Meu
saudoso amigo Luiz Cuiúba, quando provocado a falar sobre mim,
citava sempre d. Madalena, nossa professora. “Ele é boa pessoa,
não se vai negar”, afirmava Cuiúba. “Mas d. Madalena cansava de
dizer que ele tem um problema na ideia, e quem conhece ele sabe que é
verdade.” E, claro, amigo e professora de infância sempre têm
razão quando opinam sobre a gente. Eu, lamentavelmente, padeço de
um problema na ideia desde pequeno. Já desisti de consertá-lo, até
porque ele é difícil de caracterizar, se disfarça muito.
Bem
verdade que quem sai aos seus não degenera e meu avô materno, o
combativo quão poderoso coronel Ubaldo, da mesma forma já
mencionado aqui em outras ocasiões, também tinha, vamos admitir com
franqueza, um problema na ideia. Tanto assim que, de vez em quando, a
cabeça dele esquentava a tal ponto que ele intimava o primeiro
infeliz que passasse por perto para abanar-lhe a careca enquanto
durasse o surto de esquentamento. Ventilador, nem pensar, pois ele
abominava toda e qualquer coisa que tivesse a ver com eletricidade e
jamais tocou em nada elétrico na vida, nem interruptor de luz —
ordenava a alguém que acendesse a luz.
E
certamente devo chamar a atenção para a circunstância de que os
leitores também já devem ter observado esse meu problema, embora só
muito poucos tenham tido a oportunidade de testemunhar as fofas
(pronuncia-se “fó-fa”, com o “o” aberto e, já que estamos
perto de mudanças ortográficas, tomarei a liberdade de doravante
grafar “fófa”) que, quando o esquentamento na cabeça não era
superado, acometiam tanto meu avô quanto hoje a mim. A fófa
consiste em cair prostrado na cama em decúbito ventral, revirar os
olhos e bufar freneticamente com os lábios e o queixo tremendo. Para
tratar meu avô, bastava um vidrinho de leite de magnésia de
Phillips, a última novidade da medicina que aceitou, até morrer de
velho. Mas não tomava o remédio nunca, apenas se acalmava aos
poucos, olhando para o vidrinho azul. Minhas fófas, receio eu, já
se globalizaram, mas a metodologia permanece a mesma. Me receitam
bolinhas, eu leio as bulas, não tomo nada e acabo me desfofando.
É
difícil, pelo menos para os fofistas que creio também haver entre
vocês, ler um jornal ou assistir a um noticiário de televisão sem
pelo menos esquentar a cabeça. Infelizmente, não conto com um
pelotão de abanadores de careca como meu avô, mas, em compensação,
não tenho medo de objetos movidos a eletricidade e sou homem de, em
momentos mais sérios, quase enfiar a cabeça por um condicionador de
ar adentro. Estou sem fófas desde o início do ano. Não sei se é
porque o governo não começou ainda, e é possível que o presidente
não tenha terminado de achar todos os que o desancaram para dar-lhes
ministérios e assim desmascará-los, mas o fato é que, apesar de
certos eventos, ainda não deu para uma fófa.
Mas
para esquentar a cabeça, sim. Não é possível que as cabeças de
vocês também não esquentem, com as notícias que a gente ouve e
lê. Por exemplo, a economia vai mal ou bem? As notas, reportagens e
até releases disfarçados por vezes se contradizem na mesma
página de jornal, ou no mesmo noticiário de tevê. Estamos
ameaçados de apagão ou não? Temos a infraestrutura para crescer
economicamente ou não? Vai ser minorado o problema da violência ou
não?
Pelo
que se lê ou escuta, não dá para saber. Por exemplo, liguei a
televisão e assisti a um senhor muito sério falar em aumento da
oferta de empregos no Brasil. Sei que a estatística, como já se
disse, é frequentemente a arte de mentir com precisão, mas, pelo
que ele asseverou, estamos bem, estamos muito bem, estamos até
atraindo mão-de-obra do exterior, vejam que beleza. E a cabeça pára
de esquentar, mas, insensatamente, mudo de canal e pego mais gente
falando sobre emprego. Nada disso, afirma logo outro noticiarista,
desta feita um repórter conversando com desempregados em todo o
Brasil, gente que procura trabalho há anos sem achar nada e
ocupações que não existem em outras partes do mundo, como
guardadores de lugar em filas, donatários de ruas, praças e
calçadas para estacionamento e membros profissionais de partidos que
deem emprego. A necessidade é a mãe da porcaria e por causa dela
ficamos nesta situação, digamos, geradora de fófas.
Temeroso,
decido desligar a tevê e vou olhar minha fornida e-mailspondência
(desculpem, desculpem, não escrevo mais esta barbaridade), para
esquecer realidade tão dura. Vejo logo a mensagem de um amigo
americano com quem há muito tempo não falo. Vai tudo bem e Larry, o
filho dele, está quase para se formar numa universidade. Nos
períodos de folga, já encontrou diversos empregos temporários, dos
muitos que uma pessoa empreendedora pode arrumar por lá. Vocês vão
achar que estou mentindo e por isso, pelo menos num dos casos, mato a
cobra e mostro o pau. Não sei o nome do professor que dirigiu o
estudo de que Larry foi “freguês”, mas o fato é que, há dois
verões, ele foi pago para dormir, numa pesquisa sobre o sono. No
verão passado, sério mesmo, ele foi, digamos, piloto de provas de
camisinhas e, a julgar pelo que me dizem do Larry, deve ter feito
algum sucesso nessa condição. E, finalmente, este ano, vai
trabalhar rindo profissionalmente, numa tal de Laughter Therapy
Enterprises, ou seja, Empresas de Terapia pelo Riso, no Colorado.
Quem sabe se, no futuro, ele não ganhará a vida na folgança, rindo
durante o expediente e testando camisinhas nas horas vagas? Aqui,
penso eu rancorosamente, só quem faz isso é o governo — e em cima
da gente, às nossas custas. Alguém aí pode ceder um frasco de
magnésia para eu espiar?
João Ubaldo Ribeiro, em O rei da noite
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