quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Julie Lacroix


Meu nome é Julie Lacroix, quer dizer, meu pseudônimo.
Salete Silva? Esse nome não vende, disse o editor quando decidiu publicar meu primeiro livro. E inventou a Julie Lacroix.
Tenho mais de sessenta anos, mas, como todas as mulheres e principalmente as mulheres escritoras, escondo a minha verdadeira idade. Aliás, os editores que sempre colocam na orelha do livro a data do nascimento do autor de sexo masculino nunca fazem isso quando o autor é uma mulher.
Tenho uma amiga chamada Célia. Ela chegou na minha casa excitada dizendo que visitara uma astróloga de nome Mônica e ficara impressionada com as coisas que ela lhe revelara.
Uma astróloga? Isso é empulhação, eu disse. Astróloga, cartomante, quiromante, jogadoras de búzios, leitoras de tarô, é tudo a mesma vigarice.
Mas ela não é apenas astróloga, disse Célia, ela conversa com você, diz coisas sobre a sua vida que ninguém sabe, é uma pessoa da maior seriedade.
Célia, além de acreditar nessas baboseiras — astrologia, psicanálise, disco voador —, era hipocondríaca, bastava ouvir alguém falar numa doença que ela sentia logo uma porção de sintomas estranhos. Quando soube que uma conhecida sofria de Alzheimer, Célia começou a esquecer das coisas e achou que sua mente estava se deteriorando irremediavelmente; um dia acreditou que estava com um câncer no cólon, e certa ocasião teve certeza de que sofria de lúpus eritematoso. Na verdade a saúde dela era razoavelmente boa, seu coração funcionava bem, mas, como sofria de uma leve arritmia, media constantemente o ritmo cardíaco num dos três medidores digitais que tinha em casa. O fígado não lhe dava problemas, não obstante ela bebesse um pouco mais do que devia. Gostava de se embriagar, mas quem não gosta, principalmente de champanhe? E que deleite a vida pode nos dar na nossa idade?
Esqueci de dizer que Célia e eu éramos da mesma idade e gostávamos de beber juntas, a única coisa que ainda me dava algum prazer. Escrever se tornara uma atividade cada vez mais cansativa e desagradável. Ler me dera muito prazer antes de eu me tornar uma escritora profissional, agora eu não sentia a menor vontade de ler, nada, best-seller, prêmio Nobel, nada. Sexo? Só pagando, e isso eu não queria fazer, e nem sabia onde encontrar os prostitutos. Eu me masturbava vez por outra, mas faltava algo no prazer que a masturbação proporciona. Comer também era bom, mas beber e ficar levemente embriagada era a melhor coisa de todas.
Um dia fui almoçar com Célia. Numa mesa próxima, vi uma mulher lendo um livro grosso. Havia muito que eu não via gente lendo fosse onde fosse, e muito menos num restaurante. Era uma mulher de uns quarenta anos, vestida com elegante sobriedade.
Célia notou o meu interesse. Apontando com o nariz a mulher que lia, sussurrou, sabe quem é? É Mônica, a astróloga, olha só o livro que ela está lendo, Separação. Ela está lendo o seu romance.
Não sei se foi o intenso interesse que Mônica demonstrava na leitura do meu livro ou um certo encanto que ela transmitia, o certo é que decidi visitá-la. No domingo anterior eu fizera uma coisa parecida. Sendo agnóstica, tenho pela existência de Deus o mesmo interesse que tenho pela existência de extraterrestres, mas, naquele domingo, fui à missa e achei aquele cerimonial interessante, ainda que um pouco cansativo. Provavelmente com a astróloga aconteceria o mesmo, mas eu poderia tornar o nosso encontro mais curto do que o da missa. Liguei para ela, dei as informações que me pediu e marcamos um encontro em sua casa.
Na casa de Mônica, a astróloga, não havia bolas de cristal nem penumbras fantasmagóricas. Era uma casa arejada, cheia de luz. Mônica me recebeu afavelmente e convidou-me para sentar. Ela sentou-se numa outra poltrona, defronte à minha.
Você é escritora, não é?
Sou.
Gosta de escrever?
Não.
Então por que escreve, se me permite a pergunta?
Pelo dinheiro. Comecei a escrever porque achava chique ser escritora, e fiquei muito feliz em ser publicada. Dediquei meu primeiro livro aos meus queridos pais, considerei minha dedicatória uma bela oferenda, uma oblata consagratória. Ficava ansiosa com o que os críticos diziam, vaidosa quando elogiavam e deprimida quando falavam mal. Mas depois de algum tempo tudo isso acabou, não fiz mais oferendas, quero que os críticos vão todos à merda, o que me interessa é a venda do livro.
Interessante, disse Mônica.
Notei então que ela sacou um pequeno notebook que tinha ao seu lado, na poltrona, e colocou-o sobre o colo.
Tenho aqui os dados sobre dia, ano, local e hora do seu nascimento, disse Mônica.
Em seguida, usando os dez dedos, sem tirar os olhos do monitor, digitou alguma coisa no computador. Ficou pensativa durante algum tempo, me olhando.
Você vai morrer na cama, ela disse.
Não é onde todo mundo morre?, perguntei, sem disfarçar uma ponta de sarcasmo em minha voz.
Não, morre-se na rua, no carro, no avião, no navio, no restaurante, na cadeira de balanço. Você ronca, não?
Aquilo me deixou tão surpresa que, por alguns instantes, não soube o que dizer.
Sim, respondi afinal, deve ser porque durmo de barriga para cima.
O ronco, disse Mônica, pode ser uma coisa grave, um sinal de alerta, um fator de risco, um indicador de um estado neuromuscular perigoso. Às vezes você acorda durante a noite com falta de ar, não acorda?
Sim.
Essa apneia obstrutiva do sono pode se tornar uma causa prevalente e importante de distúrbios com consequências desastrosas, como depressão, por exemplo.
Depressão é algo que não tenho, nunca tive.
Nem mesmo quando os seus pais morreram num desastre de automóvel?
Como é que você sabe? Foi Célia quem lhe disse, certamente.
Mas logo que disse isso, lembrei-me de que jamais comentara com Célia a morte dos meus pais. E eu ficara, realmente, muito deprimida naquela ocasião e evitava falar sobre o assunto.
Célia não me disse nada, disse Mônica. Vamos voltar ao tema original. Há casos de pessoas que morreram devido a uma crise de apneia.
Você acha que pode acontecer comigo?
Posso ver a sua boca? Abre bem, por favor.
Abri a boca.
Hum, palato pequeno em forma de ogiva, disse Mônica. Sim, você pode ter uma grave crise de apneia. É uma mulher obesa, tem esse tipo de palato, fatores anatômicos que facilitam a eclosão dessa crise. Você dorme sozinha?
Sim.
O ideal seria que dormisse acompanhada. Para que, quando começasse a roncar, a pessoa mudasse a sua posição na cama, fazendo cessar o ronco.
Paguei a consulta e voltei para casa perturbada pela entrevista que tivera com a astróloga. Vou morrer na cama com uma crise de apneia? Isso era uma bobagem, se eu não havia morrido até aquele dia, por que tinha de morrer agora? Ia cair no conto do vigário de uma astróloga?
Mas a minha preocupação não passava. Como é que a astróloga sabia que eu roncava? Provavelmente dizia isso para todas as mulheres gordas que iam consultá-la. Mas como é que ela sabia a maneira como os meus pais haviam morrido?
Célia me telefonou para saber como tinha sido a minha consulta com a astróloga.
Ela disse que eu vou morrer na cama, respondi.
Fala sério, disse Célia, o que foi que ela disse?
Só esse tipo de bobagem. Célia, eu queria lhe pedir um favor, não ando me sentindo bem, você conhece uma boa acompanhante? Só por uns tempos.
Célia conhecia uma, experiente, chamada Anamaria.
Era uma mulher gorda e simpática. Expliquei o que eu queria dela e Anamaria garantiu-me que passaria a noite inteira acordada, atenta ao menor sinal, que estava acostumada a passar as noites em claro, na verdade só conseguia dormir durante o dia. Um simples ronco a faria mover o meu corpo, adequadamente.
Expliquei para Anamaria que tomava todas as noites um remédio muito forte, se tivesse uma crise de apneia morreria sem acordar.
Não se preocupe, disse Anamaria, eu adoro passar a noite lendo, e mostrou um grosso livro que tinha nas mãos.
Fui dormir tranquila. Sonhei que ouvia um forte ronco à distância, aquilo quase me acordou, mas a pílula que tomara era realmente muito forte e continuei dormindo.
De manhã, ao acordar, verifiquei, chocada, que o ronco que ouvira durante o sono da noite não tinha sido um sonho.
Anamaria, com um esgar feio no rosto, o grosso livro sobre o peito, a luz da cabeceira ainda acesa, estava morta na cama, ao meu lado. Quem roncara estrepitosamente fora ela, que tivera uma apneia violentíssima que lhe causara a morte.
Dias depois Célia fez-me uma visita.
Que coisa, essa da sua acompanhante, não? Quer que eu indique outra?, perguntou.
Não precisa, respondi.
Célia entrou no meu quarto, ela gostava de usar o banheiro da suíte. Quando saiu do banheiro, viu a poltrona que eu comprara.
Que poltrona bonita, ela disse, posso sentar?
Pode, eu disse. Ela é cheia de macetes, se você empurra essa espécie de alavanca ela se inclina para trás ao mesmo tempo em que projeta um suporte para os pés.
Bacana, disse Célia.
É ótima para ver televisão, eu disse.
E a sua cama, onde está?, perguntou Célia.
Que tal tomarmos um drinquinho?, perguntei.
Sabia que Célia ia dizer sim, correr para a sala, onde estavam as garrafas e os copos, e esquecer de fazer perguntas sobre a minha agora inexistente cama.
Não disse para Célia que eu passara a dormir na poltrona. Na poltrona eu não roncava.
Eu me desfizera da cama. O que ia fazer nela? Me masturbar? Isso eu podia fazer no sofá, de maneira melhor.

Rubem Fonseca, em Ela e Outras Mulheres

Nenhum comentário:

Postar um comentário