domingo, 22 de setembro de 2024

Cultura

Uma amiga erudita, mas que não foi afetada pela erudição, me conta um boato, em leve censura por eu não corresponder ao boato que deveria ser mais certo que a realidade: muitos pensam que eu sou altamente intelectualizada e que tenho grande cultura. “Mas você”, diz ela com carinho, “devia pelo menos, só para não se envergonhar diante dos outros, dar um jeito melhor na sua estante, é uma biblioteca muito desfalcada demais.” Conto-lhe então que um homem de letras me disse: “Gostaria de ver sua biblioteca para entender finalmente onde você se inspira para as suas coisas.” Diz minha amiga: “Você vê que tenho razão.”
Mas realmente je m’en fiche. Brinco toda secreta de deixar que pensem o que quiserem. Como não tenho remorsos de ser realmente uma “desfalcada” – em outras coisas me dói – estou pura para sentir o gosto do logro. É que também é muito bom enganar, conquanto que a pessoa não engane a si mesma. Só a poucos conto a verdade. No começo tentei dizer a verdade: mas tomavam como modéstia, mentira ou “esquisitice”. E desse tipo de contar a verdade não gostei. De modo que passei a me calar. Só a poucos digo a verdade. Essa minha amiga já me diz hoje tranquila: “O escritor tal, no seu livro...”, interrompe-se e sem escândalo me pergunta: “Você já ouviu falar nele?”
Mas bem queria deixar um testamentozinho exatamente para as pessoas involuntariamente logradas por mim: Deixo-lhe minha incultividade que em si não me deu nenhum gosto e até muita falta me fez, mas deixo-a [para o senhor], pois foi tão bom que o senhor não a supusesse: deixo-a intacta, pronta para ser transmitida. A cultura não se lega porque a pessoa mesma tem que trabalhá-la, mas a vantagem de uma relativa incultura é que se pode entregá-la toda a outra pessoa... eu bem sei que triste legado.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

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