Minha
terra tem palmeiras / Onde canta o sabiá / As aves que aqui gorjeiam
/ Não gorjeiam como lá.
Gonçalves
Dias escreveu esta quadra quando estava em Portugal. E eu estava lá
quando a lembrei; isto foi no tempo em que morei no Marrocos. Pensei
comigo: é verdade, poeta.
Gorjeiam
diferente; diferente, mas parecido. Eu diria que a voz às vezes é
igual; a melodia é que muda. Também as palmeiras são diferentes;
são diferentes, mas são palmeiras.
As
seis da manhã, em minha casa, em Rabat; depois, num fim de sesta,
ainda meio entorpecido pelo sono, no Hotel Mamunia, em Marrakech —
grande hotel, com seus jardins seculares, de onde se veem as
tamareiras no primeiro plano e, ao fundo, as alturas nevadas do
Grande Atlas — duas vezes tive a impressão de estar ouvindo o
sabiá.
Da
terceira vez eu não somente ouvi: eu vi. Estava pousado no chão;
era um sabiá.
Tinha
o mesmo tamanho e o mesmo jeito de nosso sabiá; apenas o peito era
mais claro, com umas pintas escuras. No Brasil há tantos sabiás
diferentes que bem podia haver mais este — “sabiá de peito
pintado”, vamos dizer. Mas os portugueses o chamam de tordo, e os
italianos também; para os espanhóis é zonal, para os ingleses é
thrush, para os franceses é grive.
Estas
coisas eu aprendi depois de comprar um livro; comprei esse livro
porque eu andava intrigado e infeliz, sem saber os nomes dos
passarinhos do meu quintal. É certo que não achei o que procurava,
algo sobre os pássaros do Marrocos. O livro que comprei foi A
First Guide to Birds of Britain and Europe, livro feito por
ingleses e americanos e prefaciado por Julian Huxley; não comprei o
original, mas a tradução espanhola, tradução (adaptada) bem
espanhola, tanto que o livro passou a se chamar Guia de Campo de
las Aves de España y demás países de Europa.
O
estreito de Gibraltar é tão estreito que imaginei que muito
passarinho que vive de um lado também pode viver de outro; e tinha
razão. Olhando as figurinhas do livro fiquei sabendo o nome de todos
os passarinhos do meu quintal. O bom livrinho traz o nome científico
e depois o nome comum em várias línguas, inclusive,o português;
não o nosso, é claro, mas o de Portugal, onde sabiá é tordo —
do mesmo gênero, da mesma família, apenas de espécies diversas.
Vai
ver que o poeta Gonçalves Dias estava distraído, ouviu cantar um
tordo, lembrou-se do sabiá, teve saudade do sabiá, e fez aquele
verso.
Vejo
aqui várias figuras de tordos, uns do Sul, outros do Norte da
Europa, outros que vivem também na Ásia (como o tardus neumanii
que se parece demais com o nosso sabiá- laranjeira) e posso
informar aos nossos tradutores de poemas e de romances líricos que
tordo, zorzal, grive ou thrush, tudo isto pode ser honestamente
traduzido por sabiá.
Em
Rabat eu vivia em uma casinha moderna, feita por um razoável
arquiteto suíço sem muita imaginação, mas com senso de conforto,
o que teve o mérito de poupar uma árvore que havia no terreno, e
dava graça a tudo. Não sei o nome da árvore: era uma acácia ou
uma mimosa?
Sei
nome de poucas árvores. Mas o que me incomodava era não saber os
nomes dos passarinhos.
Passarinho
é uma coisa viva, colorida e móvel, ruidosa e com temperamento,
feito mulher. Você de repente vê uma mulher bonita; leva aquele
choque; mulher bonita incomoda, faz a conversa da roda ficar sem
sentido, as pessoas dizendo uma coisa e pensando outra; mulher bonita
é sempre uma perturbação. Mas se você sabe o seu nome pelo menos
fica mais aplacado, menos desprevenido diante do mistério da beleza;
ela deixa de ser uma aparição, entra na vida civil, é afinal uma
pessoa como as outras, capaz de ter um irmão bêbado e um mau
funcionamento dos rins; enfim, deixa de ser deusa, é uma cidadã —
pelo menos até certo ponto.
Passarinho
também me dá vontade de perguntar — “quem é você, como se
chama?” — pois, uma vez sabendo o nome, a gente fica mais à
vontade perante o passarinho, tem uma ilusão de ter de certo modo
quebrado essa distância infeliz que há entre o ser humano e o
passarinho.
O
pior é que, vendo e ouvindo esses passarinhos estrangeiros, eu não
podia deixar de sentir que o estrangeiro era eu — o bárbaro, o
intruso, o que não sabe o nome das pessoas da terra. Vinguei-me
escrevendo a uma querida amiga: “Aqui há muitos passarinhos e toda
manhã cantam, mas é uma pena, cantam em puro árabe...” Com o
Guia de Campo de las Aves em punho, descobri que aquela
cambaxirrinha que saltitava na moita podia ser chamada de carriça,
embora tenha o nome feroz de Troglodytes troglodytes; o
pássaro preto de bico amarelo era o melro legítimo, aquele do
Guerra Junqueiro, o Turdus merula, ruidoso e jovial, irmão
preto do sabiá, primo do nosso vira e da nossa graúna; uns outros
cor de canário-da-terra, porém mais cheios de corpo, são
verdilhões; aqueles dois pardos, um de cabecinha preta, outro de
cabecinha cor de ferrugem, que ora fazem “tec-tec” ora gorjeiam
bonito, ah, esses eu já conhecia de nome, de velhos romances, e tive
o maior prazer em lhes ser apresentado: são um casal de toutinegras.
É um casal sério, pois, ao contrário de tantas outras aves, o
macho é que é mais sóbrio, tem a cabecinha escura, enquanto a
fêmea chama a atenção com seu boné vermelho. Infelizmente até
hoje um desses ainda não apareceu quando tenho visita de brasileiro
em casa. Estou esperando, só para ter o gosto de dizer, com um ar
muito natural, como se desde menino eu não conhecesse outro bicho:
“Olhe ali uma toutinegra...”
Nesse
dia, sim, eu me sentirei dono da minha casa e do meu quintal,
merecedor de ouvir pela manhã, sem remorso, a cantoria de minha
passarada.
Rubem Braga, em Recado de primavera
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