segunda-feira, 1 de julho de 2024

Libertinagem do sábio

Não chegou a acontecer.
A criança brincava no ar do quintal. Apareceu a janela o rosto trágico untado de creme, a mãe gritou: Catarina! A criança muda e delicada. Catarina! – Foi só um instante: sou eu Catarina? perguntou-se o sábio na sua janela. Catarina brincava ao vento rodando em torno de si. Pé ante pé ele se tornou Catarina, correu entrando em casa, descobriu a mulher deitada com o rosto cheio de creme, debruçou-se tanto sobre ela que o perfume sufocou-o, fê-lo dar uma pirueta de prazer e náusea, ele dançou no quarto levantando as abas do paletó austero. A mulher no divã agitou-se. Ele parou, endireitou os óculos, ofegante: pensou, correu, pensou, que vento! foi para o quarto da criança, o reinado no papel de parede, a boneca valsou com o homem, a perna da boneca dançava noutro movimento, e a macela se derramava do pé rasgado. Voltou nas pontas dos pés e ainda arfando soprou na mulher do creme que de olhos amargos esperava a beleza. Ficou mais sério, começou a brincar pensativo com os dedos magros da dama que suspirava de impaciência: ele separou o dedo mínimo da mulher, alisou-o com bom humor e tristeza. De repente ei-la à janela: Catarina! A criança parou de rodar atenta. Ele se sobressaltou, olhou estupefato o livro aberto sobre a mesa. A verdadeira Catarina corria em sombra leve para a casa. A mulher permanecera à janela, o rosto duro, essa grande ofendida. Alta, indevassável. O sábio riu baixinho se sacudindo e disse com malícia um pouco fatigado: bem te conheço.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

Nenhum comentário:

Postar um comentário