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Nesse
inverno, Robert Cohn viajou para a América e levou o seu romance,
que foi aceito por um bom editor. Sua ida causou grande sensação,
segundo ouvi dizer, e creio que foi lá que Frances o perdeu. Várias
mulheres o assediaram em Nova York e ele voltou inteiramente mudado.
Seu entusiasmo pela América era cada vez maior. Robert já não era
uma pessoa tão simples nem tão agradável. Os editores tinham dito
maravilhas do seu livro e aquilo lhe subiu à cabeça. Depois, muitas
mulheres começaram a interessar-se por ele e ampliaram-se os seus
horizontes, que durante quatro anos haviam estado limitados por sua
mulher. Em três anos, Robert não vira quase ninguém além de
Frances. Eu estava até mesmo convencido de que nunca havia amado, na
vida.
Casara-se
por uma reação à vida desagradável que levara na Universidade, e
Frances o agarrara quando ele descobrira que não havia sido o único
homem para sua primeira esposa. Não amara ainda, mas compreendera
que exercia alguma atração sobre as mulheres, e o fato de que uma o
achasse interessante e quisesse viver com ele não era nenhum
milagre. Isso o modificou a tal ponto, que sua companhia tornou-se
importuna. E também, jogando partidas de bridge em paradas mais
altas do que podia, com seus conhecidos de Nova York, tivera sorte e
ganhara várias centenas de dólares. Envaideceu-se com sua
habilidade no jogo, e mais de uma vez o vi repetindo que um homem
poderia muito bem viver do bridge, se não tivesse outro recurso.
Havia
ainda outra coisa: Cohn andara lendo W. H. Hudson. Parece não haver
nisso nenhum mal, porém ele lera e relera The Purple Land,
livro sinistro, quando lido demasiado tarde na vida. O livro narra de
maneira esplêndida as imaginárias aventuras amorosas de um perfeito
cavalheiro inglês, num país intensamente romântico, e o cenário é
muito bem-descrito.
Tratando-se
de um homem de trinta e quatro anos, tomá-lo como um guia para o que
a vida pode lhe reservar é tão perigoso como seria, para um homem
da mesma idade, saindo de um convento francês, entrar diretamente em
Wall Street, munido de uma coleção completa dos livros mais
práticos de Alger.* Creio que Cohn tomava cada palavra de The
Purple Land em sentido tão literal como se fosse um relatório
comercial da R. G. Dun. É certo que fazia algumas reservas, mas de
um modo geral julgava-o um livro sério. E não era preciso mais para
o entusiasmar. Só compreendi a que ponto isso o alterou no dia em
que ele me irrompeu escritório adentro.
— Olá,
Robert — cumprimentei. — Veio me fazer uma visita?
— Gostaria
de ir à América do Sul, Jake? — perguntou.
— Não.
— Por
quê?
— Não
sei. Nunca desejei viajar para lá. Muito caro. Você pode ver
quantos sul-americanos quiser, aqui mesmo em Paris.
— Não
são sul-americanos de verdade.
— Para
mim parecem um bocado reais.
Eu
tinha uma batelada de correspondências a enviar pelo correio e
escrevera apenas a metade dela.
— Sabe
de algum escândalo? — perguntei.
— Não.
— Nenhum
de seus amigos vai se divorciar?
— Não.
Escute, Jake, se eu pagasse as despesas, você iria comigo à América
do Sul?
— Mas,
por que me escolheu?
— Você
fala espanhol. E seria mais divertido irmos os dois.
— Não.
Eu gosto daqui e no verão vou à Espanha.
— Sempre
desejei fazer uma viagem dessas — disse Cohn, sentando-se. —
Quando puder fazê-la, já estarei velho demais.
— Que
bobagem! Você pode ir para onde quiser. Tem muito dinheiro.
— Sei
disso. Mas não consigo decidir-me.
— Anime-se
— disse eu. — Todos os países se parecem com o que vemos nos
filmes.
Mas
tive pena dele. Levava aquilo a sério.
— Não
me conformo, quando penso que minha vida vai passando tão depressa e
não a vivo realmente.
— Ninguém vive com a intensidade que deseja,
exceto os toureiros.
— Os toureiros não me interessam. Levam uma
vida anormal. Quero mesmo é dar umas voltas pela América do Sul.
Seria uma grande viagem!
— Já
pensou em ir caçar na África Oriental Inglesa?
— Não,
isso não me agradaria.
— Para
lá eu iria com você.
— Não
estou interessado.
— Isso
é porque você nunca leu nada sobre o assunto. Procure ler um livro
recheado de casos amorosos com belas princesas negras e lustrosas.
— Quero
ir à América do Sul.
Era
mesmo uma obstinação judaica.
— Vamos
lá embaixo beber alguma coisa?
— Você
não está trabalhando?
— Não
— respondi. Descemos a escada até o Café, no andar térreo. Eu
descobrira que é esse o melhor meio de a gente livrar-se de amigos.
Bebe-se um pouco e depois é só dizer: “Bem, preciso voltar para
enviar alguns telegramas”, e pronto. É importantíssimo, no
jornalismo, descobrir saídas jeitosas como essa. Faz parte da ética
profissional dar sempre a impressão de não estar trabalhando. Bem,
mas descemos e tomamos uísque com soda. Cohn olhava para as garrafas
nas caixas, em volta da parede.
— Bom
lugar, este — declarou.
— Há
muita bebida aqui — concordei.
— Escute,
Jake — e curvou-se sobre o balcão. — Nunca tem a impressão de
que sua vida vai passando sem você aproveitá-la? Não percebe que
já viveu a metade do tempo que tem para viver?
— Sim,
isso me acontece de vez em quando.
— Sabe
que dentro de trinta e cinco anos já estará morto?
— Que
diabo! Francamente, Robert!
— Estou
falando sério.
— Isso
é coisa que não me preocupa.
— Devia
preocupar-se.
— Tenho
tido sempre preocupações. Já estou farto delas — respondi.
— Bem,
eu queria ir à América do Sul.
— Escute,
Robert, tanto faz um país como outro. Tenho experiência disso. Não
podemos sair de dentro de nós mesmos. Não adianta.
— Mas
você nunca esteve na América do Sul.
— Para
o inferno a América do Sul! Se você fosse lá do jeito como está,
iria continuar na mesma. Paris é uma boa cidade. Por que não começa
a viver aqui mesmo?
— Estou
saturado de Paris, farto do Quartier.
— Então
se afaste do Quartier. Ande por aí sozinho e veja o que acontece.
— Não
me acontece nada. Já andei sozinho durante toda uma noite e nada
sucedeu. Apenas um guarda, de bicicleta, pediu para examinar meus
documentos.
— Não
achou a cidade bonita à noite?
— Paris
não me interessa.
E
dali não saíamos. Eu tinha pena dele, mas nada podia fazer porque
esbarrava em duas obstinações: a América do Sul resolveria o
problema e Paris não lhe agradava. A primeira ideia tirara de um
livro, e julgo que a segunda saíra também de um livro.
— Bem,
preciso subir para enviar uns telegramas.
— Precisa
mesmo?
— Sim,
tenho de despachá-los.
— Você
não se incomoda se eu subir e ficar um pouco no escritório?
— Não.
Suba.
Sentou-se
na sala de espera e ficou lendo os jornais e o Editor and
Publisher, e eu trabalhei, com afinco, durante duas horas. Depois
pus em ordem os carbonos, assinei a correspondência, coloquei-a em
dois envelopes-sacos e chamei um boy para levá-los à Gare
Saint Lazare. Entrei na sala de espera e encontrei Robert dormindo na
poltrona. Dormia com a cabeça apoiada nos braços. Eu não queria
acordá-lo, mas tinha de fechar o escritório e sair. Pousei a mão
em seu ombro, ele sacudiu a cabeça.
— Não
posso fazer isso — disse. E afundou mais a cabeça nos braços. —
Não posso, nada vai me obrigar a fazer uma coisa dessas.
— Robert
— disse eu, sacudindo-lhe o ombro. Ele ergueu os olhos, sorriu e
pestanejou.
— Falei
alto, agora mesmo?
— Disse
qualquer coisa, mas não muito claro.
— Meu
Deus! Que sonho terrível!
— O
ruído da máquina o fez dormir?
— Acho
que sim. Não dormi na noite passada.
— Por
quê?
— Estive
conversando.
Compreendi.
Eu tinha o péssimo hábito de imaginar as cenas de alcova de meus
amigos. Saímos, fomos ao Café Napolitain tomar um aperitivo e olhar
a multidão que passava no Boulevard.
Nota
*Horatio
Alger, 1834-1899. Escritor norte-americano, autor de obras destinadas
especialmente à juventude. (N. T.)
Ernest Hemingway, em O sol também se levanta

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