade tenha, ou, o que é o mesmo, do tipo de homem dominante
nela. Em nosso tempo, domina o homem-massa; é ele quem decide. Não
se diga que isto era o que acontecia já na época da democracia, do
sufrágio universal. No sufrágio universal não decidem as massas,
senão que seu papel consistiu em aderir à decisão de uma ou outra
minoria. Estas apresentavam seus “programas” — excelente
vocábulo. Os programas eram, com efeito, programas de vida coletiva.
Neles convidava-se a massa a aceitar um projeto de decisão.
Hoje
acontece uma coisa muito diferente. Se se observa a vida pública dos
países onde o triunfo das massas avançou mais — são os
países mediterrâneos —, surpreende notar que neles se vive
politicamente ao dia. O fenômeno é sobremaneira estranho. O Poder
público acha-se em mãos de um representante de massas. Estas são
tão poderosas, que aniquilaram toda possível oposição. São donas
do Poder público em forma tão incontrastável e superlativa, que
seria difícil encontrar na história situações de governo tão
prepotentes como estas. E, entretanto, o Poder público, o Governo,
vive ao dia; não se apresenta como um porvir franco, não significa
um anúncio claro de futuro, não aparece como começo de algo cujo
desenvolvimento ou evolução seja imaginável. Em suma, vive sem
programa de vida, sem projeto. Não sabe aonde vai porque, a rigor,
não vai, não tem caminho prefixado, trajetória antecipada. Quando
esse poder público tenta justificar-se, não alude para nada ao
futuro, senão, pelo contrário, fecha-se no presente e diz com
perfeita sinceridade: “Sou um modo anormal de governo que é
imposto pelas circunstâncias”. Quer dizer, pela urgência do
presente, não por cálculos do futuro. Daí que sua atuação se
reduza a evitar o conflito de cada hora; não a resolvê-lo, mas a
escapar dele imediatamente, empregando os meios que sejam, ainda à
custa de acumular com seu emprego maiores conflitos sobre a hora
próxima. Assim tem sido sempre o Poder público quando o exerceram
diretamente as massas: onipotente e efêmero. O homem-massa é o
homem cuja vida carece de projeto e caminha ao acaso. Por isso não
constrói nada, ainda que suas possibilidades, seus poderes, sejam
enormes.
E este tipo de homem decide em nosso
tempo.
Ortega
y Gasset, in A
Rebelião das Massas
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