71.
Aquilo que, creio, produz em mim o
sentimento profundo, em que vivo, de incongruência com os outros, é
que a maioria pensa com a sensibilidade, e eu sinto com o pensamento.
Para o homem vulgar, sentir é viver e
pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é
mais que o alimento de pensar.
É curioso que, sendo escassa a minha
capacidade de entusiasmo, ela é naturalmente mais solicitada pelos
que se me opõem em temperamento do que pelos que são da minha
espécie espiritual. A ninguém admiro, na literatura, mais que aos
clássicos, que são a quem menos me assemelho. A ter que escolher,
para leitura única, entre Chateaubriand e Vieira, escolheria Vieira
sem necessidade de meditar.
Quanto mais diferente de mim alguém
é, mais real me parece, porque menos depende da minha subjetividade.
E é por isso que o meu estudo atento e constante é essa mesma
humanidade vulgar que repugno e de quem disto. Amo-a porque a odeio.
Gosto de vê-la porque detesto senti-la. A paisagem, tão admirável
como quadro, é em geral incómoda como leito.
Fernando Pessoa, em Livro do Dessossego
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