Dizem
que ainda vai chover muito no sul e fazer frio até outubro. Meleca.
O jeito é se conformar tendo um bom livro nas mãos, como o
delicioso Casados com Paris, de Paula McLain, que narra, numa
biografia romanceada, como foi o primeiro casamento de Ernest
Hemingway. Ele tinha 21 anos e sonhava em ser um escritor famoso
quando conheceu Hadley Richardson, de 28, que só desejava viver um
grande amor. Eram os efervescentes anos 20, pós-Primeira Guerra.
Ambos viviam sonorizados pelo jazz, tendo como amigos Gertrude Stein
e o casal Fitzgerald, e driblavam a Lei Seca com litros de uísque,
vinho e absinto. O espírito é parecido com o do filme Meia-noite
em Paris, de Woody Allen, mas o livro vai bem mais fundo no
registro de época. Uma prosa escrita em tom de pileque, com direito
a uma ressaca braba no final.
Hemingway
era, ele próprio, um personagem fascinante: trazia à tona as
contradições mais secretas do ser humano. Sensível e rude ao mesmo
tempo, demonstrrava ser um homem com múltiplos talentos, menos o de
se adaptar a uma felicidade de butique. Corria o mundo atrás de seus
sonhos e, não os encontrando, empacotava suas coisas e voltava ao
ponto de origem, até que a próxima aventura o chamasse. Amava os
amigos, a bebida, o sexo oposto, a literatura e as touradas, não
necessariamente nessa ordem: aliás, sem ordem alguma. Ele próprio
era um animal belo, viril e destemido diante de uma arena perplexa.
Havia sobrevivido a uma guerra que tentara lhe roubar a alma.
Aprendera a se defender mesmo quando não era atacado.
Hadley
acompanhava esse ritmo entre encantada e assustada. Não era fácil
ser mulher de um homem que vivia aumentando as apostas: sentir mais,
arriscar mais. Não fosse assim, seria a morte por indignidade, como
ele definia a resignação. Ou seja, sua primeira esposa viveu no
melhor dos mundos e no pior, quase simultaneamente.
O
livro é narrado por ela, Hadley. É comovente ver sua luta interna
para manter um casamento razoavelmente dentro dos padrões sem com
isso podar o homem para o qual a felicidade não era um valor
absoluto, mas a liberdade, sim. Hemingway nunca teve dúvida de que
ser livre era bem mais necessário e menos complicado do que ser
feliz.
Fácil
para quem vivencia essa liberdade, difícil para quem tem que
engoli-la. Hadley era tão encantadora e especial quanto Hemingway,
ainda que sob outro ponto de vista. E é esse embate emocional que o
livro narra de forma adorável e ao mesmo tempo angustiante: um homem
que luta para não entregar sua alma em nome das conveniências, e
uma mulher que também não abre mão da sua, apesar das perdas que
vier a sofrer.
Quem
ganha é o leitor.
Martha
Medeiros, in A graça da coisa
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