O
espelho
O
sol do meio-dia arranca fumaça das pedras e relâmpagos dos metais.
Alvoroço no porto: os galeões trouxeram de Sevilha a artilharia
pesada para a fortaleza de São Domingos.
O
prefeito, Fernández de Oviedo, dirige o transporte de colubrinas e
canhões. A golpe de chibata, os negros arrastam a carga a todo
vapor. Rangem os carros, sufocados pelo peso dos ferros e bronzes, e
através do torvelhinho outros escravos vão e vêm jogando
caldeirões de água contra o fogo que brota dos eixos aquecidos.
Em
meio da zoeira e da gritaria, uma moça índia anda em busca de seu
amo. Tem a pele coberta de bolhas. Cada passo é um triunfo e a pouca
roupa que usa atormenta sua pele queimada. Durante a noite e meio
dia, esta moça suportou, de alarido em alarido, os ardores do ácido.
Ela mesma assou as raízes de guao e esfregou-as entre as mãos
até convertê-las em pasta. Untou-se inteira de guao, da raiz
dos cabelos até os dedos dos pés, porque o guao abrasa a
pele e limpa a cor, e assim transforma as índias e negras em brancas
damas de Castilha.
– Me
reconhece, senhor?
Oviedo
afasta-a com um empurrão; mas a moça insiste, com seu fio de voz,
agarrada ao amo como sombra, enquanto Oviedo corre gritando ordens
aos capatazes.
– Sabe
quem sou?
A
moça cai no chão e do chão continua perguntando:
– Senhor,
senhor, não sabe quem sou?
Eduardo Galeano, em Os Nascimentos
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