Às vezes tenho uns pensamentos de
velho: avaliar toda a vida numa tarde. Tenho tempo demais agora que
me resta pouco tempo, depois da aposentadoria, mulher morta, filha
também viúva que lava, passa e cozinha. Para mim faltam interesses,
e os dias são divididos entre comida, remédios e sono. O pior é
que já não durmo bem, apenas cochilo, seguidas e rápidas vezes, e
comer também não chega a ser um prazer, os dentes podres, a
dentadura apertada demais, só uso para sair, e mesmo assim é mais
um trabalho que uma facilidade, colocar no copo com Corega, escovar,
limpar; o almoço dá azia, a janta não cai bem, o café da manhã
tem digestão lenta.
Resta tanto tempo, mesmo com o
desfecho próximo, que às vezes tenho pensamentos de velho. Sempre
soube que Ana seria a mulher da minha vida, naquela época não havia
outra alternativa, a mulher com que o sujeito casava era
inapelavelmente a mulher de sua vida. Mas nunca dei muita atenção
ao tamanho do amor que eu tinha por ela. Se falar que nos beijávamos
o tempo todo, mentiria. Nunca fomos de beijo. Se falar que nosso
desejo um pelo outro era grande, exageraria. Quando casamos e
queríamos nosso filho, antes de Marlene, fazíamos o nosso papel,
sim. Mas depois das sucessivas gestações sem nascimento, menos,
muito menos, quase nunca. Ana não reclamava, eu não pedia.
Com o tempo começamos a falar muito
menos também, nossas conversas eram as conversas sobre Marlene, ou
sobre Marlene e a relojoaria, ou sobre Marlene e a conversão tardia
de Ana ao catolicismo. Mentira, disso não conversávamos. Eram
brigas, apenas.
Nunca entendi. Judia por 62 anos, mãe
judia em mais da metade desse tempo, e então: “Fui à igreja
hoje.” E então: “Me confessei essa tarde.” E então: “Vem
comigo.” E quando não: “Vou ser batizada. Não peço que vá.”
Não fui. Nem Marlene e o marido. Nem
os netos. Ela voltou sorrindo. Domingo. Não falou nada, não
precisava. Foi direto para o quarto, trocou de roupa, foi para a
cozinha, colocou o avental, cortou cebola, picou alho, lavou o arroz,
refogou, salgou, cobriu com água e a tampa da panela, deixando uma
brecha para o vapor sair, tirou da geladeira a salada do dia
anterior, o peixe do shabat, e então: “A comida está pronta”,
mas eu no umbral da porta, olhando, ela cega, sorrindo, leve, eu com
uma inveja daquela leveza, com raiva, ciúmes, ela, surpresa. “Você
está aí? Me ajuda a colocar a mesa?” Eu espumando, minha esposa
convertida, batizada, mas não reagi, fingi ignorar aquela paz suja
que os lábios dela traziam, aquela traição em vida. “Vamos
comer?” Ela já sentada, os pratos na mesa, o suco gelado de
caixinha, os talheres alinhados. Sentei, sentamos, frente a frente.
Ela fechou os olhos, rezou uma Ave-maria e sorriu: “Quer que faça
seu prato?”
Flávio Izhaki, em Amanhã não tem ninguém
Nenhum comentário:
Postar um comentário