Numa
encruzilhada entre lírica e narrativa, constrói-se o texto da
canção “Eu te amo” (1980). E é justamente essa encruzilhada
que permite as circunvoluções do sujeito do enunciado – que
escolho denominar eu lírico – entre um presente de ruptura, de
perda afetiva, de desencontro, e um passado afirmativo de forte e
visceral ligação amorosa, de fragmentos de uma história vivida por
um casal, trazidos à cena pela voz do homem.
Se
tais fragmentos chegam em voz que os articula ao modo de uma
narrativa (conservando, embora, o traço da concisão precipuamente
lírico), o que prevalece no espaço da canção é o agora do
lamento. Lamento que dá o tom pela exclamação “Ah”, palavra
inicial do texto, ponto de partida para a enumeração de tudo o que
ocorrera no passado. A princípio, é atribuída ao casal a
responsabilidade pelo corte (apesar de atenuada por um “se já”,
aceno a uma hipótese, quem sabe, não concretizada), na perda da
“noção da hora” e no ato de “jogar tudo fora”: isso eles
fizeram juntos. De imediato, porém, o eu lírico desvia-se do peso
das ações compartilhadas e joga para a mulher a solução: “Me
conta agora como hei de partir”. Para poder partir, para enfrentar
o corte, é da mulher a sapiência. Nesse sentido, permanece o homem
refém do poder que sobre ele exerce o objeto do seu amor – a
mulher – e todo o vivido ostenta seu peso diante da perplexidade de
um futuro viver em solidão.
A
partir desse momento, constrói-se uma narrativa lírica de todos os
desvarios, sonhos, excessos, desmedidas que permearam as ações
desse eu na história de amor vivida, e que aqui aparecem entremeados
por versos expressivos de tal perplexidade: “Me conta agora como
hei de partir”, “Me diz pra onde é que inda posso ir”, “Diz
com que pernas eu devo seguir”, “Me explica com que cara eu vou
sair” e, finalmente, “Agora conta como hei de partir”, cuja
ênfase colocada no marcador de temporalidade “agora”, no início
do verso final, faz um apelo à mulher e põe fim à canção. Esses
versos indicativos, mais do que de um apelo, de um ultimato à
mulher, funcionam na estrutura do poema-canção como marcadores que
entremeiam a história vivida (passado) e o sentimento doloroso
enfrentado (presente).
Esboça-se,
portanto, um desenho no poema, ancorado num movimento que tem como
recurso de construção a alternância entre a narrativa das ações
e momentos vividos e o beco sem saída em que se encontra o eu
lírico. Poderíamos dizer de outro modo: alternância entre os
argumentos apontados como dificuldade para a partida (a memória de
tudo de bom que viveram juntos) e o vislumbre da dor futura,
manifestando-se já no presente. Ou seja, um movimento que faz
convergir, no espaço do presente em que se canta, tanto o pretérito
quanto o futuro.
Mas
não se trata aqui de um discurso argumentativo. A força da
argumentação eclode das imagens primorosas, que se distribuem em
diferenciadas zonas semânticas, de acordo com a direção tomada
pelo sujeito lírico, conservando, no seu próprio caráter
imagético, a carga de poeticidade que as faz irredutíveis a
qualquer explicação ou tradução, como defende Octavio Paz no seu
ensaio “A imagem”. Vejamos: a associação da imagem “queimei
meus navios” com o verso que a segue, “Me diz pra onde é que
inda posso ir”, investe na radicalidade do gesto como forma de
afirmação do seu amor, amor que abdica de qualquer saída, de
qualquer outra alternativa, e se coloca como única possibilidade
(“Rompi com o mundo”).
Por
outro lado, o signo “pernas”, presente nos versos “Já
confundimos tanto as nossas pernas” e “Diz com que pernas eu devo
seguir”, funcionando metonimicamente, embora em direções
significativas diferenciadas, põe em realce, com um toque de humor
(tão presente nas canções de Chico), a dificuldade de prosseguir
na vida sem a presença da amada. Novo argumento imagístico,
portanto, que estimula o ouvinte a esboçar um leve sorriso,
acompanhando o astucioso jogo verbal. Assim como o são os
versos-imagens “Meu paletó enlaça o teu vestido” e “E o meu
sapato inda pisa no teu”, pondo em destaque, no espaço
compartilhado por objetos pessoais (“na desordem do armário
embutido”), a cumplicidade dos sujeitos envolvidos em enlaces e
pisadas indicativos da vida a dois.
As
duas sequências finais privilegiam o poder da mulher sobre o homem,
a força do sentimento que os une, responsável pela diluição das
fronteiras entre tempo passado (o que foi) e tempo presente (o que
é), cujos índices do corpo, transcendendo a presença física e
inscrevendo-se na memória afetiva – “Teus seios inda estão nas
minhas mãos” e “Te dei meus olhos pra tomares conta” – são
suficientemente convincentes como justificativas para o atordoamento
do eu lírico, nas respectivas enunciações: “Me explica com que
cara eu vou sair” e “Agora conta como hei de partir”.
Restam
os versos que dividem o poema ao meio, pela posição que ocupam:
Se
entornaste a nossa sorte pelo chão
Se
na bagunça do teu coração
Meu
sangue errou de veia e se perdeu
Pela
primeira vez dirige-se o eu lírico explicitamente à amada,
colocando-a na posição de responsável pelo fim do relacionamento e
pelo estado em que ele se encontra. Substitui, portanto, o “nós”
e o “eu” anteriores pelo “tu”, agente do ato de “entornar a
sorte pelo chão” e cujo coração em desordem (“na bagunça”,
palavra mais eloquente para a dimensão do que o poeta logra
exprimir) resulta em transtorno vital.
A
plangência lírica da canção, cujo desenho melódico está em
perfeita sintonia com o texto, é permeada por elementos do cotidiano
de um casal, expressivos do sentimento de que fala o poeta. E nisso
Chico Buarque é exemplar: na maestria em reunir, em sua dicção
poético-musical, a delicadeza do mundo subjetivo, do universo
amoroso-existencial, a tudo o que faz parte da concretude da vida,
dos elementos mais simples do dia a dia de pessoas comuns. A fala
brasileira do cotidiano alimenta a construção de imagens de grande
força num cancioneiro que, aliando simplicidade e sofisticação,
alcança ouvidos e sentimentos heterogêneos.
“Eu
te amo” – como diz o título – é uma inusitada declaração de
amor, constituída nas entrelinhas do relato que, se não a enuncia
com essas palavras, torna-a presente nas marcas expostas do corpo e
do coração. Uma declaração a posteriori, sem dúvida incluída na
vertente amorosa do cancioneiro buarqueano, cuja potência lírica de
eternizar os momentos e vivências, os sentimentos do ser humano,
retira-os da transitoriedade própria da sua condição. Reafirma-se,
por meio dela, a riqueza de situações e motivos de amor cantados
por Chico em variados tons, travestido em personagens masculinos e
femininos, quer em posição de voz central ou de interlocutor.
Elementos
dramáticos acentuam a força poética do texto, apesar do seu
caráter indubitavelmente lírico. A declaração de um sujeito em
apelo ao amor que lhe escapa das mãos afirma-se com a intensidade de
um pathos, construído em recorrente e implícito diálogo –
no lamento? na memória? na saudade? na urgência de convencê-la a
não se ir? Fazem parte, ainda, desse universo dramático gestos e
poses esboçados nas imagens das pernas que se confundem no ritual
amoroso e das roupas que se enlaçam no armário em desordem. Na
trama dessa canção, o apelo auditivo resvala ainda para o visual
das cenas de teatralidade que potencializam aspectos dos tradicionais
gêneros literários.
Portanto,
se o título enuncia uma peremptória declaração de amor, o
desenrolar da canção faz desdobrarem-se outras nuances, dando voz a
uma história vivida, nos seus caminhos e descaminhos,
constituindo-se em dramático apelo para uma – quem sabe? –
mudança de rumo do destino.
Lígia Guimarães Telles, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos
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