Nunca encontrei um lugar para me
encaixar. Parece que tudo o que faço é recomeçar. Não ligo de não
encontrar um ponto de partida no mundo. Só é possível encontrá-lo
quando você encontra a si mesmo.
— AUGUST WILSON
Eu queria ser uma grande atriz, como a
Srta. Tyson. Queria falar como uma atriz e treinar como uma atriz. O
processo e talento necessários para construir um ser humano
completamente diferente de você é equivalente a ser sobrenatural. E
também tem o poder de curar o que está ferido. Tudo o que eu não
conseguia resolver na minha vida e que estava dentro de mim podia ser
colocado no meu trabalho, e ninguém perceberia. E se eu fosse boa,
poderia viver disso. Era perfeito… Tudo era uma perfeita alquimia
de cura, aceitação e valorização. Então, Ron Stetson, um jovem
ator e professor, entrou na minha vida quando eu tinha 14 anos.
Ron Stetson foi meu professor de
atuação no programa do governo Updward Bound. Por seis semanas no
verão, eu vivi no campus de uma faculdade e frequentei as aulas.
Geralmente havia 48 alunos de várias comunidades de Rhode Island e
de diversas origens.
Nossas aulas começavam às oito horas
da manhã e terminavam por volta das cinco da tarde. O programa de
verão era uma simulação da faculdade, para que pudéssemos fazer a
transição de forma mais tranquila depois do ensino médio: assistir
às aulas, morar com pessoas de outras origens, estar por conta
própria. Éramos todos os primeiros estudantes de uma geração de
baixa renda a chegar ao ensino superior. Nosso grupo era uma mistura
de estudantes de baixa renda, cada um com sua própria cruz para
carregar. Alguns tinham enormes barreiras linguísticas; outros,
ambientes familiares desafiadores; e outros ainda tinham histórias
horríveis de repressão política e genocídio em seus países.
Eu amava o Upward Bound. O projeto
provocou em mim uma onda de perspectiva e graça em relação à
minha situação familiar. Alguém que passou quatro anos vivendo em
uma selva ou que presenciou um dos pais tendo a cabeça estourada
pela milícia fazia meus problemas parecerem pequenos. Eu sabia que
não eram, mas aquilo me mostrou a dolorosa verdade de que nunca
sabemos pelo que outra pessoa pode estar passando.
As noites eram livres até às oito ou
oito e meia da noite. Depois do jantar, podíamos escolher uma
atividade extracurricular. Teatro era uma delas.
E assim conheci Ron, que para mim era
o cara mais bonito, descolado, original e dinâmico que eu já
conhecera. Ele dirigia um carro detonado que não tinha porta no lado
do passageiro. Descolado demais. Ele colocava um pedaço de plástico
no lugar para que o passageiro não caísse nem se molhasse com a
chuva. Usava chinelos, regatas e jeans. Era não apenas descolado,
mas também diferente. Tinha uma visão diferente do mundo, das
pessoas, da raça. Falava o que vinha à cabeça. Na verdade, todos
os conselheiros e professores eram assim. Eles abriram um buraco no
meu mundo e um novo espaço para eu ocupar.
Ron me deu dois grandes presentes que
mudaram a minha vida. Um deles durante o nosso primeiro dia na aula
de teatro. Ele perguntou à classe de 14 pessoas quantos de nós
queriam ser atores ou atrizes.
Todos levantaram a mão.
— Vocês sabem que vão ter que
trabalhar pra caralho todo santo dia — avisou ele.
Um quarto das mãos abaixaram, mas eu
pensei: Uau, isso é incrível.
— Todo dia — repetiu ele.
Mais mãos abaixaram.
— Você pode ir a audições todo
dia por seis semanas e nunca, nunca conseguir um trabalho. Sabem
disso, não é?
Mais mãos abaixaram.
Minha mão continuou erguida, como se
quisesse tocar o céu.
— E vocês serão rejeitados várias
vezes — prosseguiu Ron.
Agora, eu era a única com a mão
levantada.
Ele continuou.
— Você vai tomar ovada na cara. Vai
falhar. Sua família não vai entender o que você faz, nem a maioria
das pessoas.
Mantive a mão erguida, olhando para
ele. Quando você nunca teve o suficiente para comer, quando sua
eletricidade e aquecimento foram cortados, não tem medo quando
alguém diz que a vida será difícil. O fator medo estava minimizado
para mim. Eu já conhecia o medo. Meus sonhos eram maiores que o
medo.
Ron me encarou.
— Tudo bem, vamos
voltar para a aula.
O segundo presente que Ron me deu
aconteceu na nossa festa de encerramento da peça na casa dele.
Deloris, que também estava na aula, falava comigo sobre algum
garoto. Não lembro exatamente o que ela estava dizendo, mas em algum
momento mencionamos que não éramos bonitas.
Ele disse:
— Espera! Vocês duas não se acham
bonitas? Por quê?
Envergonhadas, olhamos uma para a
outra e rimos.
— Ron! Ninguém em Central Falls
acha que somos bonitas. Nunca tivemos namorados. Nunca beijamos
ninguém — confessei.
Houve uma mudança desconfortável no
ar.
— Como é que é?
— Ron, a maioria das pessoas em
Central Falls são brancas e só… nós…
Deloris e eu não tínhamos palavras.
— Vocês são lindas pra caralho!
Sempre achei isso. Vocês não conseguem ver isso?
A atmosfera na sala mudou de novo. Ou
foi o ar em nossos pulmões? Foi um momento divisor de águas, do
tipo que acontece quando se é visto, valorizado e adorado. Para as
garotas, a adoração valida nossa feminilidade. Quando se é uma
garota negra retinta, ninguém simplesmente gosta de você. Eles riem
com você, contam segredos, tratam você como um dos garotos… mas
nenhum carinho é dado, nenhuma devoção é oferecida. A ausência
disso se torna uma forma de apagamento.
Aprendi muito com Ron naquele primeiro
verão de aulas de teatro. “O teatro desperta a imaginação”,
dizia ele. Ah, a imaginação. A habilidade da mente de criar ideias
e imagens. Foi isso que foi despertado em mim, quando Ron disse com
tanta convicção: “Você é linda.” Um outro espaço foi aberto
no meu mundo onde eu podia ser qualquer pessoa ou coisa que quisesse.
Eu podia definir meu mundo naquele espaço e voltar mais forte.
Como a Mulher-Maravilha, girando e se
transformando nesse ser super-humano que podia identificar mentiras e
acabar com homens de duzentos quilos. Ele me deu o primeiro
ingrediente de que eu precisava para ser artista: o poder de criar. O
poder da alquimia, aquele processo mágico de transformação e
criação para acreditar a qualquer momento que eu poderia ser a
pessoa que sempre quis ser.
Ele deu a todos nós algo ainda mais
especial: um espaço sagrado no qual podíamos compartilhar nossos
sentimentos sem sentir vergonha ou medo. Um espaço onde podíamos
compartilhar nossos segredos mais profundos e sombrios, e eles seriam
recebidos com amor e empatia. Ele nos encorajou a não guardar nada
dentro de nós e, caramba, caramba... Como ele amava quando fazíamos
algo ousado, estranho, único. Exclamava em voz alta: “Olhem
aquilo, porra!”
Tornei-me atriz porque a atuação é
uma fonte de cura.
O Upward Bound era uma mistura de
raças. O que tínhamos em comum, além de todos serem extremamente
pobres, era uma paixão por ser a primeira geração de nossa família
a ter uma educação formal e alcançar grandes feitos. À noite,
quando tínhamos permissão para nos encontrar, as histórias eram de
arrepiar. Éramos negros, brancos, cambojanos, laosianos, hmong,
vietnamitas (rotulados como the boat people, ou “os
refugiados dos barcos”), angolanos, portugueses-africanos,
dominicanos, porto-riquenhos. Os alunos do Sudeste Asiático em
especial tinham histórias de sua família inteira sendo massacrada,
ou escapando para a selva, vivendo lá por meses, às vezes anos, até
chegarem a um campo de refugiados, onde alguns contraíam malária.
A maioria tinha barreiras linguísticas
ou questões de saúde preocupantes, mas todos éramos alunos
excepcionais. Todos tínhamos disposição para compartilhar. Foi lá
que soube que João, Phy, Vanna, Maria, Peaches e Susie passavam pelo
mesmo. De repente, minhas histórias de momentos difíceis pareciam
pequenas, uma consciência orquestrada por Deus. Eu queria que a
minha história fosse pequena. Eu queria que ela diminuísse como um
tumor, até chegar a um tamanho com o qual eu pudesse lidar.
O teatro me deu uma válvula de
escape. A liberação emocional que atuar me oferecia me proporcionou
grande alegria. Uma alegria perfeita. Quando atuava, conseguia sentir
tudo — cada receptor do meu corpo estava vivo, 100% vivo,
e eu não estava escondendo nada. Eu me sentia livre para falar sobre
todo tipo de merda quando estava no grupo com os outros atores. Esse
era o motivo de a maioria dos alunos problemáticos sempre ser
colocada na aula de teatro. Todos colocavam tudo para fora! Todos
tinham permissão para expor seus traumas, compartilhar histórias de
terríveis abusos sexuais ou físicos, revelar um humor completamente
excêntrico, revelar seus segredos mais íntimos e sombrios, tudo. As
pessoas escutavam com empatia, 100% concentradas, em apoio.
Mas… mas… aí é preciso sair e
viver no mundo real como você mesmo. Seguir tentando manter a força
de vida que você obteve naquele palco e naquela aula. Whoopi
Goldberg, como a médium em Ghost — Do outro lado da vida,
tinha talento de atuar como um canal para almas. Algumas eram boas, e
outras, más. Porém, depois de tudo, ela tinha que voltar a si e à
sua vida. Quando você é um ator, você se torna um caçador de
almas. Um ladrão. Depois que as cortinas se fecham, você fica
sozinho consigo mesmo.
Quando comecei no Upward Bound, tinha
um ano que eu não fazia xixi na cama. Eu estava tão orgulhosa! Mas
então, do nada, na primeira noite do que seriam seis semanas em um
campus de faculdade, acordei e estava molhada, chocada, envergonhada,
e falei: “Ninguém entra neste quarto.”Eu não tinha uma colega
de quarto, mas o banheiro era compartilhado. Havia 12 pequenos
quartos na acomodação, e o meu tinha provavelmente entre 14 e 19
metros quadrados. Eu havia chegado ao meu quarto e orgulhosamente
colocado lá tudo o que tinha, o que era quase nada. Foi a última
vez que fiz xixi na cama. Fiquei irritada. Pensei que tivesse mais
controle.
A lição que tirei do Upward Bound
era que você precisa abrir a boca e contar a sua maldita história.
Isso me aterrorizava mais do que os ratos.
Viola Davis, in Em busca de mim

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