Uma
vez o cineasta Geraldo Sarno, que é muito natural embora não
pareça, me levou para almoçar num restaurante natural e saí de lá
deprimido, levei dois dias para me recuperar. Quanto a ele,
garantiu-me que adorava aquilo tudo, apesar de comer com o mesmo ar
funéreo dos demais presentes. Pior do que essa experiência
acabrunhante, só a que tive num restaurante macrobiótico de
Salvador, ao qual concordei que me levassem num momento de insensatez
e que me deixou abaladíssimo — aqueles mastigadores obstinados,
aquela aura de expiação de pecados através de penitências
alimentares, aquela atmosfera pálida e astênica.
Desconfiado,
diria mesmo que intimidado, perguntei se não havia qualquer coisinha
para beber e responderam que havia, claro que havia. Maravilhoso, que
podia ser, então?
Dependia
da minha preferência. Ah, sim, nesse caso, que sugeriam? Com
revoltante cinismo, o falso amigo que me levou a esse lugar desfiou
um rosário horripilante de possibilidades, a começar por suco de
espinafre (que nunca vi, mas considero imoral por definição) e
terminando por suco de beldroega, que não sei o que é mas tampouco
soa como algo decente. Perguntei se não havia água, então, uma
agüinha mineral. Mineral não, responderam com desdém, temos água
descansada.
— Água
descansada? Descansada?
— Sim,
água descansada.
— E
essa água descansada é diferente da água comum? Quer dizer que
normalmente bebo água cansada? Isso é mau?
— De
certa maneira, você bebe água cansada, sim, pode-se dizer isso.
Água misturada com aditivos nocivos, talvez poluída, esterilizada
através de meios violentos e antinaturais como a filtragem e a
fervura.
— A
daqui não é filtrada nem fervida?
— Claro
que não. É água natural, de uma fonte límpida, que deixamos
decantando em vasos de cerâmica especial. Descansando, portanto.
— Fantástica
água. Será que eu posso beber um copo d’água geladinha?
— Geladinha
não temos.
— Por
quê? Gelar cansa a água?
— Não
é natural beber água gelada, é outra violência que se comete
contra o organismo. Além disso, o senhor não devia beber água às
refeições, não é bom, talvez um chá, temos chás excelentes.
— De
beldroega?
— Se
o senhor quiser. Mas temos de tília, de...
— Não,
não, esqueça, tudo bem, eu espero a comida.
Não
sei por que resolvi esperar, devia ter fugido antes, inclusive
porque, de outra ponta da sala, como um espectro ossudo, aparece um
outro amigo meu, que por sinal não reconheci na mesma hora.
Macilento, de uma cor parda indefinida, gestos fluidos, voz
aflautada, cumprimentou-me festivamente. Que alegria eu lhe dava,
aparecendo ali, vendo finalmente o caminho da saúde, da felicidade e
da paz de espírito.
— Nunca
tive tanta saúde — disse, com um sorriso de múmia.
— Você
não está me achando bem?
— Hein?
Sim, muito bem, está muito bem mesmo.
— Pois
é — disse ele, os olhos muito protuberantes no rosto escaveirado.
— Sinto-me uns 10 a 15 anos mais moço.
“Embora
pareça uns 40 mais velho”, pensei eu, mas não disse, até porque
estava chegando a comida. Ao contrário do que acontece quando a
comida chega em circunstâncias normais, ninguém esfregou as mãos,
lambeu os beiços, sorriu ou lançou um olhar satisfeito sobre os
pratos. Ao contrário, criou-se um clima contido e grave, piorado no
meu caso pela dor nas costas que me dá sentar em almofadas no chão,
o que também me deixa sem saber o que fazer com as pernas. Mas, de
fato, a comida não mereceria outro tipo de recepção que não
aquele velório.
— Que
é isto aqui? — perguntei a um dos amigos, apontando uma massa de
cor repelente e consistência suspeita.
— Isto
é arroz, arroz integral. Receita da casa, os donos são gênios
culinários.
— Com
certeza, conseguem vender esse negócio e o pessoal ainda paga e
agradece.
— Hein?
— Nada,
não. Arroz, hein? Quem diria, assim à primeira vista eu pensei que
era papa de alpiste com goma arábica.
— Ha-ha,
mas é arroz. É uma delícia, experimente.
— Está
certo. Acontecendo alguma coisa, avise à família.
— Hein,
que tal? Hein? Não! Não!
— Não
o quê? O que foi, eu estou pálido? Estou roxo?
— Não
é isso, você não mastigou.
— Mastiguei,
sim. Não havia muito o que mastigar, mas mastiguei.
— Nada
disso, você tem de mastigar pelo menos 50 vezes.
— Cinquenta
vezes? É por isso que ninguém fala aqui, todo mundo contando as
mastigadas?
— Não
é preciso que sejam rigorosamente 50 mastigadas. Mas essa é a média
para que você consiga liquidificar a comida na boca.
— Se
é assim, então por que não passam tudo logo no liquidificador?
— Não,
tem de ser feito na boca. Deve-se mastigar até a água.
— Cinquenta
vezes cada gole?
— Mais
ou menos.
Na
saída, com os maxilares destroncados e a sensação de que tinha
comido vento moído, refugiei-me imediatamente num boteco da esquina,
comi um sanduíche de pernil e jurei romper relações com o primeiro
que me levasse à macrobiótica ou à naturalidade ou a qualquer
coisa correlata. Mas o destino é irônico. Não é que minha filha
Chica, que recentemente colheu a primeira flor no jardim de sua
existência, com 13 quilos e físico de lutador de sumô, é metida a
natural? Com essa idade, vejam vocês, já é toda natural, não come
carne, é cheia de novidades. Altas preocupações na família,
grandes leituras do dr. Spock e do dr. Delamare — essa menina
precisa comer proteínas, carboidratos e lipídios.
Mas
o preparo físico dela (se houvesse recorde infantil para
levantamento de peso, essa medalha já estava no papo) demonstra que
alguma coisa dá certo na dieta dela. Como será que ela obtém as
tão faladas proteínas? A resposta, como outras grandes descobertas,
veio por acaso. Aqui em Itaparica tivemos também uma praga de
grilos, uma infestação generalizada, grilo por tudo quanto era
canto. Em nossa casa, contudo, a infestação era mais moderada que
em outros lugares. Por quê? Eis que, observando Chica brincando no
chão, noto que ela pegou alguma coisa que pôs na boca.
— Que
é isso aí na boca? Tire isso da boca!
Tarde
demais. Mastigando com grande prazer gastronômico, Chica acabara de
jantar um grilo ao primo cri-cri. Só consegui puxar uma perninha, já
mastigadinha.
— Mulher!
— gritei lá para dentro. — Chica comeu um grilo!
— São
João Batista também comia — disse ela.
— Mas
você acha certo esse negócio de Chica comer grilo?
— Não
posso fazer nada, isso nem é a pior coisa que ela já comeu. Você
quer saber o que eu já peguei ela comendo? Ela...
— Não,
não diga, não diga, eu já sei!
Bem,
é proteína, isso ninguém pode negar. Dobramos a vigilância, mas
Chica consegue traçar uns dois grilos por dia, no mínimo. E a
verdade é que tudo na vida pode ser visto por um ângulo favorável.
Outro dia mesmo, quando Zé de Honorina estava lá em casa para tomar
um cafezinho, observou que tínhamos bem menos grilos do que as
outras casas da ilha.
— Que
é que você faz, usa muito inseticida? — perguntou ele.
— Não.
Nós usamos controle biológico — respondi, olhando para minha
filha orgulhosamente.
João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite
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