sexta-feira, 30 de maio de 2025

O sol também se levanta

 


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Nesse inverno, Robert Cohn viajou para a América e levou o seu romance, que foi aceito por um bom editor. Sua ida causou grande sensação, segundo ouvi dizer, e creio que foi lá que Frances o perdeu. Várias mulheres o assediaram em Nova York e ele voltou inteiramente mudado. Seu entusiasmo pela América era cada vez maior. Robert já não era uma pessoa tão simples nem tão agradável. Os editores tinham dito maravilhas do seu livro e aquilo lhe subiu à cabeça. Depois, muitas mulheres começaram a interessar-se por ele e ampliaram-se os seus horizontes, que durante quatro anos haviam estado limitados por sua mulher. Em três anos, Robert não vira quase ninguém além de Frances. Eu estava até mesmo convencido de que nunca havia amado, na vida.
Casara-se por uma reação à vida desagradável que levara na Universidade, e Frances o agarrara quando ele descobrira que não havia sido o único homem para sua primeira esposa. Não amara ainda, mas compreendera que exercia alguma atração sobre as mulheres, e o fato de que uma o achasse interessante e quisesse viver com ele não era nenhum milagre. Isso o modificou a tal ponto, que sua companhia tornou-se importuna. E também, jogando partidas de bridge em paradas mais altas do que podia, com seus conhecidos de Nova York, tivera sorte e ganhara várias centenas de dólares. Envaideceu-se com sua habilidade no jogo, e mais de uma vez o vi repetindo que um homem poderia muito bem viver do bridge, se não tivesse outro recurso.
Havia ainda outra coisa: Cohn andara lendo W. H. Hudson. Parece não haver nisso nenhum mal, porém ele lera e relera The Purple Land, livro sinistro, quando lido demasiado tarde na vida. O livro narra de maneira esplêndida as imaginárias aventuras amorosas de um perfeito cavalheiro inglês, num país intensamente romântico, e o cenário é muito bem-descrito.
Tratando-se de um homem de trinta e quatro anos, tomá-lo como um guia para o que a vida pode lhe reservar é tão perigoso como seria, para um homem da mesma idade, saindo de um convento francês, entrar diretamente em Wall Street, munido de uma coleção completa dos livros mais práticos de Alger.* Creio que Cohn tomava cada palavra de The Purple Land em sentido tão literal como se fosse um relatório comercial da R. G. Dun. É certo que fazia algumas reservas, mas de um modo geral julgava-o um livro sério. E não era preciso mais para o entusiasmar. Só compreendi a que ponto isso o alterou no dia em que ele me irrompeu escritório adentro.
Olá, Robert — cumprimentei. — Veio me fazer uma visita?
Gostaria de ir à América do Sul, Jake? — perguntou.
Não.
Por quê?
Não sei. Nunca desejei viajar para lá. Muito caro. Você pode ver quantos sul-americanos quiser, aqui mesmo em Paris.
Não são sul-americanos de verdade.
Para mim parecem um bocado reais.
Eu tinha uma batelada de correspondências a enviar pelo correio e escrevera apenas a metade dela.
Sabe de algum escândalo? — perguntei.
Não.
Nenhum de seus amigos vai se divorciar?
Não. Escute, Jake, se eu pagasse as despesas, você iria comigo à América do Sul?
Mas, por que me escolheu?
Você fala espanhol. E seria mais divertido irmos os dois.
Não. Eu gosto daqui e no verão vou à Espanha.
Sempre desejei fazer uma viagem dessas — disse Cohn, sentando-se. — Quando puder fazê-la, já estarei velho demais.
Que bobagem! Você pode ir para onde quiser. Tem muito dinheiro.
Sei disso. Mas não consigo decidir-me.
Anime-se — disse eu. — Todos os países se parecem com o que vemos nos filmes.
Mas tive pena dele. Levava aquilo a sério.
Não me conformo, quando penso que minha vida vai passando tão depressa e não a vivo realmente.
— Ninguém vive com a intensidade que deseja, exceto os toureiros.
— Os toureiros não me interessam. Levam uma vida anormal. Quero mesmo é dar umas voltas pela América do Sul. Seria uma grande viagem!
Já pensou em ir caçar na África Oriental Inglesa?
Não, isso não me agradaria.
Para lá eu iria com você.
Não estou interessado.
Isso é porque você nunca leu nada sobre o assunto. Procure ler um livro recheado de casos amorosos com belas princesas negras e lustrosas.
Quero ir à América do Sul.
Era mesmo uma obstinação judaica.
Vamos lá embaixo beber alguma coisa?
Você não está trabalhando?
Não — respondi. Descemos a escada até o Café, no andar térreo. Eu descobrira que é esse o melhor meio de a gente livrar-se de amigos. Bebe-se um pouco e depois é só dizer: “Bem, preciso voltar para enviar alguns telegramas”, e pronto. É importantíssimo, no jornalismo, descobrir saídas jeitosas como essa. Faz parte da ética profissional dar sempre a impressão de não estar trabalhando. Bem, mas descemos e tomamos uísque com soda. Cohn olhava para as garrafas nas caixas, em volta da parede.
Bom lugar, este — declarou.
Há muita bebida aqui — concordei.
Escute, Jake — e curvou-se sobre o balcão. — Nunca tem a impressão de que sua vida vai passando sem você aproveitá-la? Não percebe que já viveu a metade do tempo que tem para viver?
Sim, isso me acontece de vez em quando.
Sabe que dentro de trinta e cinco anos já estará morto?
Que diabo! Francamente, Robert!
Estou falando sério.
Isso é coisa que não me preocupa.
Devia preocupar-se.
Tenho tido sempre preocupações. Já estou farto delas — respondi.
Bem, eu queria ir à América do Sul.
Escute, Robert, tanto faz um país como outro. Tenho experiência disso. Não podemos sair de dentro de nós mesmos. Não adianta.
Mas você nunca esteve na América do Sul.
Para o inferno a América do Sul! Se você fosse lá do jeito como está, iria continuar na mesma. Paris é uma boa cidade. Por que não começa a viver aqui mesmo?
Estou saturado de Paris, farto do Quartier.
Então se afaste do Quartier. Ande por aí sozinho e veja o que acontece.
Não me acontece nada. Já andei sozinho durante toda uma noite e nada sucedeu. Apenas um guarda, de bicicleta, pediu para examinar meus documentos.
Não achou a cidade bonita à noite?
Paris não me interessa.
E dali não saíamos. Eu tinha pena dele, mas nada podia fazer porque esbarrava em duas obstinações: a América do Sul resolveria o problema e Paris não lhe agradava. A primeira ideia tirara de um livro, e julgo que a segunda saíra também de um livro.
Bem, preciso subir para enviar uns telegramas.
Precisa mesmo?
Sim, tenho de despachá-los.
Você não se incomoda se eu subir e ficar um pouco no escritório?
Não. Suba.
Sentou-se na sala de espera e ficou lendo os jornais e o Editor and Publisher, e eu trabalhei, com afinco, durante duas horas. Depois pus em ordem os carbonos, assinei a correspondência, coloquei-a em dois envelopes-sacos e chamei um boy para levá-los à Gare Saint Lazare. Entrei na sala de espera e encontrei Robert dormindo na poltrona. Dormia com a cabeça apoiada nos braços. Eu não queria acordá-lo, mas tinha de fechar o escritório e sair. Pousei a mão em seu ombro, ele sacudiu a cabeça.
Não posso fazer isso — disse. E afundou mais a cabeça nos braços. — Não posso, nada vai me obrigar a fazer uma coisa dessas.
Robert — disse eu, sacudindo-lhe o ombro. Ele ergueu os olhos, sorriu e pestanejou.
Falei alto, agora mesmo?
Disse qualquer coisa, mas não muito claro.
Meu Deus! Que sonho terrível!
O ruído da máquina o fez dormir?
Acho que sim. Não dormi na noite passada.
Por quê?
Estive conversando.
Compreendi. Eu tinha o péssimo hábito de imaginar as cenas de alcova de meus amigos. Saímos, fomos ao Café Napolitain tomar um aperitivo e olhar a multidão que passava no Boulevard.

Nota
*Horatio Alger, 1834-1899. Escritor norte-americano, autor de obras destinadas especialmente à juventude. (N. T.)

Ernest Hemingway, em O sol também se levanta

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