sábado, 22 de novembro de 2025

Armstid



Quando lhe dei outra dose de uísque e o jantar estava quase preparado, ele já tinha como certa a compra de uma parelha, a crédito, de alguém. Estava a escolher, dizendo por que não gostava desta parelha, e por que não poria um só níquel em nada que fosse assim ou assado, nem sequer uma galinha choca.
"Experimente o Snopes", eu disse. "Ele tem três ou quatro parelhas. Talvez uma delas lhe convenha." Então, ele pôs-se a resmungar, olhando-me como se eu fosse o proprietário da única parelha de mulas do condado e não quisesse lhe vender, quando eu sabia que, muito provavelmente, seria a minha parelha que os tiraria daqui, no fim das contas. Mas eu não sabia o que eles fariam com as mulas, caso tivessem uma parelha. Littlejohn me tinha dito que o dique, no fundo do vale de Haley, havia sangrado e inundado três quilômetros de terras, e que a única maneira de se chegar a Jefferson seria dando uma volta por Mottson. Mas isto era assunto de Anse.
"Ele é um homem difícil para tratar de negócios", diz, falando entredentes. Mas quando lhe dei outra dose, depois do jantar, alegrou-se um pouco. Queria voltar ao celeiro e velar a morta. Talvez pensasse que, se ficasse ali, pronto para partir, Papai Noel lhe traria uma parelha de mulas. "Mas acho que posso convencê-lo", diz. "Um homem sempre ajuda um amigo num aperto, se tiver uma gota de sangue cristão nas veias." "Naturalmente eu lhe empresto as minhas, com boa-vontade", eu disse, indagando a mim mesmo até que ponto ele acreditaria nisso.
"Muito obrigado", disse. "Ela prefere ir nas nossas", sabendo até que ponto eu acreditava nisso.
Depois do jantar, Jewel foi a Bend apanhar Peabody. Ouvi dizer que ele estaria ali hoje, em casa de Vamer. Jewel voltou cerca da meia-noite. Peabody tinha ido a um certo lugar além de Inverness, mas Tio Billy veio com Jewel, trazendo sua sacola de veterinário. Conforme ele diz, um homem não é assim tão diferente de uma mula ou de um cavalo; um pouco mais alto ou mais baixo, apenas; a diferença é que uma mula ou um cavalo tem um pouco mais de juízo. "Que foi que lhe aconteceu, rapaz?", pergunta ele, olhando Cash. "Tragam-me um colchão, uma cadeira e um copo de uísque", diz.
Faz Cash beber o uísque, depois põe Anse para fora do quarto. "Sorte dele. É a mesma perna que quebrou no último verão", diz Anse, lúgubre, resmungando e pestanejando. "Já é alguma coisa." 
Dobramos o colchão sobre as pernas de Cash e pusemos a cadeira em cima do colchão e eu e Jewel sentamos na cadeira e a moça suspendeu a candeia e Tio Billy meteu na boca um naco de tabaco e começou a trabalhar. Cash debateu-se durante algum tempo, até que perdeu os sentidos. Então, ficou quieto, com grandes bolas de suor imóveis no rosto, como se houvessem começado a rolar e, em seguida, parado, a fim de esperar por ele.
Quando voltou a si, Tio Billy já tinha embrulhado suas coisas e partido. Ele ainda se esforçava por dizer algo, até que a moça inclinou-se e lhe enxugou a boca, "São as ferramentas", ela disse. "Estão ai", disse Darl. "Eu as trouxe." Ele tentou falar outra vez. A moça debruçou-se. "Quer ver as ferramentas", ela disse. Assim, Darl trouxe-as para o quarto, onde ele as pudesse ver. Puseram-na ao lado da cama, ao alcance da mão, a fim de que pudesse tocá-las quando se sentisse melhor. Na manhã seguinte, Anse pegou o cavalo e foi a Bend ver Snopes. Ele e Jewel foram ao curral e ficaram conversando um bocado, depois Anse pegou o cavalo e partiu. Acho que era a primeira vez que Jewel deixava alguém montar no cavalo, e até Anse voltar, andou para cima e para baixo, com aquela expressão de cólera, olhando a estrada, como se estivesse querendo ir atrás de Anse, tomar-lhe o cavalo e trazê-lo.
Por volta das nove horas, o tempo começou a esquentar. Foi então que eu avistei o primeiro bútio. Por causa da umidade, eu suponho. Seja como for, só os percebi quando o dia já avançava. Uma sorte o vento não soprar na direção da casa, do contrário teriam aparecido muito mais cedo. Mas assim que os vi, fui capaz de sentir-lhes o cheiro a mais de um quilômetro de distância, em redor, e eles circulavam e circulavam para que todos nas redondezas vissem o que havia em meu celeiro.
Eu já estava a mais de um quilômetro da casa quando ouvi aquele menino gritar. Pensei que talvez houvesse caldo no poço ou coisa semelhante, de modo que chicoteei o cavalo e entrei no terreiro a galope.
Devia haver, pelo menos, uma dezena de bútios pousados nas vigas do celeiro, e o menino corria atrás de outro, no terreiro, como se fosse um peru, e o bútio esvoaçava o suficiente para livrar-se e retornar ao telhado do barracão, onde o menino o encontrara sentado no ataúde. A essa altura, fazia calor e o vento havia parado ou mudado de direção ou o que fosse. Fui à procura de Jewel, mas Lula foi quem saiu de casa. "Você tem de fazer alguma coisa", ela disse. "É uma vergonha."
"Eu já tinha pensado nisso."
"Uma vergonha", ela disse. "Ele devia ser processado por tratar a mulher dessa forma."
"Pretende enterrá-la o melhor que puder", eu disse.
Assim, quando encontrei Jewel, perguntei-lhe se ele não queria pegar uma mula e ir a Bend ver o que havia acontecido a Anse. Ele não respondeu. Ficou a me encarar com aquelas mandíbulas que eram de um branco cor de osso e com aqueles olhos da mesma cor esbranquiçada de osso; depois, entrou e começou a chamar por Darl.
"Que vai fazer?", perguntei. Não respondeu. Darl saiu.
"Venha", disse Jewel.
"Que vai fazer?", disse Darl.
"Tirar a carroça", disse Jewel por cima do ombro.
"Não seja tolo", eu disse. "Eu não quis ofender dizendo aquilo. Você não pode fazer nada para remediar a situação."
E Darl ficou indeciso, mas Jewel não estava disposto a ouvir ponderações.
"Feche a matraca", ele diz. "É preciso levá-la a algum lugar", disse Darl. "Partiremos assim que Pai voltar."
"Vai me ajudar ou não?", diz Jewel com os olhos brancos a flamejarem e o rosto tremendo como se tivesse febre alta.
"Não", disse Darl. "Não quero. Vou esperar que Pai volte."
Assim, fiquei à porta, vendo como ele puxava e depois empurrava a carroça.
O terreno era inclinado e houve um instante em que pensei que ele pretendia arrebentar a parede dos fundos do barracão. Então, a sineta tocou para o almoço. Eu o chamei, mas ele não olhou em redor. "Venha comer", eu disse. "Avise o menino."
Mas ele não respondeu, de forma que fui almoçar. A moça desceu para pegar o menino, mas voltou sem ele. Estávamos em meio ao almoço quando o ouvimos gritar outra vez, espantando o bútio.
"É uma vergonha", disse Lula. "Uma vergonha."
"Ele faz o melhor que pode", eu disse. "Ninguém acerta negócio com Snopes em meia hora. Passarão a tarde inteira na sombra, a conversar."
"Ah", é?, diz Lula. "Não me diga. Na verdade, ele já fez muito."
Reconheço que é verdade. O problema é que, se ele parar, temos de fazer, então, alguma coisa. Ele não pode comprar uma parelha a pessoa alguma, exceto Snopes, sem hipotecar algo, e já não tem o que hipotecar. De modo que, ao voltar para o campo, eu olhei minhas mulas como se lhes desse adeus por uma longa temporada. E quando voltei ao cair da tarde, depois que o sol batera, o dia todo, no barracão, não tinha mais a certeza de lamentar as mulas. Ele chegou a cavalo justamente quando eu saía ao alpendre, onde todos estavam reunidos. Tinha uma expressão realmente estapafúrdia, mais que a um cão enxotado e, no entanto, conservando um pouco de orgulho. Como se houvesse feito alguma coisa que julgava sagaz, mas sem estar certo de que os outros assim pensariam.
"Consegui uma parelha", disse.
"Comprou uma parelha a Snopes?", perguntei.
"Acho que Snopes não é o único sujeito nesta zona que sabe fazer negócios", disse.
"Claro", eu disse. Ele estava olhando para Jewel com aquela expressão engraçada, mas Jewel havia descido do alpendre e dirigia-se ao cavalo. Para ver o que Anse fizera com ele, eu supus.
"Jewel", diz Anse. Jewel olhou para trás. "Venha cá", diz Anse. Jewel retrocedeu um pouco e depois parou.
"Que é que você quer?"
"Então você comprou uma parelha de Snopes", eu disse. "Ele deve mandá-la trazer esta noite, não? Com certeza vocês querem sair bem cedo amanhã, por causa da volta que têm de fazer por Mottson."
A essa altura, ele mudou o aspecto que vinha assumindo há certo tempo. Adquiriu aquele outro, de vitima, que lhe era habitual, resmungando entredentes. "Faço o que posso", disse. "Juro, diante de Deus, que não houve neste mundo homem que sofresse mais atribulações e pesares do que eu."
"Uma pessoa que acaba de vencer Snopes num negócio deve sentir-se bem feliz", eu disse. "Que lhe deu em troca, Anse?"
Ele não me olhou. "Dei o semeador e o desçaroçador", disse.
"Mas não valem quarenta dólares. Até onde você iria para obter uma parelha de quarenta dólares?"
Todos o observavam agora, calmos e firmes. Jewel estava parado, meio virado, aguardando o momento de se dirigir ao cavalo.
"Dei outras coisas", disse Anse. Começou a mexer novamente com a boca, ali em pé, como se esperasse que alguém fosse golpeá-lo e ele já decidido a não resistir de forma alguma.
"Que outras coisas?", disse Darl.
"Diabo", eu disse. "Peguem minha parelha. Devolvam-na assim que terminarem. Enquanto isso, eu me arranjo."
"Por isso era que você mexia, ontem à noite, nas roupas de Cash", disse Darl. Falou como se estivesse lendo um papel. Como se isto não o preocupasse de maneira alguma. Jewel voltara, desta vez, e, em pé, olhava Anse com seus olhos de bola de gude.
"Cash queria comprar aquela máquina falante de Suratt com o dinheiro", disse Darl.
Anse continuou firme, mexendo com a boca. Jewel observava-o. Ainda não havia pestanejado uma vez sequer.
"Mas isto são apenas mais oito dólares", disse Darl, como se ele se limitasse a ouvir, sem maior interesse pessoal. "Não daria para comprar uma parelha."
Anse olhou para Jewel, rápido, com um olhar furtivo, depois baixou novamente a vista. "Deus é testemunha. Nunca houve um homem...", disse.
Os outros não responderam. Apenas o observavam, à espera, e ele desviando os olhos para os pés e fazendo-as subir pelas pernas, mas daí não passando.
"E o cavalo", ele diz.
"Que cavalo?", disse Jewel.
Anse não se mexia, o diabo me leve. Se um homem não pode governar os filhos com mão firme, o melhor que tem a fazer é pô-los porta afora, não importa a sua idade. E se não pode fazer isto, o diabo me leve se ele não devia, então, ir embora. Quero ir para o inferno se não fosse isto o que eu faria.
"Quer dizer que fez negócio com meu cavalo?", diz Jewel.
Anse continua ali em pé, de braços caídos. "Há quinze anos não tenho um só dente na boca", diz. "Deus é testemunha. Ele sabe que há quinze anos não como os alimentos que destinou ao homem para o homem conservar as forças, e eu guardando um níquel aqui e outro ali, para que a família não sofresse ao me ver desse jeito, para comprar uma dentadura a fim de comer os alimentos designados por Deus. Pois bem: dei esse dinheiro. Pensei que, se eu podia passar sem comer, meus filhos podiam passar sem um cavalo. Deus é testemunha."
Jewel continuava em pé, com as mãos nas cadeiras, olhando para Anse. Depois, desviou a vista. Olhou através do campo, o rosto duro como rochedo, como se outra pessoa estivesse a falar do cavalo de outra pessoa e ele não ouvisse. Em seguida, cuspiu devagar e disse: "Diabo" e, dando meia-volta, dirigiu-se à cancela, soltou o cavalo e pulou em cima.
O cavalo já estava em movimento quando ele caiu na sela, e, mal sentou-se, os dois partiram pela estrada como se tivessem a Lei nos seus calcanhares. Perderam-se de vista, cada um deles semelhante a um ciclone malhado.
"Bem", eu disse. "Leve minha parelha".
Mas ele não queria. E os outros não queriam ficar, e ainda por cima, aquele menino caçando bútios o dia inteiro, ao sol quente, até ficar quase tão louco quanto os outros. "Deixe Cash aqui, ao menos", eu disse. Mas eles. não queriam. Fizeram-lhe uma cama com cobertores sobre o caixão e o deitaram e puseram suas ferramentas perto e atrelamos as minhas mulas e levamos a carroça cerca de dois quilômetros além, pela estrada. "Se estivermos incomodando", diz Anse, "é só dizer."
"Claro", eu disse. "Ficará bem aqui. E em segurança também. Agora, vamos voltar e jantar."
"Eu lhe agradeço", disse Anse. 'Temos alguma coisa de comer na cesta. Podemos nos arranjar."
"Onde compraram a comida?", eu perguntei. "Trouxemos de casa."
"Então deve estar passada", eu disse. "Venham, vamos comer alguma coisa quente."
Mas eles não quiseram. "Acho que nos arranjaremos", disse Anse.
Dessa forma, fui para casa e comi e levei uma cesta de comida para eles e tentei novamente levá-los para casa.
"Eu lhe agradeço", ele disse. "Acho que podemos nos arranjar."
Por isso, deixei-os ali, acocorados ao redor de pequena fogueira, esperando. Deus sabe o quê.
Fui para casa. Continuava a pensar nos que ali haviam estado e naquele outro que tinha disparado naquele cavalo. E não creio que voltassem a vê-lo. O diabo me leve se eu o culpava. Não por não querer entregar o cavalo, mas por haver abandonado o estúpido Anse.
Pelo menos, foi o que pensei então. Porque o diabo me leve se não há alguma coisa nesses sujeitos malditos, tipo Anse, que nos obrigam a ajudá-los, mesmo que, no minuto seguinte, a gente esteja com vontade de dar pontapés em si própria. Porque uma hora depois do café, na manhã seguinte, Eustace Grimm, que trabalha para Snopes, apareceu com uma parelha de mulas, à procura de Anse.
"Pensei que ele e Anse não houvessem feito negócio", eu disse.
"Ahn", disse Eustace. "Eles só pensavam no cavalo. Conforme eu disse a Mr. Snopes, ele ia entregar a parelha por cinquenta dólares, porque, se seu tio Flem tivesse conservado os cavalos texanos que possuía então, Anse jamais..."
"O cavalo?", eu perguntei. "O filho de Anse disparou nele, a noite passada, e provavelmente está, agora, a meio caminho do Texas, e Anse..."
"Então não sei quem o levou", disse Eustace. "Eu não os conheço. Encontrei o cavalo no estábulo, esta manhã, quando fui dar comida aos animais. Contei a Mr. Snopes e ele me mandou trazer a parelha aqui."
Bem, é a última vez que terão notícias dele, sem dúvida alguma. Quando chegar o Natal, talvez recebam um cartão postal, enviado por ele do Texas, é o que penso. E se não fosse Jewel, suponho que seria eu. Devo-lhe isso. O diabo me leve se Anse não enfeitiça a gente, de certa maneira. O diabo me leve se ele não tem jeito para isso.

William Faulkner, em Enquanto Agonizo

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