quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Capítulo 10 — O ponto de partida



Nunca encontrei um lugar para me encaixar. Parece que tudo o que faço é recomeçar. Não ligo de não encontrar um ponto de partida no mundo. Só é possível encontrá-lo quando você encontra a si mesmo.
AUGUST WILSON

Eu queria ser uma grande atriz, como a Srta. Tyson. Queria falar como uma atriz e treinar como uma atriz. O processo e talento necessários para construir um ser humano completamente diferente de você é equivalente a ser sobrenatural. E também tem o poder de curar o que está ferido. Tudo o que eu não conseguia resolver na minha vida e que estava dentro de mim podia ser colocado no meu trabalho, e ninguém perceberia. E se eu fosse boa, poderia viver disso. Era perfeito… Tudo era uma perfeita alquimia de cura, aceitação e valorização. Então, Ron Stetson, um jovem ator e professor, entrou na minha vida quando eu tinha 14 anos.
Ron Stetson foi meu professor de atuação no programa do governo Updward Bound. Por seis semanas no verão, eu vivi no campus de uma faculdade e frequentei as aulas. Geralmente havia 48 alunos de várias comunidades de Rhode Island e de diversas origens.
Nossas aulas começavam às oito horas da manhã e terminavam por volta das cinco da tarde. O programa de verão era uma simulação da faculdade, para que pudéssemos fazer a transição de forma mais tranquila depois do ensino médio: assistir às aulas, morar com pessoas de outras origens, estar por conta própria. Éramos todos os primeiros estudantes de uma geração de baixa renda a chegar ao ensino superior. Nosso grupo era uma mistura de estudantes de baixa renda, cada um com sua própria cruz para carregar. Alguns tinham enormes barreiras linguísticas; outros, ambientes familiares desafiadores; e outros ainda tinham histórias horríveis de repressão política e genocídio em seus países.
Eu amava o Upward Bound. O projeto provocou em mim uma onda de perspectiva e graça em relação à minha situação familiar. Alguém que passou quatro anos vivendo em uma selva ou que presenciou um dos pais tendo a cabeça estourada pela milícia fazia meus problemas parecerem pequenos. Eu sabia que não eram, mas aquilo me mostrou a dolorosa verdade de que nunca sabemos pelo que outra pessoa pode estar passando.
As noites eram livres até às oito ou oito e meia da noite. Depois do jantar, podíamos escolher uma atividade extracurricular. Teatro era uma delas.
E assim conheci Ron, que para mim era o cara mais bonito, descolado, original e dinâmico que eu já conhecera. Ele dirigia um carro detonado que não tinha porta no lado do passageiro. Descolado demais. Ele colocava um pedaço de plástico no lugar para que o passageiro não caísse nem se molhasse com a chuva. Usava chinelos, regatas e jeans. Era não apenas descolado, mas também diferente. Tinha uma visão diferente do mundo, das pessoas, da raça. Falava o que vinha à cabeça. Na verdade, todos os conselheiros e professores eram assim. Eles abriram um buraco no meu mundo e um novo espaço para eu ocupar.
Ron me deu dois grandes presentes que mudaram a minha vida. Um deles durante o nosso primeiro dia na aula de teatro. Ele perguntou à classe de 14 pessoas quantos de nós queriam ser atores ou atrizes.
Todos levantaram a mão.
Vocês sabem que vão ter que trabalhar pra caralho todo santo dia — avisou ele.
Um quarto das mãos abaixaram, mas eu pensei: Uau, isso é incrível.
Todo dia — repetiu ele.
Mais mãos abaixaram.
Você pode ir a audições todo dia por seis semanas e nunca, nunca conseguir um trabalho. Sabem disso, não é?
Mais mãos abaixaram.
Minha mão continuou erguida, como se quisesse tocar o céu.
E vocês serão rejeitados várias vezes — prosseguiu Ron.
Agora, eu era a única com a mão levantada.
Ele continuou.
Você vai tomar ovada na cara. Vai falhar. Sua família não vai entender o que você faz, nem a maioria das pessoas.
Mantive a mão erguida, olhando para ele. Quando você nunca teve o suficiente para comer, quando sua eletricidade e aquecimento foram cortados, não tem medo quando alguém diz que a vida será difícil. O fator medo estava minimizado para mim. Eu já conhecia o medo. Meus sonhos eram maiores que o medo.
Ron me encarou.
— Tudo bem, vamos voltar para a aula.
O segundo presente que Ron me deu aconteceu na nossa festa de encerramento da peça na casa dele. Deloris, que também estava na aula, falava comigo sobre algum garoto. Não lembro exatamente o que ela estava dizendo, mas em algum momento mencionamos que não éramos bonitas.
Ele disse:
Espera! Vocês duas não se acham bonitas? Por quê?
Envergonhadas, olhamos uma para a outra e rimos.
Ron! Ninguém em Central Falls acha que somos bonitas. Nunca tivemos namorados. Nunca beijamos ninguém — confessei.
Houve uma mudança desconfortável no ar.
Como é que é?
Ron, a maioria das pessoas em Central Falls são brancas e só… nós…
Deloris e eu não tínhamos palavras.
Vocês são lindas pra caralho! Sempre achei isso. Vocês não conseguem ver isso?
A atmosfera na sala mudou de novo. Ou foi o ar em nossos pulmões? Foi um momento divisor de águas, do tipo que acontece quando se é visto, valorizado e adorado. Para as garotas, a adoração valida nossa feminilidade. Quando se é uma garota negra retinta, ninguém simplesmente gosta de você. Eles riem com você, contam segredos, tratam você como um dos garotos… mas nenhum carinho é dado, nenhuma devoção é oferecida. A ausência disso se torna uma forma de apagamento.
Aprendi muito com Ron naquele primeiro verão de aulas de teatro. “O teatro desperta a imaginação”, dizia ele. Ah, a imaginação. A habilidade da mente de criar ideias e imagens. Foi isso que foi despertado em mim, quando Ron disse com tanta convicção: “Você é linda.” Um outro espaço foi aberto no meu mundo onde eu podia ser qualquer pessoa ou coisa que quisesse. Eu podia definir meu mundo naquele espaço e voltar mais forte.
Como a Mulher-Maravilha, girando e se transformando nesse ser super-humano que podia identificar mentiras e acabar com homens de duzentos quilos. Ele me deu o primeiro ingrediente de que eu precisava para ser artista: o poder de criar. O poder da alquimia, aquele processo mágico de transformação e criação para acreditar a qualquer momento que eu poderia ser a pessoa que sempre quis ser.
Ele deu a todos nós algo ainda mais especial: um espaço sagrado no qual podíamos compartilhar nossos sentimentos sem sentir vergonha ou medo. Um espaço onde podíamos compartilhar nossos segredos mais profundos e sombrios, e eles seriam recebidos com amor e empatia. Ele nos encorajou a não guardar nada dentro de nós e, caramba, caramba... Como ele amava quando fazíamos algo ousado, estranho, único. Exclamava em voz alta: “Olhem aquilo, porra!”
Tornei-me atriz porque a atuação é uma fonte de cura.
O Upward Bound era uma mistura de raças. O que tínhamos em comum, além de todos serem extremamente pobres, era uma paixão por ser a primeira geração de nossa família a ter uma educação formal e alcançar grandes feitos. À noite, quando tínhamos permissão para nos encontrar, as histórias eram de arrepiar. Éramos negros, brancos, cambojanos, laosianos, hmong, vietnamitas (rotulados como the boat people, ou “os refugiados dos barcos”), angolanos, portugueses-africanos, dominicanos, porto-riquenhos. Os alunos do Sudeste Asiático em especial tinham histórias de sua família inteira sendo massacrada, ou escapando para a selva, vivendo lá por meses, às vezes anos, até chegarem a um campo de refugiados, onde alguns contraíam malária.
A maioria tinha barreiras linguísticas ou questões de saúde preocupantes, mas todos éramos alunos excepcionais. Todos tínhamos disposição para compartilhar. Foi lá que soube que João, Phy, Vanna, Maria, Peaches e Susie passavam pelo mesmo. De repente, minhas histórias de momentos difíceis pareciam pequenas, uma consciência orquestrada por Deus. Eu queria que a minha história fosse pequena. Eu queria que ela diminuísse como um tumor, até chegar a um tamanho com o qual eu pudesse lidar.
O teatro me deu uma válvula de escape. A liberação emocional que atuar me oferecia me proporcionou grande alegria. Uma alegria perfeita. Quando atuava, conseguia sentir tudo — cada receptor do meu corpo estava vivo, 100% vivo, e eu não estava escondendo nada. Eu me sentia livre para falar sobre todo tipo de merda quando estava no grupo com os outros atores. Esse era o motivo de a maioria dos alunos problemáticos sempre ser colocada na aula de teatro. Todos colocavam tudo para fora! Todos tinham permissão para expor seus traumas, compartilhar histórias de terríveis abusos sexuais ou físicos, revelar um humor completamente excêntrico, revelar seus segredos mais íntimos e sombrios, tudo. As pessoas escutavam com empatia, 100% concentradas, em apoio.
Mas… mas… aí é preciso sair e viver no mundo real como você mesmo. Seguir tentando manter a força de vida que você obteve naquele palco e naquela aula. Whoopi Goldberg, como a médium em Ghost — Do outro lado da vida, tinha talento de atuar como um canal para almas. Algumas eram boas, e outras, más. Porém, depois de tudo, ela tinha que voltar a si e à sua vida. Quando você é um ator, você se torna um caçador de almas. Um ladrão. Depois que as cortinas se fecham, você fica sozinho consigo mesmo.
Quando comecei no Upward Bound, tinha um ano que eu não fazia xixi na cama. Eu estava tão orgulhosa! Mas então, do nada, na primeira noite do que seriam seis semanas em um campus de faculdade, acordei e estava molhada, chocada, envergonhada, e falei: “Ninguém entra neste quarto.”Eu não tinha uma colega de quarto, mas o banheiro era compartilhado. Havia 12 pequenos quartos na acomodação, e o meu tinha provavelmente entre 14 e 19 metros quadrados. Eu havia chegado ao meu quarto e orgulhosamente colocado lá tudo o que tinha, o que era quase nada. Foi a última vez que fiz xixi na cama. Fiquei irritada. Pensei que tivesse mais controle.
A lição que tirei do Upward Bound era que você precisa abrir a boca e contar a sua maldita história. Isso me aterrorizava mais do que os ratos.

Viola Davis, in Em busca de mim

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