quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Brincadeiras


Sem a presença da sinhá Ana Felipa o ambiente na casa era muito melhor, mesmo com a Esméria nervosa com tanto trabalho e com o Sebastião mantendo a ordem e mandando em todo mundo como se fosse branco. Tínhamos mais liberdade, principalmente eu e a sinhazinha, que podíamos acompanhar o Tico e o Hilário em brincadeiras que, se a sinhá Ana Felipa visse, brigaria com a sinhazinha e mandaria castigar os meninos. Todas as pessoas gostavam deles, menos ela, que não permitia que nenhuma de nós duas conversasse com eles, os negrinhos de boca suja, como ela dizia. Bem se via que era perseguição, e o sinhô José Carlos não disfarçava certo prazer nas ocasiões em que ficava contra ela, a favor dos meninos. Mas naqueles dias podíamos brincar à vontade, e uma das brincadeiras preferidas dos meninos, que logo caiu no gosto da sinhazinha, era caçar passarinhos. Eu acompanhava só para não deixá-la sozinha com os moleques, pois, mesmo sendo mais nova, eu me sentia responsável por ela, e, com certeza, seria castigada caso algo ruim acontecesse. Eu tentava ficar de longe, sem olhar, mas, mesmo não olhando, sabia exatamente quando eles matavam algum passarinho, pelo piado triste ou pela falta do piado. Era como se sentisse a dor e o desespero deles, como se parte de mim também sofresse com eles. De início, a sinhazinha soltava algumas palavras de pena, mas logo se acostumou e passou a gostar da ideia, pedindo aos meninos que segurassem as aves aprisionadas entre as mãos para que ela as acertasse com uma pedrada, sem risco de errar, a poucos metros de distância. Os meninos eram certeiros com o bodoque mesmo de longe, e ficavam orgulhosos quando conseguiam atingir os bichinhos bem entre os olhos. Se não morriam na hora, ficavam tontos e não conseguiam voar, sendo presa fácil para a sinhazinha. Eu me sentia muito mal com tudo aquilo e falava com ela, que nem ligava. As fugidas para as matas, atrás dos meninos e seus bodoques ou arapucas, eram seu passatempo preferido, substituindo até as bonecas. Chegou a me dar duas de presente, que a Esméria não me deixou levar para a senzala enquanto a sinhá Ana Felipa não autorizasse, com medo de que eu fosse castigada.
A Esméria me contou sobre alguns castigos a que os pretos eram submetidos, raramente os da senzala pequena, que, pelo bom tratamento recebido, acabavam se comportando melhor. Embora precisassem ter muita paciência para não aceitar provocações dos outros, que estavam sempre tentando criar confusão para que um escravo de casa fosse mandado para a pesca ou para a roça, dando oportunidade para que alguém da senzala grande ocupasse o seu lugar. Com medo dos castigos e querendo também acabar com a matança dos passarinhos, resolvi contar para a Esméria um acontecimento que provocou a minha primeira briga séria com a sinhazinha, mas que nem se comparava ao que poderia ter acontecido caso alguém nos denunciasse. Certo dia, na mata, o Tico perguntou se queríamos vê-lo fazendo xixi, e já foi logo desamarrando o cordão e abaixando a calça. Eu já tinha visto muitos membros, mas a sinhazinha não, e começou a rir, achando aquilo muito engraçado. Os meninos disseram que os membros também eram chamados de passarinhos e que, ao invés de beberem água, como os de verdade, cuspiam água. O Hilário também abaixou a calça e começou a fazer xixi, guiando o jato na direção de uma fila de formigas, fazendo um risco sobre o caminho que elas traçavam. Eu me lembrei dos riozinhos do Kokumo e da minha mãe e da volta que as formigas davam para evitá-los. O Tico fez a mesma coisa, e o membro dele começou a ficar duro e a crescer, não do mesmo jeito que os membros dos guerreiros em Savalu, mas ele perguntou se eu ou a sinhazinha queríamos segurar nele e ajudar na matança das formigas. Ela parecia que ia aceitar e já estava andando na direção dele quando, pela primeira vez, fiz o que ela não queria. Peguei em seu braço com toda a minha força e saí correndo, e enquanto ouvíamos as gargalhadas dos meninos, ela reclamava que o vestido estava se prendendo nos galhos e ficando todo rasgado. Mesmo assim, não parei até chegarmos à casa, com ela me chamando de preta fedida, dizendo que ia mandar o pai me castigar no tronco e que nunca mais ia querer saber de mim. De fato, ficou dois ou três dias sem falar comigo, mas depois se esqueceu da promessa e também dos passarinhos, o que deve ter coincidido com a conversa que a Esméria teve com ela e depois com os meninos. Eles me contaram que ela jurou que cortaria fora os membros deles, caso se atrevessem a mostrá-los de novo à sinhazinha.
Voltamos às bonecas, mas elas já não tinham mais muita graça, e de vez em quando a sinhazinha me pedia para falar sobre os membros dos homens, como é que eles faziam para ter aquilo, até que tamanho cresciam, se serviam para outras coisas além de fazer xixi. Eu não contei o que sabia e o que já tinha visto, pois se fosse pega falando daquelas coisas para ela, aí é que poderia mesmo ir para o tronco ou ficar sem a língua, como tinha acontecido com o velho Fulgêncio, preto forro que às vezes chegava até a porta da cozinha querendo alguma coisa para comer. A Antônia contou que o ex-dono dele tinha mandado cortar a sua língua porque falou o que não devia. A sinhazinha era dois anos mais velha do que eu, mas não sabia nada daquilo, que eu também preferia não ter sabido tão cedo, pelo menos, não nas circunstâncias do acontecido.

Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor

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