segunda-feira, 28 de abril de 2025

Darl


Pai está em pé ao lado da cama. Por trás de sua perna, Vardaman espia, com a cabeça redonda e os olhos redondos e a boca que começa a se abrir. Ela olha Pai: parece que toda a sua débil vida flui para os olhos, urgente, irremediavelmente. “É Jewel quem ela quer ver”, diz Dewey Dell.
Ora, Addie”, diz Pai, “ele e Darl foram apanhar outro carregamento. Julgaram que haveria tempo. Que você esperaria por eles, e que esses três dólares, afinal...”
Inclina-se e põe a mão na mão dela. Por um Instante ela o olha, sem censura, sem nada, como se os olhos apenas aguardassem o momento de ouvir a irrevogável cessação da voz dele. Em seguida, soergue-se, ela que não se move há dez dias. Dewey Dell debruça-se sobre a cama, tentando fazer com que se deite.
Mãe”, ela diz, “Mãe.”
Está olhando pela janela, para Cash que, inclinado com determinação sobre o cavalete, à luz desfalecente, trabalha quase no escuro, e entra no escuro como se o golpe da serra iluminasse seu próprio movimento engendrado pela tábua e pela serra.
Cash!”, ela grita com voz áspera, forte, inalterada. “Escute, Cash!” Ele levanta o olhar para o rosto consumido que o crepúsculo emoldura na janela. O mesmo quadro desde os seus tempos de criança, Ele pousa a serra e ergue a tábua para que ela a veja, olhando a janela do onde o rosto não se move. Levanta outra tábua e junta as duas, em sua final justaposição, apontando para as tábuas que ainda estão no solo, e modelando, com a mão vazia, em pantomima, o caixão, quando estiver pronto. Durante mais um pouco ela olha para ele, do quadro composto pela janela, .sem censura ou aprovação. Depois, o rosto desaparece.
Ela se deita novamente e vira a cabeça, sem um olhar de relance, sequer, para Pai. Olha Vardaman; seus olhos, a vida neles, a vida que ainda tem, ali se concentra; os dois clarões luzem por um rápido instante, e depois se apagam, como se alguém, tendo se inclinado, houvesse soprado.
Mãe”, diz Dewey Dell, “Mãe!”
Inclinada sobre a cama, as mãos um pouco erguidas, o leque ainda agitando-se, como há dez dias, ela começa a lamuriar-se. Sua voz é forte, juvenil, trêmula e clara, arrebatada por seus próprio timbre e volume; ainda agita, o leque com firmeza, para cima e para baixo, sussurrando no ar inútil. Depois, ela cai sobre os joe lhos e Addie Bundren, e agarrando-a, sacode-a com a furiosa força dos jovens, antes de estender-se, de súbito, sobre o punhado de ossos corroídos que resta de Addie Bundren, abalando a cama com o silvo rangente do colchão, os braços estendidos e o leque, numa das mãos, ainda a bater, com um sopro expirante, no cobertor.
Por trás da perna de Pai, Vardaman espia, de boca bem aberta e a cor fluindo do rosto para a boca, como se, de certo modo, houvesse cravado os dentes em si mesmo, sugando. Começa a se afastar vagarosamente da cama, os olhos redondos, o rosto pálido desmaiando no crepúsculo qual pedaço de papel colado a uma parede arruinada, e sai pela porta.
Pai inclina-se para a cama; ao crepúsculo sua silhueta encovada assemelha-se ao aspecto eriçado, descontente, de um mocho que disfarça uma sabedoria por demais profunda, ou por demais inerte para ser, sequer, concebida.
Meninos danados”, ele diz.
Jewel, eu digo. Por cima, o dia definha, monótono e cinzento, escondendo o sol atrás de uma nuvem de lanças cinzentas, As mulas fumegam um pouco, sob a chuva, amarelecidas pelos respingos de lama, e a da direita, apesar de escorregar, mantém se na estrada, acima da valeta. A carga de madeira despede um brilho amarelo-escuro, empapado , de água e pesado como chumbo, inclinado de banda, para a valeta, por sobre a roda quebrada; em volta dos raios entrançados e em volta dos tornozelos de Jewel, um fio grosso de água e amarelo, nem água nem terra, gira, seguindo a estrada amarela, nem água nem terra, desce pela encosta em forma de massa dissoluta, verde-escuro, nem água nem céu. Jewel, eu digo Cash aparece à porta, de serra na mão. Pai continua em pé, ao lado da cama, curvado, os braços pendentes. Volta a cabeça; seu perfil gasto e seu queixo desaparecem devagar, enquanto ele comprime o fumo contra as gengivas.
Findou-se”, diz Cash.
Foi embora e nos deixou”, diz Pai. Cash não o olha. “Falta muito para acabar o trabalho?", pergunta Pai. Cash não responde- Entra carregando a serra. "Ê melhor acabar o trabalho", diz Pai. "Você tem de caprichar, agora que os rapazes estão a caminho." Cash pousa os olhos no rosto du mãe. Não ouve Pai de forma nenhuma. Não se aproxima da cama. Para no meio do quarto, a serra contra a perna, os braços suados polvilhados de serragem, o rosto grave. "Se estiver apertado, talvez alguém venha amanhã dar-lhe ajuda", diz Pai. "Vernon, por exemplo." Cash não está ouvindo. Olha o rosto da mãe, pacificado e rígido, esmaecendo ao crepúsculo como se as sombras se antecipassem à última terra, até que, por fim, o rosto parece flutuar, destacado de si mesmo, leve como o reflexo de uma folha morta. "Não faltam bons cristãos para ajudar você", diz Pai. Cash não escuta. Depois de algum tempo, vira-se sem olhar Pai e deixa o quarto. Depois, a serra começa a roncar novamente. "Vão nos ajudar em nossa desgraça", diz Pai.
O som da serra é firme, competente, sereno; agita a claridade mortiça, de forma que, a cada golpe, o rosto da morta parece despertar um pouco, em expressão de atenção e espera, como se ela estivesse contando os golpes. Pai baixa o olhar para o rosto, junto aos cabelos pretos e esparramados de Dewey Dell que, de braços abertos, tem o leque agora imóvel sobre o cobertor descorado. “Acho que é melhor você preparar o jantar”, ele diz.
Dewey Dell não se move.
Levante-se, já e já, e vá servir o jantar”, diz Pai. “Temos de manter as forças. O Dr. Peabody deve estar faminto por causa da caminhada, E Cash terá de comer ligeiro e voltar ao trabalho a fim de terminar tudo a tempo.” Dewey Dell levanta-se com dificuldade. Contempla o rosto da morta. Ele parece um molde de bronze pálido sobre o travesseiro somente nas mãos um ligeiro vestígio de vida: uma inércia encrespada, nodosa; um aspecto de coisa gasta, mas ainda vigilante, do qual ainda não saíram a preocupação, a fadiga, o trabalho, como se duvidassem ainda da realidade do repouso, guardando com penosa e eriçada vigilância a imobilidade que bem sabem não pode durar.
Dewey Dell inclina-se, puxa o cobertor debaixo das mãos e estende-o ate o queixo, alisando-o, estirando-o até que fique bem macio. Depois, sem olhar Pai, ela contorna a cama e sai do quarto.
Vai ao encontro de Peabody, a um lugar onde passa, em pé a penumbra, fitar-lhe as costas com tal expressão que, sentindo seus olhos e voltando-se, ele dirá: “Não fique as sim tão desgostosa. Ela era velha e estava doente. Sofria mais do que se podia imaginar Não ia ficar boa. Vardaman está crescendo e, como você, tomará conta de todos. Eu, em seu lugar, não ficaria tão desgostoso. Acho que é melhor ir aprontar o jantar. Não preciso fazer muita coisa. Mas eles têm de comer”. E ela, olhando-o, parece dizer: “O senhor bem que podia me ajudar, se quisesse. Se soubesse. Eu sou eu e o senhor é o senhor e eu sei e o senhor não sabe e o senhor podia fazer muito por mim se quisesse e se o senhor quisesse então eu lhe contaria e então ninguém precisaria ficar sabendo exceto o senhor e eu e Darl”.
Pai está em pé ao lado da cama, de braços pendentes, encurvado, imóvel. Leva a mão à cabeça, puxa o cabelo, ouvindo a serra. Aproxima-se e esfrega a mão, a palma e as costas da mão na coxa, e depois põe a mão no rosto e no dorso do cobertor, onde estão as mãos dela. Toca o cobertor como viu Dewey Dell fazer, tentando alisá-lo até o queixo, mas, em vez disso, enrugando-o. Procura alisá-lo de novo, desajeitadamente; a mão trapalhona como uma garra alisa as rugas que ele fez e que continuam a emergir debaixo da mão, com perversa ubiquidade, de forma que, por fim, ele desiste; a mão tomba na ilharga e ele volta a esfregar palma e costas da mão na coxa. O som da serra ronca com firmeza dentro do quarto. Pai respira com um som tranquilo e rascante, mastigando o tabaco contra as gengivas. "Seja o que Deus quiser", diz. "Agora posso comprar a dentadura." O chapéu de Jewel pende mole sobre seu pescoço, escorrendo água sobre o empapado saco de aniagem amarrado ao ombro, enquanto ele, enterrando os pés na valeta lamacenta, levanta o eixo com um pedaço de pau escorregadio e podre, que usa como alavanca. Jewel, eu digo, ela está morta, Jewel. Addie Bundren morreu.

William Faulkner, em Enquanto agonizo

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