quinta-feira, 4 de abril de 2024

"Eu te amo": do amor à despedida


Numa encruzilhada entre lírica e narrativa, constrói-se o texto da canção “Eu te amo” (1980). E é justamente essa encruzilhada que permite as circunvoluções do sujeito do enunciado – que escolho denominar eu lírico – entre um presente de ruptura, de perda afetiva, de desencontro, e um passado afirmativo de forte e visceral ligação amorosa, de fragmentos de uma história vivida por um casal, trazidos à cena pela voz do homem.
Se tais fragmentos chegam em voz que os articula ao modo de uma narrativa (conservando, embora, o traço da concisão precipuamente lírico), o que prevalece no espaço da canção é o agora do lamento. Lamento que dá o tom pela exclamação “Ah”, palavra inicial do texto, ponto de partida para a enumeração de tudo o que ocorrera no passado. A princípio, é atribuída ao casal a responsabilidade pelo corte (apesar de atenuada por um “se já”, aceno a uma hipótese, quem sabe, não concretizada), na perda da “noção da hora” e no ato de “jogar tudo fora”: isso eles fizeram juntos. De imediato, porém, o eu lírico desvia-se do peso das ações compartilhadas e joga para a mulher a solução: “Me conta agora como hei de partir”. Para poder partir, para enfrentar o corte, é da mulher a sapiência. Nesse sentido, permanece o homem refém do poder que sobre ele exerce o objeto do seu amor – a mulher – e todo o vivido ostenta seu peso diante da perplexidade de um futuro viver em solidão.
A partir desse momento, constrói-se uma narrativa lírica de todos os desvarios, sonhos, excessos, desmedidas que permearam as ações desse eu na história de amor vivida, e que aqui aparecem entremeados por versos expressivos de tal perplexidade: “Me conta agora como hei de partir”, “Me diz pra onde é que inda posso ir”, “Diz com que pernas eu devo seguir”, “Me explica com que cara eu vou sair” e, finalmente, “Agora conta como hei de partir”, cuja ênfase colocada no marcador de temporalidade “agora”, no início do verso final, faz um apelo à mulher e põe fim à canção. Esses versos indicativos, mais do que de um apelo, de um ultimato à mulher, funcionam na estrutura do poema-canção como marcadores que entremeiam a história vivida (passado) e o sentimento doloroso enfrentado (presente).
Esboça-se, portanto, um desenho no poema, ancorado num movimento que tem como recurso de construção a alternância entre a narrativa das ações e momentos vividos e o beco sem saída em que se encontra o eu lírico. Poderíamos dizer de outro modo: alternância entre os argumentos apontados como dificuldade para a partida (a memória de tudo de bom que viveram juntos) e o vislumbre da dor futura, manifestando-se já no presente. Ou seja, um movimento que faz convergir, no espaço do presente em que se canta, tanto o pretérito quanto o futuro.
Mas não se trata aqui de um discurso argumentativo. A força da argumentação eclode das imagens primorosas, que se distribuem em diferenciadas zonas semânticas, de acordo com a direção tomada pelo sujeito lírico, conservando, no seu próprio caráter imagético, a carga de poeticidade que as faz irredutíveis a qualquer explicação ou tradução, como defende Octavio Paz no seu ensaio “A imagem”. Vejamos: a associação da imagem “queimei meus navios” com o verso que a segue, “Me diz pra onde é que inda posso ir”, investe na radicalidade do gesto como forma de afirmação do seu amor, amor que abdica de qualquer saída, de qualquer outra alternativa, e se coloca como única possibilidade (“Rompi com o mundo”).
Por outro lado, o signo “pernas”, presente nos versos “Já confundimos tanto as nossas pernas” e “Diz com que pernas eu devo seguir”, funcionando metonimicamente, embora em direções significativas diferenciadas, põe em realce, com um toque de humor (tão presente nas canções de Chico), a dificuldade de prosseguir na vida sem a presença da amada. Novo argumento imagístico, portanto, que estimula o ouvinte a esboçar um leve sorriso, acompanhando o astucioso jogo verbal. Assim como o são os versos-imagens “Meu paletó enlaça o teu vestido” e “E o meu sapato inda pisa no teu”, pondo em destaque, no espaço compartilhado por objetos pessoais (“na desordem do armário embutido”), a cumplicidade dos sujeitos envolvidos em enlaces e pisadas indicativos da vida a dois.
As duas sequências finais privilegiam o poder da mulher sobre o homem, a força do sentimento que os une, responsável pela diluição das fronteiras entre tempo passado (o que foi) e tempo presente (o que é), cujos índices do corpo, transcendendo a presença física e inscrevendo-se na memória afetiva – “Teus seios inda estão nas minhas mãos” e “Te dei meus olhos pra tomares conta” – são suficientemente convincentes como justificativas para o atordoamento do eu lírico, nas respectivas enunciações: “Me explica com que cara eu vou sair” e “Agora conta como hei de partir”.
Restam os versos que dividem o poema ao meio, pela posição que ocupam:

Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu

Pela primeira vez dirige-se o eu lírico explicitamente à amada, colocando-a na posição de responsável pelo fim do relacionamento e pelo estado em que ele se encontra. Substitui, portanto, o “nós” e o “eu” anteriores pelo “tu”, agente do ato de “entornar a sorte pelo chão” e cujo coração em desordem (“na bagunça”, palavra mais eloquente para a dimensão do que o poeta logra exprimir) resulta em transtorno vital.
A plangência lírica da canção, cujo desenho melódico está em perfeita sintonia com o texto, é permeada por elementos do cotidiano de um casal, expressivos do sentimento de que fala o poeta. E nisso Chico Buarque é exemplar: na maestria em reunir, em sua dicção poético-musical, a delicadeza do mundo subjetivo, do universo amoroso-existencial, a tudo o que faz parte da concretude da vida, dos elementos mais simples do dia a dia de pessoas comuns. A fala brasileira do cotidiano alimenta a construção de imagens de grande força num cancioneiro que, aliando simplicidade e sofisticação, alcança ouvidos e sentimentos heterogêneos.
Eu te amo” – como diz o título – é uma inusitada declaração de amor, constituída nas entrelinhas do relato que, se não a enuncia com essas palavras, torna-a presente nas marcas expostas do corpo e do coração. Uma declaração a posteriori, sem dúvida incluída na vertente amorosa do cancioneiro buarqueano, cuja potência lírica de eternizar os momentos e vivências, os sentimentos do ser humano, retira-os da transitoriedade própria da sua condição. Reafirma-se, por meio dela, a riqueza de situações e motivos de amor cantados por Chico em variados tons, travestido em personagens masculinos e femininos, quer em posição de voz central ou de interlocutor.
Elementos dramáticos acentuam a força poética do texto, apesar do seu caráter indubitavelmente lírico. A declaração de um sujeito em apelo ao amor que lhe escapa das mãos afirma-se com a intensidade de um pathos, construído em recorrente e implícito diálogo – no lamento? na memória? na saudade? na urgência de convencê-la a não se ir? Fazem parte, ainda, desse universo dramático gestos e poses esboçados nas imagens das pernas que se confundem no ritual amoroso e das roupas que se enlaçam no armário em desordem. Na trama dessa canção, o apelo auditivo resvala ainda para o visual das cenas de teatralidade que potencializam aspectos dos tradicionais gêneros literários.
Portanto, se o título enuncia uma peremptória declaração de amor, o desenrolar da canção faz desdobrarem-se outras nuances, dando voz a uma história vivida, nos seus caminhos e descaminhos, constituindo-se em dramático apelo para uma – quem sabe? – mudança de rumo do destino.

Lígia Guimarães Telles, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos

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