Meu
nome é Julie Lacroix, quer dizer, meu pseudônimo.
Salete
Silva? Esse nome não vende, disse o editor quando decidiu publicar
meu primeiro livro. E inventou a Julie Lacroix.
Tenho
mais de sessenta anos, mas, como todas as mulheres e principalmente
as mulheres escritoras, escondo a minha verdadeira idade. Aliás, os
editores que sempre colocam na orelha do livro a data do nascimento
do autor de sexo masculino nunca fazem isso quando o autor é uma
mulher.
Tenho
uma amiga chamada Célia. Ela chegou na minha casa excitada dizendo
que visitara uma astróloga de nome Mônica e ficara impressionada
com as coisas que ela lhe revelara.
Uma
astróloga? Isso é empulhação, eu disse. Astróloga, cartomante,
quiromante, jogadoras de búzios, leitoras de tarô, é tudo a mesma
vigarice.
Mas
ela não é apenas astróloga, disse Célia, ela conversa com você,
diz coisas sobre a sua vida que ninguém sabe, é uma pessoa da maior
seriedade.
Célia,
além de acreditar nessas baboseiras — astrologia, psicanálise,
disco voador —, era hipocondríaca, bastava ouvir alguém falar
numa doença que ela sentia logo uma porção de sintomas estranhos.
Quando soube que uma conhecida sofria de Alzheimer, Célia começou a
esquecer das coisas e achou que sua mente estava se deteriorando
irremediavelmente; um dia acreditou que estava com um câncer no
cólon, e certa ocasião teve certeza de que sofria de lúpus
eritematoso. Na verdade a saúde dela era razoavelmente boa, seu
coração funcionava bem, mas, como sofria de uma leve arritmia,
media constantemente o ritmo cardíaco num dos três medidores
digitais que tinha em casa. O fígado não lhe dava problemas, não
obstante ela bebesse um pouco mais do que devia. Gostava de se
embriagar, mas quem não gosta, principalmente de champanhe? E que
deleite a vida pode nos dar na nossa idade?
Esqueci
de dizer que Célia e eu éramos da mesma idade e gostávamos de
beber juntas, a única coisa que ainda me dava algum prazer. Escrever
se tornara uma atividade cada vez mais cansativa e desagradável. Ler
me dera muito prazer antes de eu me tornar uma escritora
profissional, agora eu não sentia a menor vontade de ler, nada,
best-seller, prêmio Nobel, nada. Sexo? Só pagando, e isso eu não
queria fazer, e nem sabia onde encontrar os prostitutos. Eu me
masturbava vez por outra, mas faltava algo no prazer que a
masturbação proporciona. Comer também era bom, mas beber e ficar
levemente embriagada era a melhor coisa de todas.
Um
dia fui almoçar com Célia. Numa mesa próxima, vi uma mulher lendo
um livro grosso. Havia muito que eu não via gente lendo fosse onde
fosse, e muito menos num restaurante. Era uma mulher de uns quarenta
anos, vestida com elegante sobriedade.
Célia
notou o meu interesse. Apontando com o nariz a mulher que lia,
sussurrou, sabe quem é? É Mônica, a astróloga, olha só o livro
que ela está lendo, Separação. Ela está lendo o seu romance.
Não
sei se foi o intenso interesse que Mônica demonstrava na leitura do
meu livro ou um certo encanto que ela transmitia, o certo é que
decidi visitá-la. No domingo anterior eu fizera uma coisa parecida.
Sendo agnóstica, tenho pela existência de Deus o mesmo interesse
que tenho pela existência de extraterrestres, mas, naquele domingo,
fui à missa e achei aquele cerimonial interessante, ainda que um
pouco cansativo. Provavelmente com a astróloga aconteceria o mesmo,
mas eu poderia tornar o nosso encontro mais curto do que o da missa.
Liguei para ela, dei as informações que me pediu e marcamos um
encontro em sua casa.
Na
casa de Mônica, a astróloga, não havia bolas de cristal nem
penumbras fantasmagóricas. Era uma casa arejada, cheia de luz.
Mônica me recebeu afavelmente e convidou-me para sentar. Ela
sentou-se numa outra poltrona, defronte à minha.
Você
é escritora, não é?
Sou.
Gosta
de escrever?
Não.
Então
por que escreve, se me permite a pergunta?
Pelo
dinheiro. Comecei a escrever porque achava chique ser escritora, e
fiquei muito feliz em ser publicada. Dediquei meu primeiro livro aos
meus queridos pais, considerei minha dedicatória uma bela oferenda,
uma oblata consagratória. Ficava ansiosa com o que os críticos
diziam, vaidosa quando elogiavam e deprimida quando falavam mal. Mas
depois de algum tempo tudo isso acabou, não fiz mais oferendas,
quero que os críticos vão todos à merda, o que me interessa é a
venda do livro.
Interessante,
disse Mônica.
Notei
então que ela sacou um pequeno notebook que tinha ao seu lado, na
poltrona, e colocou-o sobre o colo.
Tenho
aqui os dados sobre dia, ano, local e hora do seu nascimento, disse
Mônica.
Em
seguida, usando os dez dedos, sem tirar os olhos do monitor, digitou
alguma coisa no computador. Ficou pensativa durante algum tempo, me
olhando.
Você
vai morrer na cama, ela disse.
Não
é onde todo mundo morre?, perguntei, sem disfarçar uma ponta de
sarcasmo em minha voz.
Não,
morre-se na rua, no carro, no avião, no navio, no restaurante, na
cadeira de balanço. Você ronca, não?
Aquilo
me deixou tão surpresa que, por alguns instantes, não soube o que
dizer.
Sim,
respondi afinal, deve ser porque durmo de barriga para cima.
O
ronco, disse Mônica, pode ser uma coisa grave, um sinal de alerta,
um fator de risco, um indicador de um estado neuromuscular perigoso.
Às vezes você acorda durante a noite com falta de ar, não acorda?
Sim.
Essa
apneia obstrutiva do sono pode se tornar uma causa prevalente e
importante de distúrbios com consequências desastrosas, como
depressão, por exemplo.
Depressão
é algo que não tenho, nunca tive.
Nem
mesmo quando os seus pais morreram num desastre de automóvel?
Como
é que você sabe? Foi Célia quem lhe disse, certamente.
Mas
logo que disse isso, lembrei-me de que jamais comentara com Célia a
morte dos meus pais. E eu ficara, realmente, muito deprimida naquela
ocasião e evitava falar sobre o assunto.
Célia
não me disse nada, disse Mônica. Vamos voltar ao tema original. Há
casos de pessoas que morreram devido a uma crise de apneia.
Você
acha que pode acontecer comigo?
Posso
ver a sua boca? Abre bem, por favor.
Abri
a boca.
Hum,
palato pequeno em forma de ogiva, disse Mônica. Sim, você pode ter
uma grave crise de apneia. É uma mulher obesa, tem esse tipo de
palato, fatores anatômicos que facilitam a eclosão dessa crise.
Você dorme sozinha?
Sim.
O
ideal seria que dormisse acompanhada. Para que, quando começasse a
roncar, a pessoa mudasse a sua posição na cama, fazendo cessar o
ronco.
Paguei
a consulta e voltei para casa perturbada pela entrevista que tivera
com a astróloga. Vou morrer na cama com uma crise de apneia? Isso
era uma bobagem, se eu não havia morrido até aquele dia, por que
tinha de morrer agora? Ia cair no conto do vigário de uma astróloga?
Mas
a minha preocupação não passava. Como é que a astróloga sabia
que eu roncava? Provavelmente dizia isso para todas as mulheres
gordas que iam consultá-la. Mas como é que ela sabia a maneira como
os meus pais haviam morrido?
Célia
me telefonou para saber como tinha sido a minha consulta com a
astróloga.
Ela
disse que eu vou morrer na cama, respondi.
Fala
sério, disse Célia, o que foi que ela disse?
Só
esse tipo de bobagem. Célia, eu queria lhe pedir um favor, não ando
me sentindo bem, você conhece uma boa acompanhante? Só por uns
tempos.
Célia
conhecia uma, experiente, chamada Anamaria.
Era
uma mulher gorda e simpática. Expliquei o que eu queria dela e
Anamaria garantiu-me que passaria a noite inteira acordada, atenta ao
menor sinal, que estava acostumada a passar as noites em claro, na
verdade só conseguia dormir durante o dia. Um simples ronco a faria
mover o meu corpo, adequadamente.
Expliquei
para Anamaria que tomava todas as noites um remédio muito forte, se
tivesse uma crise de apneia morreria sem acordar.
Não
se preocupe, disse Anamaria, eu adoro passar a noite lendo, e mostrou
um grosso livro que tinha nas mãos.
Fui
dormir tranquila. Sonhei que ouvia um forte ronco à distância,
aquilo quase me acordou, mas a pílula que tomara era realmente muito
forte e continuei dormindo.
De
manhã, ao acordar, verifiquei, chocada, que o ronco que ouvira
durante o sono da noite não tinha sido um sonho.
Anamaria,
com um esgar feio no rosto, o grosso livro sobre o peito, a luz da
cabeceira ainda acesa, estava morta na cama, ao meu lado. Quem
roncara estrepitosamente fora ela, que tivera uma apneia
violentíssima que lhe causara a morte.
Dias
depois Célia fez-me uma visita.
Que
coisa, essa da sua acompanhante, não? Quer que eu indique outra?,
perguntou.
Não
precisa, respondi.
Célia
entrou no meu quarto, ela gostava de usar o banheiro da suíte.
Quando saiu do banheiro, viu a poltrona que eu comprara.
Que
poltrona bonita, ela disse, posso sentar?
Pode,
eu disse. Ela é cheia de macetes, se você empurra essa espécie de
alavanca ela se inclina para trás ao mesmo tempo em que projeta um
suporte para os pés.
Bacana,
disse Célia.
É
ótima para ver televisão, eu disse.
E
a sua cama, onde está?, perguntou Célia.
Que
tal tomarmos um drinquinho?, perguntei.
Sabia
que Célia ia dizer sim, correr para a sala, onde estavam as garrafas
e os copos, e esquecer de fazer perguntas sobre a minha agora
inexistente cama.
Não
disse para Célia que eu passara a dormir na poltrona. Na poltrona eu
não roncava.
Eu
me desfizera da cama. O que ia fazer nela? Me masturbar? Isso eu
podia fazer no sofá, de maneira melhor.
Rubem Fonseca, em Ela e Outras Mulheres
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