Tio
Cosme
Tio
Cosme vivia com minha mãe, desde que ela enviuvou. Já então era
viúvo, como prima Justina; era a casa dos três viúvos.
A
fortuna troca muita vez as mãos à natureza. Formado para as serenas
funções do capitalismo, tio Cosme não enriquecia no foro: ia
comendo. Tinha o escritório na antiga rua das Violas, perto do júri,
que era no extinto Aljube. Trabalhava no crime. José Dias não
perdia as defesas orais de tio Cosme. Era quem lhe vestia e despia a
toga, com muitos cumprimentos no fim. Em casa, referia os debates.
Tio Cosme, por mais modesto que quisesse ser, sorria de persuasão.
Era
gordo e pesado, tinha a respiração curta e os olhos dorminhocos.
Uma das minhas recordações mais antigas era vê-lo montar todas as
manhãs a besta que minha mãe lhe deu e que o levava ao escritório.
O preto que a tinha ido buscar à cocheira, segurava o freio,
enquanto ele erguia o pé e pousava no estribo; a isto seguia-se um
minuto de descanso ou reflexão. Depois, dava um impulso, o primeiro,
o corpo ameaçava subir, mas não subia; segundo impulso, igual
efeito. Enfim, após alguns instantes largos, tio Cosme enfeixava
todas as forças físicas e morais, dava o último surto da terra, e
desta vez caía em cima do selim. Raramente a besta deixava de
mostrar por um gesto que acabava de receber o mundo. Tio Cosme
acomodava as carnes, e a besta partia a trote.
Também
não me esqueceu o que ele me fez uma tarde. Posto que nascido na
roça (donde vim com dois anos) e apesar dos costumes do tempo, eu
não sabia montar, e tinha medo ao cavalo. Tio Cosme pegou em mim e
escanchou-me em cima da besta. Quando me vi no alto (tinha nove
anos), sozinho e desamparado, o chão lá embaixo, entrei a gritar
desesperadamente: “Mamãe! mamãe!” Ela acudiu, pálida e
trêmula, cuidou que me estivessem matando, apeou-me, afagou-me,
enquanto o irmão perguntava:
– Mana
Glória, pois um tamanhão destes tem medo de besta mansa?
– Não
está acostumado.
– Deve
acostumar-se. Padre que seja, se for vigário na roça, é preciso
que monte a cavalo; e, aqui mesmo, ainda não sendo padre, se quiser
florear como os outros rapazes, e não souber, há de queixar-se de
você, mana Glória.
– Pois
que se queixe; tenho medo.
– Medo!
Ora, medo!
A
verdade é que eu só vim a aprender equitação mais tarde, menos
por gosto que por vergonha de dizer que não sabia montar. “Agora é
que ele vai namorar deveras”, disseram quando eu comecei as lições.
Não se diria o mesmo de tio Cosme. Nele era velho costume e
necessidade. Já não dava para namoros. Contam que, em rapaz, foi
aceito de muitas damas, além de partidário exaltado; mas os anos
levaram-lhe o mais do ardor político e sexual, e a gordura acabou
com o resto de ideias públicas e específicas. Agora só cumpria as
obrigações do ofício e sem amor. Nas horas de lazer vivia olhando
ou jogava. Uma ou outra vez dizia pilhérias.
Machado de Assis, em Dom Casmurro
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