Avisa-se às pessoas de bem que um
mimoso bicudo desapareceu da casa de seu amo e senhor no bairro de
Ipanema. O fugitivo ainda é jovem e não atingiu a idade em que se
torna preto de bico branco.
Come alpiste e vários outros
alimentos, mas tem uma fraqueza especial por sementes de cânhamo.
Quando estas sementes lhe são oferecidas pela manhã, ele vem comer
na mão; mas uma vez alimentado não convém introduzir nem a mão
nem um dedo sequer na gaiola, pois o intruso será recebido com uma
forte bicada. Há muito, entretanto, ele não tem a sua semente
predileta, pois as autoridades (in)competentes descobriram que o
citado cânhamo, em latim Cannabis sativa, é a mesma espécie cuja
resina produz efeitos estupefacientes quando as plantas são
dissecadas e trituradas por pessoas viciosas para obter o produto
vulgarmente chamado maconha.
Meu bicudo é, de seu natural,
desconfiado e valente, já tendo derrotado em pelejas memoráveis
dois canários-da-terra e um grande pássaro-preto. É também muito
ciumento, pois parou de cantar desde o dia em que o referido
pássaro-preto foi admitido na mesma varanda onde reside e começou a
cantar alto e desafinadamente.
Apesar de seu natural aguerrido, é
propenso a folguedos juvenis. Qualquer objeto estranho que se coloque
na gaiola é inicialmente examinado de longe, primeiro com o olho
esquerdo, depois com o direito. Depois é examinado mais de perto, e
afinal recebe uma bicada.
Se o objeto não reage, e é leve, é
logo transformado em brinquedo; pedaços de barbante, principalmente
coloridos, são de agrado especial.
Dispondo de água limpa, o fugitivo se
banha diariamente, e no rigor do verão mais de uma vez por dia; já
atingiu o nível de educação em que não procura se banhar no
bebedouro nem beber a água destinada ao banho. Depois do banho faz
sua meticulosa toalete com o bico e coca várias vezes a orelha com a
patinha.
Quando está dormindo e é despertado
demonstra um terrível mau humor e se posta em atitude de defesa, de
bico aberto, produzindo um grasnar semelhante ao de uma galinha
choca.
Bem tratado é, entretanto, capaz de
gestos suaves e atitudes distintas.
O fugitivo foi criado na roça e não
conhece a topografia do Rio de Janeiro, de maneira que dificilmente
voltará a sua varanda. Caso ele venha a cair em algum alçapão, a
pessoa que o encontrar fará obra caridosa devolvendo-o ao seu dono,
que é homem já de certa idade, com a vida esburacada de tristezas e
desilusões, não possuindo gato, nem mulher, nem cachorro por falta
de espaço no lar.
O dono desolado antecipadamente
agradece.
Maio, 1954
Rubem Braga, em Recado de primavera
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