sexta-feira, 20 de março de 2015

A prova


Pai, que mal te fiz eu para teres querido matar-me, a mim que sou o teu único filho, Mal não me fizeste, isaac, Então por que quiseste cortar-me a garganta como se eu fosse um borrego, perguntou o moço, se não tivesse aparecido aquele homem para segurar-te o braço, que o senhor o cubra de bênçãos, estarias agora a levar um cadáver para casa, A ideia foi do senhor, que queria tirar a prova, A prova de quê, Da minha fé, da minha obediência, E que senhor é esse que ordena a um pai que mate o seu próprio filho, É o senhor que temos, o senhor dos nossos antepassados, o senhor que já cá estava quando nascemos, E se esse senhor tivesse um filho, também o mandaria matar, perguntou isaac, O futuro o dirá, Então o senhor é rancoroso, Acho que sim, respondeu abraão em voz baixa, como se temesse ser ouvido, ao senhor nada é impossível, Nem um erro ou um crime, perguntou isaac, Os erros e os crimes sobretudo, Pai, não me entendo com esta religião, Hás-de entender-te, meu filho, não terás outro remédio, e agora devo fazer-te um pedido, um humilde pedido, Qual, Que esqueçamos o que passou, Não sei se serei capaz, meu pai, ainda me vejo deitado em cima da lenha, amarrado, e o teu braço levantado, com a faca a luzir, Não era eu quem estava ali, em meu perfeito juízo nunca o faria, Queres dizer que o senhor enlouquece as pessoas, perguntou isaac, Sim, muitas vezes, quase sempre, respondeu abraão, Fosse como fosse, quem tinha a faca na mão eras tu, O senhor havia organizado tudo, no último momento interviria, viste o anjo que apareceu, Chegou atrasado, O senhor teria encontrado outra maneira de te salvar, provavelmente até sabia que o anjo se ia atrasar e por isso fez aparecer aquele homem, Caim se chama ele, não esqueças o que lhe deves, Caim, repetiu abraão obediente, conheci-o ainda não era nascido, O homem que salvou o teu filho de ser degolado e queimado no molho de lenha que ele próprio havia trazido às costas, Não o foste, meu filho, Pai, a questão, embora a mim me importe muito, não é tanto eu ter morrido ou não, a questão é sermos governados por um senhor como este, tão cruel como baal, que devora os seus filhos, Onde foi que ouviste esse nome, A gente sonha, pai.”
José Saramago, in Caim

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