quinta-feira, 4 de abril de 2024

O filho morto

Certa noite confidenciei com um homem sensível num daqueles saudosos cafés da volta do Mercado. Aliás sempre nos encontrávamos com agrado da minha parte, porque ele era poeta mas inteligente, e suas libações não o tornavam monótono ou repetitivo. Seus sonetos me pareciam bons, tinham até um quê de clássico. Compusera um deles em memória de seu filho único, morto na flor da mocidade. Foi naquela noite que ele o recitou para mim, enquanto as lágrimas lhe corriam pelas faces. E aconteceu que, tempos depois, numa espera de bonde, um jovem que estava fazendo o serviço militar apresentou-se-me como filho daquele angustiado poeta amigo. Senti-me ilaqueado em minha boa-fé, como vulgarmente se diz, e, na primeira vez que encontrei o poeta, fui logo dizendo:
Mas Oscar! Como é que tiveste a coragem de me impingires aquele soneto em memória de teu filho vivo?
E ele, com toda a sinceridade:
Era pra que se morresse.
A resposta, como se vê, foi num estilo nada clássico... mas que mundos e fundos havia nela! A verdade do mundo poético não tem de dar satisfações à verdade do mundo real — eis aí uma tese a defender. Mas fique o leitor descansado: eu não pretendo provar coisa nenhuma... Estou modestamente fazendo uma afirmação.

Mário Quintana, in Caderno H

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