Naquela
primeira noite, na rua Pepper, no número 37, ficou combinado.
Ele
a acompanhou de volta e disse que no sábado, às quatro da tarde,
passaria na casa dela.
A
rua estava escura e vazia.
Nada
mais foi dito.
Quando
o sábado chegou, ele apareceu de barba feita e com margaridas.
Demorou
um pouco até ela tocar piano e, quando tocou, Michael ficou ao seu
lado, o dedo pousado na última tecla da direita.
Ela
assentiu, para que ele a apertasse.
Acontece
que a nota mais alta de um piano é instável.
Se
você não apertar forte o bastante, ou do jeito certo, não sai
nada.
— De
novo — disse ela, e sorriu, nervosa, e ele sorriu também, nervoso,
e dessa vez deu certo.
Como
um tapinha na mão de Mozart.
Ou
no pulso de Chopin ou Bach.
E
dessa vez foi ela:
Havia
hesitação e constrangimento, mas ela lhe deu um beijo na nuca, bem
de leve, bem suave.
E
então comeram os biscoitinhos amanteigados.
Até
não sobrar nenhum.
***
Quando
penso nisso hoje, recapitulo tudo que me disseram, e especialmente
tudo que disseram a Clay, e me pergunto o que é mais importante.
Imagino
que tenha sido o seguinte:
Durante
seis ou sete semanas, eles se viram, alternando pontos de encontro,
pra lá e pra cá na rua Pepper. A todo instante, Michael Dunbar
tinha a impressão de que algo estava brotando em meio à novidade e
ao cabelo louro de Penélope. Quando a beijava, sentia o gosto da
Europa, mas também o gosto da ausência de Abbey. Quando se
levantava para ir embora e ela apertava suas mãos, Michael sentia o
toque de um refugiado, e era ela, mas também ele.
***
Finalmente,
ele contou a ela, nos degraus do número 37.
Era
domingo de manhã, um dia cinza e ameno, e os degraus estavam frios —
e ele já tinha sido casado, e se divorciado; o nome dela era Abbey
Dunbar. Ele ficou prostrado no chão da garagem.
Passaram
um carro e uma garota de bicicleta.
Ele
contou que ficou arrasado, seguiu em frente, aguentou firme, sozinho.
Contou que queria ter ido ao encontro dela muito antes. Queria, mas
não foi capaz. Não poderia arriscar uma queda como aquela de novo,
não mais.
É
curioso ver como se desenrolam as confissões:
Admitimos
quase tudo, e é o quase que conta.
No
caso de Michael Dunbar, duas coisas foram deixadas de fora.
Em
primeiro lugar, ele simplesmente não admitiu que também era capaz
de produzir algo próximo à beleza — as pinturas.
Além
disso, como extensão do primeiro item, ele não revelou que, no
fundo, nos recônditos mais obscuros de sua alma, seu maior medo não
era ser deixado novamente, mas condenar alguém a ser o segundo
melhor, a ficar em uma posição inferior. Era assim que ele se
sentia em relação a Abbey e à vida que um dia tivera e perdera.
***
Mas
até aí, que escolha ele tinha?
Aquele
era um mundo onde a lógica era desafiada por entregadores de piano
briguentos e desajeitados. Onde o destino poderia bater à porta, ao
mesmo tempo pálido e corado. Por Deus, até Stálin estava
envolvido. Como ele poderia dizer não?
Há
quem diga que não nos cabe tomar decisões. Talvez seja verdade.
Achamos
que estamos no controle, mas não estamos.
Damos
voltas na vizinhança.
Passamos
por certa porta.
Quando
apertamos uma tecla de piano e não sai nada, apertamos de novo,
porque temos que apertar. Precisamos ouvir algo e esperamos
que não seja um erro...
Para
começo de conversa, não era nem para Penélope estar ali.
Não
era para nosso pai ter se divorciado.
Mas
lá estavam, seguindo em frente, dando o melhor de si rumo a uma
linha de chegada. Esperaram a contagem regressiva, feito esquiadores
no topo da montanha, e pressionaram a tecla na hora do já. O
resto é história.
Markus Zusak, em O construtor de pontes
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