Certa
noite confidenciei com um homem sensível num daqueles saudosos cafés
da volta do Mercado. Aliás sempre nos encontrávamos com agrado da
minha parte, porque ele era poeta mas inteligente, e suas libações
não o tornavam monótono ou repetitivo. Seus sonetos me pareciam
bons, tinham até um quê de clássico. Compusera um deles em memória
de seu filho único, morto na flor da mocidade. Foi naquela noite que
ele o recitou para mim, enquanto as lágrimas lhe corriam pelas
faces. E aconteceu que, tempos depois, numa espera de bonde, um jovem
que estava fazendo o serviço militar apresentou-se-me como filho
daquele angustiado poeta amigo. Senti-me ilaqueado em minha boa-fé,
como vulgarmente se diz, e, na primeira vez que encontrei o poeta,
fui logo dizendo:
— Mas
Oscar! Como é que tiveste a coragem de me impingires aquele soneto
em memória de teu filho vivo?
E
ele, com toda a sinceridade:
— Era
pra que se morresse.
A
resposta, como se vê, foi num estilo nada clássico... mas que
mundos e fundos havia nela! A verdade do mundo poético não tem de
dar satisfações à verdade do mundo real — eis aí uma tese a
defender. Mas fique o leitor descansado: eu não pretendo provar
coisa nenhuma... Estou modestamente fazendo uma afirmação.
Mário Quintana, in Caderno H
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