segunda-feira, 8 de julho de 2024

Do Amor e Outros Demônios | Capítulo Três


[...]
Assim era. Por empenho do bispo, Delaura estava na lista de três candidatos ao cargo de custódio do acervo sefardita na biblioteca do Vaticano. Mas era a primeira vez que se tocava no assunto entre os dois, embora ambos o soubessem.
Mais uma razão — disse o bispo. — O caso da menina, se for bem conduzido, pode ser o impulso de que carecemos.
Delaura tinha consciência de sua falta de jeito para se haver com mulheres. Pareciam-lhe dotadas de um uso da razão intransferível para navegar sem tropeços por entre os acasos da realidade. A simples ideia de um encontro com uma criatura indefesa como Sierva María lhe gelava o suor das mãos.
Não, senhor — decidiu. — Não me sinto capaz.
Não somente és capaz — replicou o bispo — como tens de sobra o que faltaria a qualquer outro: a inspiração.
Era uma palavra demasiado grande para não ser a última. Todavia, o bispo não o obrigou a aceitar logo, concedeu-lhe um tempo de reflexão, até o luto da Semana Santa, que começava naquele dia.
Vai ver a menina — disse. — Estuda o caso a fundo e me informa.
Assim foi que Cayetano, Alcino del Espíritu Santo Delaura y Escudero, com trinta e seis anos completos, entrou na vida de Sierva María e na história da cidade. Tinha sido aluno do bispo em sua célebre cadeira de teologia em Salamanca, onde se graduou com as notas mais altas de sua turma. Estava convencido de que seu pai era descendente direto de Garcilaso de Ia Vega, a quem rendia um culto quase religioso, e disso dava conhecimento imediato. Sua mãe era uma nativa de San Martín de Loba, na província de Mompox, que emigrara com os pais para a Espanha.
Delaura julgava não ter nada dela, até que foi criado o Novo Reino de Granada e assim ele reconheceu suas saudades herdadas.
Desde a primeira conversa que tiveram em Salamanca, o bispo De Caceres y Virtudes se sentira diante de um desses valores que ilustravam a cristandade da época. Era uma gelada manhã de fevereiro, pela janela se viam os campos nevados, e ao fundo a fileira de álamos junto ao rio. Aquela paisagem de inverno seria a moldura de um sonho recorrente que iria perseguir o jovem teólogo pelo resto da vida.
Falaram de livros, claro, e o bispo não podia crer que Delaura tivesse lido tanto com sua idade. Ele falou de Garcilaso. O mestre confessou que o conhecia mal, mas se lembrava dele como um poeta pagão que em toda a sua obra só mencionava Deus duas vezes.
Não tão poucas vezes — disse Delaura. — Mas isso não era raro mesmo entre os bons católicos da Renascença.
No dia em que fez seus primeiros votos, o professor o convidou a acompanhá-lo ao reino incerto de Yucatán, para onde acabava de ser nomeado bispo. A Delaura, que conhecia a vida através de livros, o vasto mundo de sua mãe parecia um sonho que jamais iria ser seu.
Custava a imaginar o calor opressivo, a eterna exalação de carniça, os brejos fumegantes, enquanto se desenterravam da neve os carneiros petrificados. Isso era mais fácil ao bispo, que fizera as guerras da África.
Ouvi dizer que nossos sacerdotes enlouquecem de felicidade nas índias — disse Delaura.
E alguns se enforcam — disse o bispo. — É um reino ameaçado pela sodomia, a idolatria e a antropofagia. — E acrescentou, sem preconceitos: Como terra de mouros.
Mas também achava que esse era o atrativo maior do reino. Faltavam guerreiros tão capazes de impor os bens da civilização cristã como de pregar no deserto. Entretanto, com vinte e três anos, Delaura acreditava ter descoberto o caminho para ficar à direita do Espírito Santo, do qual era devoto absoluto.
Toda a vida sonhei ser bibliotecário — disse. — É a única coisa para que sirvo.
Tinha participado num concurso para um cargo em Toledo que o colocaria no rumo desse sonho, e estava certo de consegui-lo. Mas o professor era obstinado.
É mais fácil chegar a santo como bibliotecário em Yucatán do que como mártir em Toledo disse.
Delaura replicou sem humildade: — Se Deus me concedesse a graça, eu não quereria ser santo, e sim anjo.
Ainda não acabara de refletir sobre o convite de seu mestre quando foi nomeado em Toledo, mas preferiu Yucatán. Nunca chegaram, porém.
Naufragaram no Canal dos Ventos depois de setenta dias de mar bravo e foram resgatados por um comboio desarvorado que os abandonou à própria sorte em Santa María Ia Antigua del Darién. Ali permaneceram mais de um ano, à espera dos correios ilusórios da Frota de Galeões, até que o bispo De Caceres foi nomeado bispo interino daquelas terras, cuja sede estava vaga com a morte súbita do titular. Vendo a selva colossal de Urabá de bordo da canoa que os levava ao seu novo destino, Delaura reconheceu as saudades que atormentavam sua mãe nos lúgubres invernos de Toledo. Os crepúsculos alucinantes, os pássaros de pesadelo, as podridões deliciosas dos manguezais lhe pareciam doces recordações de um passado que não vivera.
Só o Espírito Santo seria capaz de arrumar tão bem as coisas para me trazer à terra de minha mãe — disse.
Doze anos depois, o bispo renunciou ao sonho de Yucatán. Tinha feito setenta e três anos bem medidos, estava morrendo de asma e sabia que nunca mais veria nevar em Salamanca. Nos dias em que Sierva María entrou no convento, tinha resolvido aposentar-se, uma vez aberto para seu discípulo o caminho de Roma.
Cayetano Delaura foi no dia seguinte ao convento de Santa Clara. No hábito de lã crua que vestia apesar do calor, levava o acéter de água benta e um estojo com os óleos sacramentais, primeiras armas na guerra contra o demônio. A abadessa nunca o tinha visto, mas o rumor da sua inteligência e do seu poder rompera o sigilo da clausura.
Quando o recebeu no parlatório às seis da manhã, impressionaram-na seu ar juvenil, sua palidez de mártir, o metal de sua voz, o enigma de sua mecha branca. Mas nenhuma virtude seria bastante para fazê-la esquecer que ele era o homem de guerra do bispo. Já Delaura só teve a atenção chamada pela barulheira dos galos.
São apenas seis, mas cantam como se fossem cem — disse a abadessa. — E mais, um porco falou e uma cabra pariu três cabritinhos. — Acrescentou com intenção: — Tudo anda assim desde que o seu bispo fez o favor de nos mandar esse presente envenenado.
Susto igual era dado pelo jardim, que parecia contrariar a natureza, tal o ímpeto com que brotava. À medida que o atravessavam, ela fazia notar a Delaura que havia flores de tamanhos e cores irreais, algumas de cheiros insuportáveis. Achava todo o cotidiano com algo de sobrenatural. A cada palavra, Delaura sentia que a abadessa era mais forte que ele, e apressou-se a afiar suas armas.
Não afirmamos que a menina está possuída — disse —, mas apenas que há motivo para supô-lo.
O que estamos vendo fala por si — disse a abadessa.
Tome cuidado — disse Delaura. — Às vezes atribuímos ao demônio certas coisas que não entendemos, sem cuidar que podem ser coisas que não entendemos de Deus.
Assim disse Santo Tomás, e é a ele que me atenho — disse a abadessa. — Não se deve acreditar no demônio, nem quando fala a verdade.
No segundo andar começava o sossego. De um lado estavam as celas vazias, fechadas a cadeado durante o dia, e em frente a fileira de janelas abertas ao esplendor do mar. As noviças pareciam não se distrair de seus trabalhos, mas na verdade estavam atentas à abadessa e ao seu visitante quando se dirigiam ao pavilhão da prisão.
Antes de chegar ao fim do corredor, onde ficava a cela de Sierva María, passaram pela de Martina Laborde, uma ex-freira condenada a prisão perpétua por ter matado duas companheiras com uma faca de cozinha. Nunca confessou o motivo. Estava ali havia onze anos e era mais conhecida por suas fugas frustradas do que por seu crime, jamais aceitou que ficar presa por toda a vida fosse a mesma coisa que ser freira de clausura, e era tão consequente que se oferecera para cumprir a pena como criada no pavilhão das enterradas vivas. Sua obsessão implacável, à qual se dedicou com tanto afinco como à sua fé, era de ser livre mesmo que tivesse que tornar a matar.
Delaura não resistiu à tentação meio infantil de espiar para dentro da cela por entre as barras de ferro do postigo. Martina estava de costas. Ao se sentir olhada, virou-se para a porta, e Delaura experimentou logo o poder de seu feitiço. Inquieta, a abadessa o afastou do postigo.
Cuidado — disse. — Essa criatura é capaz de tudo.
Tanto assim? — disse Delaura.
De tudo — repetiu a abadessa. — Se dependesse de mim, ela estaria em liberdade há muito tempo. É um motivo de perturbação grande demais para este convento.
Quando a guardiã abriu a porta, a cela de Sierva María exalou um bafo de podridão. A menina estava deitada de costas na cama de pedra sem colchão, amarrada de pés e mãos com correias de couro. Parecia morta, mas seus olhos tinham a luz do mar. Delaura a viu igual à do seu sonho; um tremor se apossou de seu corpo e molhou-o de um suor gelado. Fechou os olhos e rezou em voz baixa, com todo o peso de sua fé, e ao terminar tinha recobrado o domínio de si mesmo.
Mesmo que não estivesse possuída por nenhum demônio — disse —, esta pobre criança tem aqui o ambiente mais propício para ficar possuída.
Honra que não merecemos — retrucou a abadessa. Explicou que haviam feito o possível para manter a cela em melhor estado, mas Sierva María gerava a sua própria imundície.
Nossa guerra não é contra ela, mas contra os demônios que a habitem — disse Delaura.
Entrou caminhando na ponta dos pés para evitar as sujeiras do assoalho e aspergiu a cela com água benta, murmurando as fórmulas rituais. A abadessa se apavorou com as manchas que a água ia deixando nas paredes.
Sangue! -gritou.
Delaura censurou a ligeireza da conclusão. A água vermelha não tinha que ser sangue e mesmo sendo não havia por que ser coisa do diabo.
Mais justo seria pensar que se trata de um milagre, e tal poder só a Deus pertence -disse.
Mas não era nem uma coisa nem outra, porque ao secarem na cal as manchas não ficavam vermelhas, e sim de um verde carregado. A abadessa enrubesceu. Não somente às clarissas como a todas as mulheres daquele tempo era vedada qualquer formação acadêmica, mas desde muito jovem, em sua família de teólogos insignes e grandes hereges, ela aprendera a esgrima escolástica.
Pelo menos — replicou —, não neguemos aos demônios o poder simples de mudar a cor do sangue.
Nada é mais útil que uma dúvida em tempo — retorquiu Delaura ato contínuo, e mirou-a de frente: — Leia Santo Agostinho.
Tenho-o lido muito bem — disse a abadessa.
Pois leia de novo — disse o padre.
Antes de se ocupar da menina, pediu muito afável à guardiã que saísse da cela. Em seguida, sem a mesma gentileza, dirigiu-se à abadessa: — A senhora também, por favor.
Sob sua responsabilidade — disse ela.
O bispo é a hierarquia máxima — disse Delaura.
Não precisa lembrar — retrucou a abadessa, com uma ponta de sarcasmo. — já sabemos que os senhores são donos de Deus.
Delaura deu-lhe o prazer da última palavra. Sentou à beira da cama e examinou a menina com rigor de médico. Continuava tremendo, mas já não suava.
Vista de perto, Sierva María apresentava talhos e equimoses, e a pele estava em carne viva pela fricção das correias. Mais impressionante, porém, era a ferida do tornozelo, ardente e supurada por obra da incompetência dos curandeiros.
Enquanto a examinava, Delaura lhe explicou que não a tinham posto lá para martirizá-la, mas por suspeitar que um demônio se metera no seu corpo para roubar-lhe a alma. Precisava de sua ajuda para descobrir a verdade. Mas era impossível saber se ela o escutava, e se compreendia que era uma súplica do coração.
Ao terminar o exame, Delaura mandou buscar um estojo de curativos, mas barrou a entrada da irmã enfermeira. Untou as feridas com bálsamos e aliviou com sopros suaves a ardência da carne viva, admirado da resistência da menina à dor. Sierva Maria não respondeu a nenhuma de suas perguntas, não se interessou por suas prédicas nem se queixou de nada.
Foi um começo desanimador, que perseguiu Delaura até o remanso da biblioteca. Era o ambiente mais espaçoso da casa do bispo, sem uma só janela, e as paredes cobertas por armários de mogno envidraçados com livros numerosos e em ordem. No centro ficava uma mesa grande com cartas de marear, um astrolábio e outros instrumentos de navegação, e um globo terrestre com acréscimos e emendas feitas a mão por sucessivos cartógrafos à medida que o mundo ia aumentando. Havia no fundo uma rústica mesa de trabalho com o tinteiro, o aparador de penas, as penas de peru nativo para escrever, o pó de secar tinta e uma jarra com um cravo murcho. Todo o ambiente estava em penumbra, e cheirava a papel em repouso, à fresca e ao sossego de uma floresta.
[…]

Gabriel García Márquez, em Do Amor e Outros Demônios

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