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Leituras públicas informais em
reuniões não programadas eram ocorrências bastante comuns no
século XVII. Parando numa estalagem durante sua busca do errante dom
Quixote, o padre que queimou tão diligentemente os livros da
biblioteca do cavaleiro explica aos circunstantes como a leitura de
novelas de cavalaria afetou a mente de dom Quixote. O estalajadeiro
não concorda com tal afirmação, confessando que gosta muito de
escutar essas histórias em que o herói luta valentemente contra
gigantes, estrangula serpentes monstruosas e derrota sozinho
exércitos enormes, Diz ele: “Na época da colheita, durante as
festividades, muitos trabalhadores reúnem-se aqui e há sempre uns
poucos que sabem ler, e um deles pega um desses livros nas mãos e
mais de trinta amontoam-se em torno dele, e ouvem-no com tanto prazer
que nossos cabelos brancos ficam jovens de novo”. A filha dele
também faz parte da plateia, mas não gosta das cenas de violência;
prefere “escutar as lamentações que o cavaleiro faz quando suas
damas estão ausentes, o que às vezes me faz chorar de pena deles”.
Um viajante que carrega consigo várias novelas de cavalaria (as
quais o padre quer queimar de imediato) leva também na bagagem o
manuscrito de uma novela. Um pouco a contragosto, o padre concorda em
lê-la em voz alta para todos os presentes. O título da novela é,
apropriadamente, O impertinente curioso e sua leitura ocupa os três
capítulos seguintes, enquanto todos se sentem livres para
interromper e comentar à vontade.
Eram tão descontraídas essas
reuniões, tão livres dos constrangimentos das leituras
institucionalizadas, que os ouvintes (ou o leitor) podiam transferir
mentalmente o texto para seu próprio tempo e lugar. Dois séculos
depois de Cervantes, o editor escocês Wiliam Chambers escreveu a
biografia de seu irmão Robert, com quem fundara em 1832 a
famosa companhia de Edimburgo que leva seu nome, e relembrou leituras
desse tipo em Peebles, cidade de sua infância: “Meu irmão e eu
retirávamos muito prazer, para não dizer instrução, de antigas
baladas e histórias lendárias cantadas ou narradas por uma espécie
de velha parente nossa, esposa de um comerciante decadente, que
morava numa daquelas ruelas sem saída de antigamente. Junto a sua
humilde lareira, coberta por uma enorme chaminé, onde seu marido
meio cego e aposentado cochilava numa cadeira, a batalha de Corunna e
outras notícias importantes misturavam-se estranhamente a
dissertações sobre as guerras judaicas. A fonte dessas conversas
interessantes era um exemplar bastante gasto, de Josephus, numa
tradução feita por L'Estrange, um pequeno fólio datado de 1720. O
invejado dono da obra era Tam Fleck, um rapaz estouvado”, como
costumavam chamá-lo; não sendo particularmente constante em seu
emprego legítimo, criou uma espécie de profissão circulando à
noite com o seu Josephus, e lendo-o como se fossem as notícias do
momento; a única luz com que contava para fazer isso era geralmente
a das chamas bruxuleantes de um pedaço de carvão. Tinha por norma
não ler mais de duas ou três páginas de cada vez, entremeadas com
observações sagazes, como se fossem notas de pé de página, e
dessa forma sustentava um interesse extraordinário pela narrativa.
Distribuindo a matéria com grande
equanimidade nos diferentes lares, Tam mantinha a todos no mesmo
ponto de informação e os envolvia com a devida ansiedade em relação
ao desfecho de algum evento emocionante dos anais hebraicos. Embora
percorresse todo o Josephus anualmente, a novidade parecia, de alguma
forma, jamais se desgastar”.
– E aí. Tam, quais são as
novidades? –
perguntava o velho Geordie Murray quando Tam entrava com o Josephus
debaixo do braço e sentava-se junto à lareira.
– Más notícias, más notícias
– respondia Tam. –
Tito começou a assediar Jerusalém. A coisa vai ser terrível.
Durante o ato de ler (de interpretar,
de recitar), a posse de um livro adquire às vezes o valor de
talismã. No Norte da França, ainda hoje os contadores de história
das aldeias usam os livros como suporte; eles decoram o texto, mas
depois exibem autoridade fingindo que leem o livro, mesmo quando o
seguram de cabeça para baixo? Há algo em relação à posse de um
livro – um objeto que pode conter fábulas infinitas, palavras de
sabedoria, crônicas de tempos passados, casos engraçados e
revelações divinas – que dota o leitor do poder de criar uma
história, e o ouvinte, de um sentimento de estar presente no momento
da criação. O que importa nessas recitações é que o momento da
leitura seja plenamente reencenado – isto é, com um leitor, uma
plateia e um livro –, sem o que a apresentação não seria
completa.
No tempo de são Bento, ouvir alguém
ler era considerado um exercício espiritual; em séculos
posteriores, esse propósito elevado foi usado para esconder outras
funções, menos decorosas. Por exemplo, no começo do século XIX,
quando a noção de uma mulher culta ainda era desaprovada na
Inglaterra, ouvir leituras tornou-se uma das maneiras aceitas de
estudar. A romancista Harriet Martineau lamentava em Autobiographical
memoir, publicada após sua morte, em 1876, que “quando era jovem,
não se julgava apropriado a uma senhorita estudar às claras;
esperava-se que ela ficasse sentada na sala de estar com sua costura,
ouvisse a leitura em voz alta de um livro e estivesse pronta para
receber visitas. Quando estas chegavam, a conversa voltava-se amiúde
para o livro recém-abandonado que, portanto. deveria ser escolhido
com cuidado, a fim de que o visitante não levasse para seu próximo
anfitrião um relato da deplorável complacência demonstrada pela
família que acabara de visitar”.
Por outro lado, alguém poderia ler em
voz alta a fim de produzir essa complacência tão lamentada. Em
1781, Diderot escreveu de maneira divertida sobre um método para
“curar” sua esposa fanática, Nanette – que se dizia
determinada a não tocar em nenhum livro, exceto se ele contivesse
algo espiritualmente edificante –, submetendo-a durante várias
semanas a uma dieta de literatura vulgar. Tornei-me seu Leitor.
Administro-lhe três pitadas de Gil Blas todos os dias: uma
pela manhã, outra após o jantar e uma à noite.
Quando terminarmos Gil Blas,
passaremos para O diabo sobre duas caras, O celibatário de
Salamanca e outras obras estimulantes da mesma categoria. Alguns
anos e umas poucas centenas dessas leituras completarão a cura. Se
tivesse certeza do sucesso, não deveria queixar-me do trabalho. O
que me diverte é que ela recebe todos que a visitam repetindo-lhes o
que acabei de ler para ela, de tal forma que a conversação duplica
o efeito do remédio. Já falei dos romances como produções
frívolas, mas descobri finalmente que eles são bons para a
depressão. Darei ao dr. Tronchin a fórmula da próxima vez que o
visitar. Receita: oito a dez páginas do Roman comique
de Scarron; quatro capítulos do Dom Quixote; um parágrafo
bem escolhido de Rabelais; instilar uma quantidade razoável de
Jacques, o fatalista ou Manon Lescaut, e variar essas
drogas como se variam as ervas, substituindo-as por outras de
qualidade similar, se necessário."
Ouvir alguém ler permite ao ouvinte
uma escuta íntima das reações que normalmente devem passar
despercebidas, uma experiência catártica que o romancista espanhol
Benito Pérez Galdós descreveu em um de seus Episodios
nacionales. Dona Manuela, uma leitora de classe média do século
XIX, retira-se para a cama com a desculpa de que não quer ficar
febril por ler completamente vestida sob a luz da lâmpada da sala de
visitas, numa noite quente do verão madrilenho. Seu galante
admirador, general Leopoldo O'Donnell, oferece-se para ler para ela
até que durma e escolhe um dos romances caça-níqueis que a senhora
adora, “uma daquelas tramas enroladas e confusas, mal traduzidas do
francês”. Guiando os olhos com o dedo indicador, O'Donnel lê a
descrição de um duelo no qual um jovem loiro fere um certo monsieur
Massenot: – Que maravilha! – exclamou dona Manuela,
arrebatada. Esse rapaz loiro, está lembrado? É o artilheiro que
veio da Bretanha disfarçado de mendigo. Pela aparência dele, deve
ser o filho natural da duquesa. [...] Vamos adiante.[...] Mas, de
acordo com o que você acabou de ler – observou dona Manuela
– quer dizer que ele cortou fora o nariz de Massenot?
– É o que parece. [...] Aqui diz
claramente: “O rosto de Massenot estava coberto de sangue que
corria como dois riachos por entre seu bigode grisalho”.
– Estou encantada.[...] É bem
feito, e deixe-o voltar para receber mais. Vejamos agora o que o
autor vai nos contar?
Porque ler em voz alta não é um ato
privado, a escolha do material de leitura deve ser socialmente
aceitável tanto para o leitor como para o público. Na reitoria de
Steventon, em Hampshire, os membros da família Austen liam uns para
os outros em diferentes momentos do dia e comentavam a pertinência
de cada seleção. “Meu pai lê Cowper para nós de manhã, o que
ouço quando posso”, escreveu Jane Austen em 1808. “Obtivemos o
segundo volume de Espriel a's letters [Cartas de Espriella, de
Southey], que li em voz alta à luz de velas.” “Deveria ficar
encantada com Marmion [de Walter Scott]? Até agora, não estou.
James [o irmão mais velho] o lê em
voz alta todas as noites – a noite curta, começando por volta das
dez, e interrompida pela ceia. Ouvindo Alphonsine, de madame
de Genlis, Austen sente-se indignada: “Ficamos desgostosos em vinte
páginas, pois, independentemente da má tradução, contém
indelicadezas que desgraçam uma pena até agora tão pura, e mudamos
para o Female Quixote [Quixote feminino, de Lennox],
que agora faz a diversão de nossas noites, para mim muito intensa,
pois acho a obra bastante igual ao que me lembrava dela”. (Mais
tarde, nos escritos de Austen, haverá ecos desses livros que ela
ouvira ler em voz alta. em referências diretas feitas por
personagens definidas por seus gostos e aversões literárias: sir
Edward Denham despreza Scott como maçante em Sandítion, e em A
abadia de Northanger John Thorpe diz: “Nunca leio romances” –
embora confesse em seguida que acha Tom Jones, de Fielding, e
O monge de Lewis, “toleravelmente decentes”.)
Ouvir alguém ler com o propósito de
purificar o corpo, por prazer, para instrução ou para dar aos sons
supremacia sobre o sentido, ao mesmo tempo enriquece e empobrece o
ato de ler. Permitir que alguém pronuncie as palavras de uma página
para nós é uma experiência muito menos pessoal do que segurar o
livro e seguir o texto com nossos próprios olhos. Render-se à voz
do leitor – exceto quando a personalidade do ouvinte é dominadora
– retira nossa capacidade de estabelecer um certo ritmo para o
livro, um tom, uma entonação que é exclusiva de cada um. O ouvido
é condenado à língua de outra pessoa, e nesse ato estabelece-se
uma hierarquia (às vezes tornada aparente pela posição
privilegiada do leitor, numa cadeira separada ou num pódio) que
coloca o ouvinte nas mãos do leitor Até fisicamente, o ouvinte
seguirá amiúde o exemplo do leitor Descrevendo uma leitura entre
amigos, Diderot escreveu em 1759: "Sem pensamento consciente de
nenhuma das partes, o leitor dispõe-se da maneira que julga mais
apropriada e o ouvinte faz o mesmo.
[...] Acrescente-se uma terceira
personagem à cena, e ela se submeterá à lei das duas anteriores:
trata-se de um sistema combinado de três interesses”.
Ao mesmo tempo, o ato de ler em voz
alta para um ouvinte atento força freqüentemente o leitor a se
tornar mais meticuloso, a ler sem pular e sem voltar a um trecho
anterior, fixando o texto por meio de uma certa formalidade ritual.
Nos mosteiros beneditinos ou nas salas de inverno da baixa Idade
Média, nas estalagens e cozinhas da Renascença ou nas salas de
visita e fábricas de charuto do século XIX – ainda hoje, ouvindo
um ator ler um livro em fita cassete enquanto dirigimos pela estrada
– a cerimônia de ouvir alguém ler sem dúvida priva o ouvinte de
um pouco da liberdade inerente ao ato de ler – escolher um tom,
sublinhar um ponto, retornar às passagens preferidas –, mas também
dá ao texto versátil uma identidade respeitável, um sentido de
unidade no tempo e uma existência no espaço que ele raramente tem
nas mãos volúveis de um leitor solitário.
Alberto Manguel, em A Historia da Leitura

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