terça-feira, 9 de dezembro de 2025

A leitura ouvida


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Leituras públicas informais em reuniões não programadas eram ocorrências bastante comuns no século XVII. Parando numa estalagem durante sua busca do errante dom Quixote, o padre que queimou tão diligentemente os livros da biblioteca do cavaleiro explica aos circunstantes como a leitura de novelas de cavalaria afetou a mente de dom Quixote. O estalajadeiro não concorda com tal afirmação, confessando que gosta muito de escutar essas histórias em que o herói luta valentemente contra gigantes, estrangula serpentes monstruosas e derrota sozinho exércitos enormes, Diz ele: “Na época da colheita, durante as festividades, muitos trabalhadores reúnem-se aqui e há sempre uns poucos que sabem ler, e um deles pega um desses livros nas mãos e mais de trinta amontoam-se em torno dele, e ouvem-no com tanto prazer que nossos cabelos brancos ficam jovens de novo”. A filha dele também faz parte da plateia, mas não gosta das cenas de violência; prefere “escutar as lamentações que o cavaleiro faz quando suas damas estão ausentes, o que às vezes me faz chorar de pena deles”. Um viajante que carrega consigo várias novelas de cavalaria (as quais o padre quer queimar de imediato) leva também na bagagem o manuscrito de uma novela. Um pouco a contragosto, o padre concorda em lê-la em voz alta para todos os presentes. O título da novela é, apropriadamente, O impertinente curioso e sua leitura ocupa os três capítulos seguintes, enquanto todos se sentem livres para interromper e comentar à vontade.
Eram tão descontraídas essas reuniões, tão livres dos constrangimentos das leituras institucionalizadas, que os ouvintes (ou o leitor) podiam transferir mentalmente o texto para seu próprio tempo e lugar. Dois séculos depois de Cervantes, o editor escocês Wiliam Chambers escreveu a biografia de seu irmão Robert, com quem fundara em 1832 a famosa companhia de Edimburgo que leva seu nome, e relembrou leituras desse tipo em Peebles, cidade de sua infância: “Meu irmão e eu retirávamos muito prazer, para não dizer instrução, de antigas baladas e histórias lendárias cantadas ou narradas por uma espécie de velha parente nossa, esposa de um comerciante decadente, que morava numa daquelas ruelas sem saída de antigamente. Junto a sua humilde lareira, coberta por uma enorme chaminé, onde seu marido meio cego e aposentado cochilava numa cadeira, a batalha de Corunna e outras notícias importantes misturavam-se estranhamente a dissertações sobre as guerras judaicas. A fonte dessas conversas interessantes era um exemplar bastante gasto, de Josephus, numa tradução feita por L'Estrange, um pequeno fólio datado de 1720. O invejado dono da obra era Tam Fleck, um rapaz estouvado”, como costumavam chamá-lo; não sendo particularmente constante em seu emprego legítimo, criou uma espécie de profissão circulando à noite com o seu Josephus, e lendo-o como se fossem as notícias do momento; a única luz com que contava para fazer isso era geralmente a das chamas bruxuleantes de um pedaço de carvão. Tinha por norma não ler mais de duas ou três páginas de cada vez, entremeadas com observações sagazes, como se fossem notas de pé de página, e dessa forma sustentava um interesse extraordinário pela narrativa.
Distribuindo a matéria com grande equanimidade nos diferentes lares, Tam mantinha a todos no mesmo ponto de informação e os envolvia com a devida ansiedade em relação ao desfecho de algum evento emocionante dos anais hebraicos. Embora percorresse todo o Josephus anualmente, a novidade parecia, de alguma forma, jamais se desgastar”.
E aí. Tam, quais são as novidades? perguntava o velho Geordie Murray quando Tam entrava com o Josephus debaixo do braço e sentava-se junto à lareira.
Más notícias, más notícias respondia Tam. Tito começou a assediar Jerusalém. A coisa vai ser terrível.
Durante o ato de ler (de interpretar, de recitar), a posse de um livro adquire às vezes o valor de talismã. No Norte da França, ainda hoje os contadores de história das aldeias usam os livros como suporte; eles decoram o texto, mas depois exibem autoridade fingindo que leem o livro, mesmo quando o seguram de cabeça para baixo? Há algo em relação à posse de um livro – um objeto que pode conter fábulas infinitas, palavras de sabedoria, crônicas de tempos passados, casos engraçados e revelações divinas – que dota o leitor do poder de criar uma história, e o ouvinte, de um sentimento de estar presente no momento da criação. O que importa nessas recitações é que o momento da leitura seja plenamente reencenado – isto é, com um leitor, uma plateia e um livro –, sem o que a apresentação não seria completa.
No tempo de são Bento, ouvir alguém ler era considerado um exercício espiritual; em séculos posteriores, esse propósito elevado foi usado para esconder outras funções, menos decorosas. Por exemplo, no começo do século XIX, quando a noção de uma mulher culta ainda era desaprovada na Inglaterra, ouvir leituras tornou-se uma das maneiras aceitas de estudar. A romancista Harriet Martineau lamentava em Autobiographical memoir, publicada após sua morte, em 1876, que “quando era jovem, não se julgava apropriado a uma senhorita estudar às claras; esperava-se que ela ficasse sentada na sala de estar com sua costura, ouvisse a leitura em voz alta de um livro e estivesse pronta para receber visitas. Quando estas chegavam, a conversa voltava-se amiúde para o livro recém-abandonado que, portanto. deveria ser escolhido com cuidado, a fim de que o visitante não levasse para seu próximo anfitrião um relato da deplorável complacência demonstrada pela família que acabara de visitar”.
Por outro lado, alguém poderia ler em voz alta a fim de produzir essa complacência tão lamentada. Em 1781, Diderot escreveu de maneira divertida sobre um método para “curar” sua esposa fanática, Nanette – que se dizia determinada a não tocar em nenhum livro, exceto se ele contivesse algo espiritualmente edificante –, submetendo-a durante várias semanas a uma dieta de literatura vulgar. Tornei-me seu Leitor. Administro-lhe três pitadas de Gil Blas todos os dias: uma pela manhã, outra após o jantar e uma à noite.
Quando terminarmos Gil Blas, passaremos para O diabo sobre duas caras, O celibatário de Salamanca e outras obras estimulantes da mesma categoria. Alguns anos e umas poucas centenas dessas leituras completarão a cura. Se tivesse certeza do sucesso, não deveria queixar-me do trabalho. O que me diverte é que ela recebe todos que a visitam repetindo-lhes o que acabei de ler para ela, de tal forma que a conversação duplica o efeito do remédio. Já falei dos romances como produções frívolas, mas descobri finalmente que eles são bons para a depressão. Darei ao dr. Tronchin a fórmula da próxima vez que o visitar. Receita: oito a dez páginas do Roman comique de Scarron; quatro capítulos do Dom Quixote; um parágrafo bem escolhido de Rabelais; instilar uma quantidade razoável de Jacques, o fatalista ou Manon Lescaut, e variar essas drogas como se variam as ervas, substituindo-as por outras de qualidade similar, se necessário."
Ouvir alguém ler permite ao ouvinte uma escuta íntima das reações que normalmente devem passar despercebidas, uma experiência catártica que o romancista espanhol Benito Pérez Galdós descreveu em um de seus Episodios nacionales. Dona Manuela, uma leitora de classe média do século XIX, retira-se para a cama com a desculpa de que não quer ficar febril por ler completamente vestida sob a luz da lâmpada da sala de visitas, numa noite quente do verão madrilenho. Seu galante admirador, general Leopoldo O'Donnell, oferece-se para ler para ela até que durma e escolhe um dos romances caça-níqueis que a senhora adora, “uma daquelas tramas enroladas e confusas, mal traduzidas do francês”. Guiando os olhos com o dedo indicador, O'Donnel lê a descrição de um duelo no qual um jovem loiro fere um certo monsieur Massenot: – Que maravilha! exclamou dona Manuela, arrebatada. Esse rapaz loiro, está lembrado? É o artilheiro que veio da Bretanha disfarçado de mendigo. Pela aparência dele, deve ser o filho natural da duquesa. [...] Vamos adiante.[...] Mas, de acordo com o que você acabou de ler observou dona Manuela quer dizer que ele cortou fora o nariz de Massenot?
É o que parece. [...] Aqui diz claramente: “O rosto de Massenot estava coberto de sangue que corria como dois riachos por entre seu bigode grisalho”.
Estou encantada.[...] É bem feito, e deixe-o voltar para receber mais. Vejamos agora o que o autor vai nos contar?
Porque ler em voz alta não é um ato privado, a escolha do material de leitura deve ser socialmente aceitável tanto para o leitor como para o público. Na reitoria de Steventon, em Hampshire, os membros da família Austen liam uns para os outros em diferentes momentos do dia e comentavam a pertinência de cada seleção. “Meu pai lê Cowper para nós de manhã, o que ouço quando posso”, escreveu Jane Austen em 1808. “Obtivemos o segundo volume de Espriel a's letters [Cartas de Espriella, de Southey], que li em voz alta à luz de velas.” “Deveria ficar encantada com Marmion [de Walter Scott]? Até agora, não estou.
James [o irmão mais velho] o lê em voz alta todas as noites – a noite curta, começando por volta das dez, e interrompida pela ceia. Ouvindo Alphonsine, de madame de Genlis, Austen sente-se indignada: “Ficamos desgostosos em vinte páginas, pois, independentemente da má tradução, contém indelicadezas que desgraçam uma pena até agora tão pura, e mudamos para o Female Quixote [Quixote feminino, de Lennox], que agora faz a diversão de nossas noites, para mim muito intensa, pois acho a obra bastante igual ao que me lembrava dela”. (Mais tarde, nos escritos de Austen, haverá ecos desses livros que ela ouvira ler em voz alta. em referências diretas feitas por personagens definidas por seus gostos e aversões literárias: sir Edward Denham despreza Scott como maçante em Sandítion, e em A abadia de Northanger John Thorpe diz: “Nunca leio romances” – embora confesse em seguida que acha Tom Jones, de Fielding, e O monge de Lewis, “toleravelmente decentes”.)
Ouvir alguém ler com o propósito de purificar o corpo, por prazer, para instrução ou para dar aos sons supremacia sobre o sentido, ao mesmo tempo enriquece e empobrece o ato de ler. Permitir que alguém pronuncie as palavras de uma página para nós é uma experiência muito menos pessoal do que segurar o livro e seguir o texto com nossos próprios olhos. Render-se à voz do leitor – exceto quando a personalidade do ouvinte é dominadora – retira nossa capacidade de estabelecer um certo ritmo para o livro, um tom, uma entonação que é exclusiva de cada um. O ouvido é condenado à língua de outra pessoa, e nesse ato estabelece-se uma hierarquia (às vezes tornada aparente pela posição privilegiada do leitor, numa cadeira separada ou num pódio) que coloca o ouvinte nas mãos do leitor Até fisicamente, o ouvinte seguirá amiúde o exemplo do leitor Descrevendo uma leitura entre amigos, Diderot escreveu em 1759: "Sem pensamento consciente de nenhuma das partes, o leitor dispõe-se da maneira que julga mais apropriada e o ouvinte faz o mesmo.
[...] Acrescente-se uma terceira personagem à cena, e ela se submeterá à lei das duas anteriores: trata-se de um sistema combinado de três interesses”.
Ao mesmo tempo, o ato de ler em voz alta para um ouvinte atento força freqüentemente o leitor a se tornar mais meticuloso, a ler sem pular e sem voltar a um trecho anterior, fixando o texto por meio de uma certa formalidade ritual. Nos mosteiros beneditinos ou nas salas de inverno da baixa Idade Média, nas estalagens e cozinhas da Renascença ou nas salas de visita e fábricas de charuto do século XIX – ainda hoje, ouvindo um ator ler um livro em fita cassete enquanto dirigimos pela estrada – a cerimônia de ouvir alguém ler sem dúvida priva o ouvinte de um pouco da liberdade inerente ao ato de ler – escolher um tom, sublinhar um ponto, retornar às passagens preferidas –, mas também dá ao texto versátil uma identidade respeitável, um sentido de unidade no tempo e uma existência no espaço que ele raramente tem nas mãos volúveis de um leitor solitário.

Alberto Manguel, em A Historia da Leitura

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