Que você viva tempo o bastante
para saber o motivo de ter nascido.
— BÊNÇÃO CHEROKEE CONCEDIDA AOS
RECÉM-NASCIDOS
Do nono ano até terminar o ensino
médio, moramos na Park Street, e depois na Parker Street, porque
fomos despejados do primeiro endereço. Na Parker Street, tínhamos
um apartamento de sótão, pequeno, com teto inclinado e apenas dois
quartos. Minha irmã Anita tinha ido para a faculdade e arranjou o
próprio apartamento. Dianne fora na frente muito tempo atrás.
Morava em Washington, D.C. Então éramos apenas eu, minhas irmãs
Deloris e Danielle, e meus pais. Meu irmão, John, nunca estava por
perto.
O auxílio do governo havia sido
cortado porque descobriram que meu pai ainda morava conosco e recebia
salário. Não era o suficiente para viver, mas era um salário. Na
época, eles cortavam o benefício e pronto. Quando fomos despejados,
arranjamos carrinhos de supermercado, colocamos neles tudo o que
conseguimos e partimos para a Parker Street, para o minúsculo
apartamento de sótão no terceiro andar. Se hoje eu tivesse que
carregar um carrinho de supermercado cheio de pertences por três
lances de escada sinuosos, não daria conta. Foi repentino assim;
tínhamos que sair. Eu estava no primeiro ano do ensino médio quando
nos puseram para fora.
Tirando o fato de não pagarmos o
aluguel, foi assim que fomos despejados: meus pais entraram em uma
briga brutal e sangrenta com Carlos, o proprietário. Talvez a briga
tenha começado por conta do aluguel. Carlos era português e tinha
um sotaque bem carregado, e obviamente sua paciência havia se
esgotado. Ele queria que um de seus parentes se mudasse para o
apartamento, e estava cansado de não receber nenhum centavo dos meus
pais. Eles sempre prometiam pagar, e daquela vez atrasaram tanto que
ele cansou. Meu pai estava convencido de que Carlos era racista.
Quando meu pai sentia qualquer sinal de que estava sendo visto como
inferior, perdia o controle. Para mim, o homem só queria receber o
aluguel.
Carlos veio com a esposa, exigindo
receber o dinheiro. Meu pai começou a discutir depois que o outro
declarou que tínhamos que sair. A discussão degringolou. Meu pai
havia chegado em casa naquele dia com um novo brinquedo, um facão,
que trazia enrolado em uma toalha, recém-afiado. Carlos viu o facão
e começou a gritar que meu pai planejava atacá-lo. Tentou
desarmá-lo, e meu pai tentou pegar a arma de volta. A esposa de
Carlos se desesperou e se atirou no meu pai também. E então veio
MaMama: sem querer ficar de fora, agarrou o marido.
A situação se transformou num cabo
de guerra com gritos, choro e xingamentos. Todo mundo gritando ordens
em inglês e português.
— Solta!
— Não! Solta você!
— Você estava tentando me matar!
— Não, não estava! Eu estava
levando ele pra casa, filho da puta!
A briga acabou com Carlos levando um
corte na parte de baixo do braço. Acho que meu pai também cortou a
mão, e, bem, fomos despejados. Carlos estava tão aliviado por irmos
embora que esse provavelmente foi o motivo de nunca ter prestado
queixa na polícia.
A essa altura, eu tentava deixar para
trás os últimos vestígios do meu mau comportamento e estava
extremamente focada em conquistar o máximo possível. Mais uma vez,
não havia percebido que meu comportamento estava diretamente ligado
ao caos que havia em minha casa. Eu era um barril de pólvora cheio
de segredos. Guardei todos eles porque assim podia seguir com a vida.
Não podia colocar para fora o que estava sentindo.
Eu me agarrava a qualquer chance
disponível de participar de algo em que pudesse deixar minha marca.
Os professores e conselheiros na Central Falls Jr. Sr. High School
eram minha esperança: o Sr. Aissis, o Sr. Yates, o Sr. Perkins, Jeff
Kenyon, Mariam Boyajian.
O Sr. Aissis, que era igualzinho a
Gene Wilder, só que menor, fora meu professor de ciências no nono
ano. Era também diretor musical e instrutor do Glee Club. Eu o
enlouquecia. Eu era ruim. Falava demais. Era a clássica garota do
teatro que precisava de um escape criativo e não conseguia
encontrar, então o criei para mim mesma, de maneira inapropriada, na
aula. Em outras palavras, eu aprontava.
Ele sempre gritava comigo. No nono
ano, me expulsou da turma e fui colocada em outra. Eu não conhecia
ninguém naquela turma de ciências, então na mesma hora fechei o
bico. Não tinha ninguém com quem aprontar.
Alguns anos depois, o Sr. Aissis foi
até uma das minhas aulas e disse:
— Viola, tenho uma coisa para você.
— O que é?
— Fui ao dentista hoje e, enquanto
estava na sala de espera, vi este panfleto, Viola.
Era um panfleto para a Arts
Recognition and Talent Search, uma competição em Miami, Flórida,
com cinco disciplinas: teatro, artes visuais, dança, música e
escrita. Cada uma tinha o próprio formato. Trinta jovens em cada
categoria seriam escolhidos para uma viagem com tudo pago para Miami.
Era reservado para alunos ingressantes do último ano do ensino
médio.
— Você poderia tentar a bolsa de
teatro — sugeriu ele.
— O que eu ganho? — perguntei.
Ele deu uma olhada no panfleto.
— Dinheiro da bolsa de estudos,
acho.
— Não posso.
Uma competição nacional? O panfleto
era grosso, e só a inscrição já continha uma lista cheia de
exigências. Enquanto o Sr. Aissis estava ali, eu a li em voz alta,
pensando, a cada palavra que pronunciava, no absurdo que seria
aquilo. Tinha que montar uma gravação de um monólogo clássico e
um contemporâneo. Tinha que preencher um formulário de inscrição
gigantesco, que incluía uma redação. E, é lógico, havia uma taxa
de inscrição.
— Não posso — repeti.
— Bom, pense no assunto — disse
ele. — Quando vi, lembrei de você. Lembrei de você, Viola.
Ele me expulsou da aula porque me
enxergou. Viu alguma coisa em mim.
Fiquei olhando para aquele papel. Por
fim, compartilhei o panfleto e sua oportunidade impossível com meu
conselheiro do Upward Bound, Jeff Kenyon. Eu podia chamar os
conselheiros do Upward Bound pelo nome. Podia ligar para Jeff no meio
do dia e dizer: “Oi, Jeff! Estou tendo uma crise de ansiedade no
meio da aula de ciências. Você pode me ajudar?” E ele ia. Ele
sempre ia.
Jeff foi a primeira pessoa a me levar
com minha irmã Deloris a uma reunião de partido político, para que
entendêssemos como funcionava uma campanha política. Ele foi a
primeira pessoa a nos levar para a Sociedade da Herança Negra de
Rhode Island, para que aprendêssemos sobre ex-escravizados
abolicionistas que sabiam ler e escrever e foram essenciais para a
libertação de outros. Por mais branco que fosse, Jeff nos ensinou
muito sobre a história negra. Ele me ouviu conversando com minha
irmã um dia no carro e entendeu nossa ignorância sobre nossa
própria história. Foi isso. Esse foi o incentivo de que ele
precisava para agir. Ele nos pegava no meio da semana, nos levava
para comer e conversava conosco para saber como estávamos.
— O que aconteceu? — perguntou
Jeff naquela semana.
— Bom, meu professor de ciências…
— E contei a ele a história, terminando com: — Mas não posso
fazer isso.
Jeff ficou em silêncio. Eu podia
vê-lo segurando a raiva.
— Deixa eu ver o panfleto. —
Depois de ver, ele perguntou: — Por que você não pode?
— Porque não tenho uma fita VHS,
Jeff.
— Quanto custa uma fita VHS?
— Bom, não sei. Mas provavelmente…
— Vou comprar uma pra você.
Silêncio.
— Bom, obrigada, mas não tenho os
15 dólares da inscrição.
— Viola, eu consigo uma isenção da
taxa para você.
Silêncio.
— Bom, Jeff, eu tenho que me filmar
fazendo dois monólogos. Onde vou filmar?
— Viola, há uma estação de TV no
campus da Rhode Island College. Conheço pessoas lá. Você pode
filmar no campus.
Depois de uma longa pausa, ele disse:
— Agora você não tem mais
desculpas.
E Jeff estava certo. Agora era hora de
eu, como ouvi pessoas negras dizerem tantas vezes, “cagar ou sair
da moita”. Então caguei.
Reuni meus monólogos. Fui à Rhode
Island College, onde Deloris estudava. Ela estava muito animada.
Fiquei trocando de roupas, cuja maioria pertencia a Deloris, no
quarto dela, procurando o visual certo. Fui à estação de TV.
Filmei o monólogo contemporâneo e o clássico. Preenchi minha
inscrição. Enviei tudo. Livre das correntes das minhas desculpas,
eu estava lidando com o assunto e exercitando minha atitude, em vez
de ficar sentada sem fazer nada. E realizar aquela ação foi por si
só uma vitória.
Só para a competição de teatro
milhares se inscreveram, mas apenas trinta seriam selecionados. Eu
não pensava ter qualquer chance, mas me orgulhava do que fizera;
concluí o trabalho duro e árduo de me inscrever.
Lembro-me de ir para casa um dia
depois da escola com minha amiga Kim Hall, como já havíamos feito
inúmeras vezes. Nesse dia em especial, conforme nos aproximávamos
da minha casa, olhei lá para a frente e de repente vi MaMama
correndo em nossa direção. Não correndo normalmente, mas a toda a
velocidade, como se sua vida dependesse disso. Vale lembrar que
MaMama é muito do interior. Enquanto ela avançava feito uma
corredora olímpica até nós, percebi que estava usando os sapatos
do meu irmão. Eu não sabia o motivo. Provavelmente não conseguira
encontrar os dela. Mas, enquanto se aproximava, vimos como ela estava
ensandecida, agitando um pedaço de papel, correndo, gritando. Era um
telegrama da Western Union, algo estranho para aqueles mais jovens do
que alguém da Geração X. Pense nisso como uma mensagem, mas em
forma física em vez da instantânea e digital. MaMama sequer parou
para recuperar o fôlego antes de revelar o conteúdo da mensagem.
“Você foi escolhida para ir para Miami, Flórida, para a
competição da Arts Recognition and Talent Search.”
Fiquei paralisada. Emudecida.
Paralisada como quando minhas irmãs gritaram para que eu jogasse a
bombinha pela janela. Paralisada como quando minha família toda
implorou para que eu pulasse do que pensamos ser nosso apartamento em
chamas. Paralisada como quando me sentei em silêncio todas aquelas
vezes que ouvi sermões dos professores, das enfermeiras e dos
diretores sobre minha falta de higiene. Mas aquele era um tipo bom de
paralisia; um tipo espetacular e glorioso. Pasma pela pura
incapacidade de acreditar na notícia que minha mãe estava me dando.
Estupefata pela ideia de que o trabalho que investi em um sonho louco
realmente deu certo. Atônita diante do fato de que indivíduos
completamente desconhecidos me viram e me julgaram digna de
participar da sua prestigiada competição.
Eu não conseguia de jeito nenhum me
ver como uma entre os poucos escolhidos, mas, das mil e duzentas
inscrições, fui uma das trinta selecionadas. Ganhei uma viagem com
tudo pago para Miami. Eu estava dentro.
Não lembro o que falei para a minha
mãe quando saí daquele estupor, mas seja lá o que tenha sido foi
acompanhado por muitos gritos, sorrisos e lágrimas. Eu era a maior
chorona.
No verão do meu último ano de ensino
médio foi a primeira vez que voei de avião. Eu me senti muito
deslocada em Miami. Aquela viagem era uma das maiores coisas que
tinham me acontecido até então. Meus dois monólogos eram de
Everyman e Runaways, que tinha muitos diálogos
incríveis sobre se sentir abandonado. Não lembro qual exatamente
apresentei. Pode ter sido “Footsteps” ou o último monólogo da
peça. Eram todos deliciosos, pois davam aos atores uma variedade de
sentimentos e emoções com os quais trabalhar e compartilhar com a
plateia. E agora eu tinha a oportunidade de compartilhar todos
aqueles sentimentos, tantos que vieram das minhas próprias
experiências, com os melhores dos melhores reunidos em Miami.
Dito isso, eu me sentia muito
deslocada perto dos maiores talentos do país. Ficamos no
recém-inaugurado hotel Hyatt Regency, em Miami. A imprensa
estava lá naquela semana, até mesmo o Good Morning America.
Excelentes atores, dançarinos, músicos e artistas visuais das
melhores escolas de arte chegaram com toda a pompa. Eu cheguei com um
vestido que tinha custado trinta dólares em uma loja no centro de
Pawtucket e um conjunto de dois dólares da Sociedade de São Vicente
de Paulo. Estava deslumbrada e totalmente despreparada, do ponto de
vista artístico. Também não estava preparada socialmente. Aqueles
jovens se sentiam à vontade, confiantes, ou pelo menos fingiam bem,
e eram barulhentos. Eu não era nenhuma dessas coisas. Além disso,
estava extremamente tímida. Eu me senti sozinha. Lembrando agora,
vejo que tinha muito mais ansiedade social que timidez. Senti que não
valia a pena revelar quem eu era de verdade. Ficava aterrorizada toda
vez que “ela” tinha que se mostrar.
Dividi quarto com uma garota da
Pensilvânia que falava sobre ganhar, sobre quem ela considerava
incrível e quem não. Ela queria muito aquilo! Fosse lá o que
“aquilo” significasse. Ela sempre se torturava após a audição
diária. Eu não entendia. Eu só estava tentando sobreviver.
Fui muito bem com meus monólogos.
Depois disso, pareceu que todo mundo queria me “conhecer”. Todo
mundo ama um vencedor. Quando eu precisava improvisar, o que amava
fazer, ficava travada. Havia improvisações de cinco minutos, três
minutos e um minuto. Depois que eu travava, um silêncio coletivo
recaía sobre mim e sobre o resto do grupo.
Foi uma semana de refeições de cinco
pratos, viagens de barco, equipes de TV, contato com a mídia…
Apesar do lapso momentâneo durante as improvisações, meu talento
estava sendo reconhecido. No entanto, meus talentos e o
reconhecimento que vieram com eles eram bem mais evoluídos que eu,
Viola. Eu não me sentia merecedora. Todos os símbolos que poderiam
me dar status? Eu nunca tivera. Agora, um deles estava ao meu
alcance.
Fui nomeada Jovem Artista Promissora e
recebi uma homenagem na prefeitura quando voltei para Central Falls.
Foi algo importante na cidade, mesmo que eu não tenha ganhado o
dinheiro da bolsa de estudos.
Se eu tivesse que criar uma fábula
sobre a minha vida, uma fantasia, diria que me vejo enfim encontrando
a Deus, falando embolado, chorando, agradecendo ao Todo-Poderoso
pelas honras, um marido fabuloso, uma filha linda, minha jornada do
nada até Hollywood, prêmios, viagens. E posso ver nitidamente o
rosto do Senhor, olhando-me, aceitando-me e dizendo: “Você nunca
me agradeceu por criá-la como VOCÊ É.”
Viola Davis, in Em busca de mim

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