segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Capítulo 11 – Ser Vista



Que você viva tempo o bastante para saber o motivo de ter nascido.
BÊNÇÃO CHEROKEE CONCEDIDA AOS RECÉM-NASCIDOS

Do nono ano até terminar o ensino médio, moramos na Park Street, e depois na Parker Street, porque fomos despejados do primeiro endereço. Na Parker Street, tínhamos um apartamento de sótão, pequeno, com teto inclinado e apenas dois quartos. Minha irmã Anita tinha ido para a faculdade e arranjou o próprio apartamento. Dianne fora na frente muito tempo atrás. Morava em Washington, D.C. Então éramos apenas eu, minhas irmãs Deloris e Danielle, e meus pais. Meu irmão, John, nunca estava por perto.
O auxílio do governo havia sido cortado porque descobriram que meu pai ainda morava conosco e recebia salário. Não era o suficiente para viver, mas era um salário. Na época, eles cortavam o benefício e pronto. Quando fomos despejados, arranjamos carrinhos de supermercado, colocamos neles tudo o que conseguimos e partimos para a Parker Street, para o minúsculo apartamento de sótão no terceiro andar. Se hoje eu tivesse que carregar um carrinho de supermercado cheio de pertences por três lances de escada sinuosos, não daria conta. Foi repentino assim; tínhamos que sair. Eu estava no primeiro ano do ensino médio quando nos puseram para fora.
Tirando o fato de não pagarmos o aluguel, foi assim que fomos despejados: meus pais entraram em uma briga brutal e sangrenta com Carlos, o proprietário. Talvez a briga tenha começado por conta do aluguel. Carlos era português e tinha um sotaque bem carregado, e obviamente sua paciência havia se esgotado. Ele queria que um de seus parentes se mudasse para o apartamento, e estava cansado de não receber nenhum centavo dos meus pais. Eles sempre prometiam pagar, e daquela vez atrasaram tanto que ele cansou. Meu pai estava convencido de que Carlos era racista. Quando meu pai sentia qualquer sinal de que estava sendo visto como inferior, perdia o controle. Para mim, o homem só queria receber o aluguel.
Carlos veio com a esposa, exigindo receber o dinheiro. Meu pai começou a discutir depois que o outro declarou que tínhamos que sair. A discussão degringolou. Meu pai havia chegado em casa naquele dia com um novo brinquedo, um facão, que trazia enrolado em uma toalha, recém-afiado. Carlos viu o facão e começou a gritar que meu pai planejava atacá-lo. Tentou desarmá-lo, e meu pai tentou pegar a arma de volta. A esposa de Carlos se desesperou e se atirou no meu pai também. E então veio MaMama: sem querer ficar de fora, agarrou o marido.
A situação se transformou num cabo de guerra com gritos, choro e xingamentos. Todo mundo gritando ordens em inglês e português.
Solta!
Não! Solta você!
Você estava tentando me matar!
Não, não estava! Eu estava levando ele pra casa, filho da puta!
A briga acabou com Carlos levando um corte na parte de baixo do braço. Acho que meu pai também cortou a mão, e, bem, fomos despejados. Carlos estava tão aliviado por irmos embora que esse provavelmente foi o motivo de nunca ter prestado queixa na polícia.
A essa altura, eu tentava deixar para trás os últimos vestígios do meu mau comportamento e estava extremamente focada em conquistar o máximo possível. Mais uma vez, não havia percebido que meu comportamento estava diretamente ligado ao caos que havia em minha casa. Eu era um barril de pólvora cheio de segredos. Guardei todos eles porque assim podia seguir com a vida. Não podia colocar para fora o que estava sentindo.
Eu me agarrava a qualquer chance disponível de participar de algo em que pudesse deixar minha marca. Os professores e conselheiros na Central Falls Jr. Sr. High School eram minha esperança: o Sr. Aissis, o Sr. Yates, o Sr. Perkins, Jeff Kenyon, Mariam Boyajian.
O Sr. Aissis, que era igualzinho a Gene Wilder, só que menor, fora meu professor de ciências no nono ano. Era também diretor musical e instrutor do Glee Club. Eu o enlouquecia. Eu era ruim. Falava demais. Era a clássica garota do teatro que precisava de um escape criativo e não conseguia encontrar, então o criei para mim mesma, de maneira inapropriada, na aula. Em outras palavras, eu aprontava.
Ele sempre gritava comigo. No nono ano, me expulsou da turma e fui colocada em outra. Eu não conhecia ninguém naquela turma de ciências, então na mesma hora fechei o bico. Não tinha ninguém com quem aprontar.
Alguns anos depois, o Sr. Aissis foi até uma das minhas aulas e disse:
Viola, tenho uma coisa para você.
O que é?
Fui ao dentista hoje e, enquanto estava na sala de espera, vi este panfleto, Viola.
Era um panfleto para a Arts Recognition and Talent Search, uma competição em Miami, Flórida, com cinco disciplinas: teatro, artes visuais, dança, música e escrita. Cada uma tinha o próprio formato. Trinta jovens em cada categoria seriam escolhidos para uma viagem com tudo pago para Miami. Era reservado para alunos ingressantes do último ano do ensino médio.
Você poderia tentar a bolsa de teatro — sugeriu ele.
O que eu ganho? — perguntei.
Ele deu uma olhada no panfleto.
Dinheiro da bolsa de estudos, acho.
Não posso.
Uma competição nacional? O panfleto era grosso, e só a inscrição já continha uma lista cheia de exigências. Enquanto o Sr. Aissis estava ali, eu a li em voz alta, pensando, a cada palavra que pronunciava, no absurdo que seria aquilo. Tinha que montar uma gravação de um monólogo clássico e um contemporâneo. Tinha que preencher um formulário de inscrição gigantesco, que incluía uma redação. E, é lógico, havia uma taxa de inscrição.
Não posso — repeti.
Bom, pense no assunto — disse ele. — Quando vi, lembrei de você. Lembrei de você, Viola.
Ele me expulsou da aula porque me enxergou. Viu alguma coisa em mim.
Fiquei olhando para aquele papel. Por fim, compartilhei o panfleto e sua oportunidade impossível com meu conselheiro do Upward Bound, Jeff Kenyon. Eu podia chamar os conselheiros do Upward Bound pelo nome. Podia ligar para Jeff no meio do dia e dizer: “Oi, Jeff! Estou tendo uma crise de ansiedade no meio da aula de ciências. Você pode me ajudar?” E ele ia. Ele sempre ia.
Jeff foi a primeira pessoa a me levar com minha irmã Deloris a uma reunião de partido político, para que entendêssemos como funcionava uma campanha política. Ele foi a primeira pessoa a nos levar para a Sociedade da Herança Negra de Rhode Island, para que aprendêssemos sobre ex-escravizados abolicionistas que sabiam ler e escrever e foram essenciais para a libertação de outros. Por mais branco que fosse, Jeff nos ensinou muito sobre a história negra. Ele me ouviu conversando com minha irmã um dia no carro e entendeu nossa ignorância sobre nossa própria história. Foi isso. Esse foi o incentivo de que ele precisava para agir. Ele nos pegava no meio da semana, nos levava para comer e conversava conosco para saber como estávamos.
O que aconteceu? — perguntou Jeff naquela semana.
Bom, meu professor de ciências… — E contei a ele a história, terminando com: — Mas não posso fazer isso.
Jeff ficou em silêncio. Eu podia vê-lo segurando a raiva.
Deixa eu ver o panfleto. — Depois de ver, ele perguntou: — Por que você não pode?
Porque não tenho uma fita VHS, Jeff.
Quanto custa uma fita VHS?
Bom, não sei. Mas provavelmente…
Vou comprar uma pra você.
Silêncio.
Bom, obrigada, mas não tenho os 15 dólares da inscrição.
Viola, eu consigo uma isenção da taxa para você.
Silêncio.
Bom, Jeff, eu tenho que me filmar fazendo dois monólogos. Onde vou filmar?
Viola, há uma estação de TV no campus da Rhode Island College. Conheço pessoas lá. Você pode filmar no campus.
Depois de uma longa pausa, ele disse:
Agora você não tem mais desculpas.
E Jeff estava certo. Agora era hora de eu, como ouvi pessoas negras dizerem tantas vezes, “cagar ou sair da moita”. Então caguei.
Reuni meus monólogos. Fui à Rhode Island College, onde Deloris estudava. Ela estava muito animada. Fiquei trocando de roupas, cuja maioria pertencia a Deloris, no quarto dela, procurando o visual certo. Fui à estação de TV. Filmei o monólogo contemporâneo e o clássico. Preenchi minha inscrição. Enviei tudo. Livre das correntes das minhas desculpas, eu estava lidando com o assunto e exercitando minha atitude, em vez de ficar sentada sem fazer nada. E realizar aquela ação foi por si só uma vitória.
Só para a competição de teatro milhares se inscreveram, mas apenas trinta seriam selecionados. Eu não pensava ter qualquer chance, mas me orgulhava do que fizera; concluí o trabalho duro e árduo de me inscrever.
Lembro-me de ir para casa um dia depois da escola com minha amiga Kim Hall, como já havíamos feito inúmeras vezes. Nesse dia em especial, conforme nos aproximávamos da minha casa, olhei lá para a frente e de repente vi MaMama correndo em nossa direção. Não correndo normalmente, mas a toda a velocidade, como se sua vida dependesse disso. Vale lembrar que MaMama é muito do interior. Enquanto ela avançava feito uma corredora olímpica até nós, percebi que estava usando os sapatos do meu irmão. Eu não sabia o motivo. Provavelmente não conseguira encontrar os dela. Mas, enquanto se aproximava, vimos como ela estava ensandecida, agitando um pedaço de papel, correndo, gritando. Era um telegrama da Western Union, algo estranho para aqueles mais jovens do que alguém da Geração X. Pense nisso como uma mensagem, mas em forma física em vez da instantânea e digital. MaMama sequer parou para recuperar o fôlego antes de revelar o conteúdo da mensagem. “Você foi escolhida para ir para Miami, Flórida, para a competição da Arts Recognition and Talent Search.”
Fiquei paralisada. Emudecida. Paralisada como quando minhas irmãs gritaram para que eu jogasse a bombinha pela janela. Paralisada como quando minha família toda implorou para que eu pulasse do que pensamos ser nosso apartamento em chamas. Paralisada como quando me sentei em silêncio todas aquelas vezes que ouvi sermões dos professores, das enfermeiras e dos diretores sobre minha falta de higiene. Mas aquele era um tipo bom de paralisia; um tipo espetacular e glorioso. Pasma pela pura incapacidade de acreditar na notícia que minha mãe estava me dando. Estupefata pela ideia de que o trabalho que investi em um sonho louco realmente deu certo. Atônita diante do fato de que indivíduos completamente desconhecidos me viram e me julgaram digna de participar da sua prestigiada competição.
Eu não conseguia de jeito nenhum me ver como uma entre os poucos escolhidos, mas, das mil e duzentas inscrições, fui uma das trinta selecionadas. Ganhei uma viagem com tudo pago para Miami. Eu estava dentro.
Não lembro o que falei para a minha mãe quando saí daquele estupor, mas seja lá o que tenha sido foi acompanhado por muitos gritos, sorrisos e lágrimas. Eu era a maior chorona.
No verão do meu último ano de ensino médio foi a primeira vez que voei de avião. Eu me senti muito deslocada em Miami. Aquela viagem era uma das maiores coisas que tinham me acontecido até então. Meus dois monólogos eram de Everyman e Runaways, que tinha muitos diálogos incríveis sobre se sentir abandonado. Não lembro qual exatamente apresentei. Pode ter sido “Footsteps” ou o último monólogo da peça. Eram todos deliciosos, pois davam aos atores uma variedade de sentimentos e emoções com os quais trabalhar e compartilhar com a plateia. E agora eu tinha a oportunidade de compartilhar todos aqueles sentimentos, tantos que vieram das minhas próprias experiências, com os melhores dos melhores reunidos em Miami.
Dito isso, eu me sentia muito deslocada perto dos maiores talentos do país. Ficamos no recém-inaugurado hotel Hyatt Regency, em ­Miami. A imprensa estava lá naquela semana, até mesmo o Good Morning America. Excelentes atores, dançarinos, músicos e artistas visuais das melhores escolas de arte chegaram com toda a pompa. Eu cheguei com um vestido que tinha custado trinta dólares em uma loja no centro de Pawtucket e um conjunto de dois dólares da Sociedade de São Vicente de Paulo. Estava deslumbrada e totalmente despreparada, do ponto de vista artístico. Também não estava preparada socialmente. Aqueles jovens se sentiam à vontade, confiantes, ou pelo menos fingiam bem, e eram barulhentos. Eu não era nenhuma dessas coisas. Além disso, estava extremamente tímida. Eu me senti sozinha. Lembrando agora, vejo que tinha muito mais ansiedade social que timidez. Senti que não valia a pena revelar quem eu era de verdade. Ficava aterrorizada toda vez que “ela” tinha que se mostrar.
Dividi quarto com uma garota da Pensilvânia que falava sobre ganhar, sobre quem ela considerava incrível e quem não. Ela queria muito aquilo! Fosse lá o que “aquilo” significasse. Ela sempre se torturava após a audição diária. Eu não entendia. Eu só estava tentando sobreviver.
Fui muito bem com meus monólogos. Depois disso, pareceu que todo mundo queria me “conhecer”. Todo mundo ama um vencedor. Quando eu precisava improvisar, o que amava fazer, ficava travada. Havia improvisações de cinco minutos, três minutos e um minuto. Depois que eu travava, um silêncio coletivo recaía sobre mim e sobre o resto do grupo.
Foi uma semana de refeições de cinco pratos, viagens de barco, equipes de TV, contato com a mídia… Apesar do lapso momentâneo durante as improvisações, meu talento estava sendo reconhecido. No entanto, meus talentos e o reconhecimento que vieram com eles eram bem mais evoluídos que eu, Viola. Eu não me sentia merecedora. Todos os símbolos que poderiam me dar status? Eu nunca tivera. Agora, um deles estava ao meu alcance.
Fui nomeada Jovem Artista Promissora e recebi uma homenagem na prefeitura quando voltei para Central Falls. Foi algo importante na cidade, mesmo que eu não tenha ganhado o dinheiro da bolsa de estudos.
Se eu tivesse que criar uma fábula sobre a minha vida, uma fantasia, diria que me vejo enfim encontrando a Deus, falando embolado, chorando, agradecendo ao Todo-Poderoso pelas honras, um marido fabuloso, uma filha linda, minha jornada do nada até Hollywood, prêmios, viagens. E posso ver nitidamente o rosto do Senhor, olhando-me, aceitando-me e dizendo: “Você nunca me agradeceu por criá-la como VOCÊ É.”

Viola Davis, in Em busca de mim

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