segunda-feira, 1 de abril de 2024

Aventuras Naturais

Uma vez o cineasta Geraldo Sarno, que é muito natural embora não pareça, me levou para almoçar num restaurante natural e saí de lá deprimido, levei dois dias para me recuperar. Quanto a ele, garantiu-me que adorava aquilo tudo, apesar de comer com o mesmo ar funéreo dos demais presentes. Pior do que essa experiência acabrunhante, só a que tive num restaurante macrobiótico de Salvador, ao qual concordei que me levassem num momento de insensatez e que me deixou abaladíssimo — aqueles mastigadores obstinados, aquela aura de expiação de pecados através de penitências alimentares, aquela atmosfera pálida e astênica.
Desconfiado, diria mesmo que intimidado, perguntei se não havia qualquer coisinha para beber e responderam que havia, claro que havia. Maravilhoso, que podia ser, então?
Dependia da minha preferência. Ah, sim, nesse caso, que sugeriam? Com revoltante cinismo, o falso amigo que me levou a esse lugar desfiou um rosário horripilante de possibilidades, a começar por suco de espinafre (que nunca vi, mas considero imoral por definição) e terminando por suco de beldroega, que não sei o que é mas tampouco soa como algo decente. Perguntei se não havia água, então, uma agüinha mineral. Mineral não, responderam com desdém, temos água descansada.
Água descansada? Descansada?
Sim, água descansada.
E essa água descansada é diferente da água comum? Quer dizer que normalmente bebo água cansada? Isso é mau?
De certa maneira, você bebe água cansada, sim, pode-se dizer isso. Água misturada com aditivos nocivos, talvez poluída, esterilizada através de meios violentos e antinaturais como a filtragem e a fervura.
A daqui não é filtrada nem fervida?
Claro que não. É água natural, de uma fonte límpida, que deixamos decantando em vasos de cerâmica especial. Descansando, portanto.
Fantástica água. Será que eu posso beber um copo d’água geladinha?
Geladinha não temos.
Por quê? Gelar cansa a água?
Não é natural beber água gelada, é outra violência que se comete contra o organismo. Além disso, o senhor não devia beber água às refeições, não é bom, talvez um chá, temos chás excelentes.
De beldroega?
Se o senhor quiser. Mas temos de tília, de...
Não, não, esqueça, tudo bem, eu espero a comida.
Não sei por que resolvi esperar, devia ter fugido antes, inclusive porque, de outra ponta da sala, como um espectro ossudo, aparece um outro amigo meu, que por sinal não reconheci na mesma hora. Macilento, de uma cor parda indefinida, gestos fluidos, voz aflautada, cumprimentou-me festivamente. Que alegria eu lhe dava, aparecendo ali, vendo finalmente o caminho da saúde, da felicidade e da paz de espírito.
Nunca tive tanta saúde — disse, com um sorriso de múmia.
Você não está me achando bem?
Hein? Sim, muito bem, está muito bem mesmo.
Pois é — disse ele, os olhos muito protuberantes no rosto escaveirado. — Sinto-me uns 10 a 15 anos mais moço.
Embora pareça uns 40 mais velho”, pensei eu, mas não disse, até porque estava chegando a comida. Ao contrário do que acontece quando a comida chega em circunstâncias normais, ninguém esfregou as mãos, lambeu os beiços, sorriu ou lançou um olhar satisfeito sobre os pratos. Ao contrário, criou-se um clima contido e grave, piorado no meu caso pela dor nas costas que me dá sentar em almofadas no chão, o que também me deixa sem saber o que fazer com as pernas. Mas, de fato, a comida não mereceria outro tipo de recepção que não aquele velório.
Que é isto aqui? — perguntei a um dos amigos, apontando uma massa de cor repelente e consistência suspeita.
Isto é arroz, arroz integral. Receita da casa, os donos são gênios culinários.
Com certeza, conseguem vender esse negócio e o pessoal ainda paga e agradece.
Hein?
Nada, não. Arroz, hein? Quem diria, assim à primeira vista eu pensei que era papa de alpiste com goma arábica.
Ha-ha, mas é arroz. É uma delícia, experimente.
Está certo. Acontecendo alguma coisa, avise à família.
Hein, que tal? Hein? Não! Não!
Não o quê? O que foi, eu estou pálido? Estou roxo?
Não é isso, você não mastigou.
Mastiguei, sim. Não havia muito o que mastigar, mas mastiguei.
Nada disso, você tem de mastigar pelo menos 50 vezes.
Cinquenta vezes? É por isso que ninguém fala aqui, todo mundo contando as mastigadas?
Não é preciso que sejam rigorosamente 50 mastigadas. Mas essa é a média para que você consiga liquidificar a comida na boca.
Se é assim, então por que não passam tudo logo no liquidificador?
Não, tem de ser feito na boca. Deve-se mastigar até a água.
Cinquenta vezes cada gole?
Mais ou menos.
Na saída, com os maxilares destroncados e a sensação de que tinha comido vento moído, refugiei-me imediatamente num boteco da esquina, comi um sanduíche de pernil e jurei romper relações com o primeiro que me levasse à macrobiótica ou à naturalidade ou a qualquer coisa correlata. Mas o destino é irônico. Não é que minha filha Chica, que recentemente colheu a primeira flor no jardim de sua existência, com 13 quilos e físico de lutador de sumô, é metida a natural? Com essa idade, vejam vocês, já é toda natural, não come carne, é cheia de novidades. Altas preocupações na família, grandes leituras do dr. Spock e do dr. Delamare — essa menina precisa comer proteínas, carboidratos e lipídios.
Mas o preparo físico dela (se houvesse recorde infantil para levantamento de peso, essa medalha já estava no papo) demonstra que alguma coisa dá certo na dieta dela. Como será que ela obtém as tão faladas proteínas? A resposta, como outras grandes descobertas, veio por acaso. Aqui em Itaparica tivemos também uma praga de grilos, uma infestação generalizada, grilo por tudo quanto era canto. Em nossa casa, contudo, a infestação era mais moderada que em outros lugares. Por quê? Eis que, observando Chica brincando no chão, noto que ela pegou alguma coisa que pôs na boca.
Que é isso aí na boca? Tire isso da boca!
Tarde demais. Mastigando com grande prazer gastronômico, Chica acabara de jantar um grilo ao primo cri-cri. Só consegui puxar uma perninha, já mastigadinha.
Mulher! — gritei lá para dentro. — Chica comeu um grilo!
São João Batista também comia — disse ela.
Mas você acha certo esse negócio de Chica comer grilo?
Não posso fazer nada, isso nem é a pior coisa que ela já comeu. Você quer saber o que eu já peguei ela comendo? Ela...
Não, não diga, não diga, eu já sei!
Bem, é proteína, isso ninguém pode negar. Dobramos a vigilância, mas Chica consegue traçar uns dois grilos por dia, no mínimo. E a verdade é que tudo na vida pode ser visto por um ângulo favorável. Outro dia mesmo, quando Zé de Honorina estava lá em casa para tomar um cafezinho, observou que tínhamos bem menos grilos do que as outras casas da ilha.
Que é que você faz, usa muito inseticida? — perguntou ele.
Não. Nós usamos controle biológico — respondi, olhando para minha filha orgulhosamente.

João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite

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