sexta-feira, 29 de março de 2024

Fu ou o mistério da simpatia


O pecado do sapo é a feiura.
Sentença da velha Nicácia, cozinheira de meu pai

Fu nasceu dentro de um dos 30 mil ovos que sua gorda e solene progenitora largou na água tranquila da lagoa, ligados no mesmo cordão albuminoide que se estirava em oito metros. Naturalmente os hóspedes desta tira ovífera não resistiram todos. Nem a metade. Para falar franco, nem um décimo e sim fração ainda apreciável mas relativamente ínfima: – oito! É um grande, obeso, solene cururu de vinte centímetros, mosqueado de negro e vermelho sobre fundo gris. Parece que Velasquez limpou no seu dorso os pincéis com as tintas habituais. A bocarra sem dentes alonga-se indefinida até depois dos dois grandes, doces e lindos olhos cismadores. As patas sólidas, robustas, arqueadas como braços de lutador, sustentam o peso de mais de um quilo de orgulho, imponência e lentidão.
Tem quase oito anos de idade e chegou à maioridade fisiológica apenas há três. Dizem-no Bufo marinus e outros Bufo acqua, mas Fu ignora estes apelidos inexpressivos. Mora no fundo do quintal, debaixo de pedras perto do tanque, há bastante tempo.
Apenas uma vez cada doze meses abandona a circunspecção natural e foge, aos pulos, trôpego, desgracioso, risível, atraído pela orquestra disfônica dos colegas que berram apelos amorosos nas margens da água imóvel da lagoa próxima, além do campo. Pouco menos de uma hora de percurso.
Lá chegando, se inscreve na livre concorrência e entra com os altos roucos coaxos prestigiosos na protofonia aliciadora das fêmeas, seduzidas pela maravilha musical.
Disputa, afastando os concorrentes com a solidez muscular, a posse das noivas, elegendo a mais fornida e serena a quem abraça, pondo o ventre na espalda da noiva, num amplexo que dura horas e horas, dentro da água quieta e acolhedora.
Segura-a fortemente pelas axilas, pondo à prova a tenacidade dos braços onde há tensão de seiscentos gramas em cada um. Não fica o casal imóvel no natural embevecimento da junção mas se desloca, aos saltos ou passos arrastados e mesmo a desposada não recusa abocanhar alguma coisa digna do seu apetite. Fu é que não larga a posição conquistada e neste exercício de equitação sexual deixa o tempo passar sem notação de maior.
Num dado momento a esposa se adelgaça na expulsão dos fios ovíferos. Fu irriga-os com seu esperma. Está feita a fecundação.
Ainda parece muito próxima da ictiofauna mas Fu sabe que é um gozo sempre que se expele algum líquido do organismo. Não lhe importa semelhar, neste particular, aos peixes. O prazer compensa a pilhéria da comparação. As núpcias podem durar semanas. Difícil é defender a posse com a onda dos machos desocupados e aflitos pela ausência de trabalho. Fu distribui coices e ameaça dentadas fictícias com sua boca assombrosa mas destituída de armas positivas. O abraço em que se funde, ciumentamente, garante-lhe a propriedade da escolhida. Quando afrouxa os braços é para soltar-se de vez, o ingrato.
Regressa no mesmo ritmo sincopado ao canto de muro de sua residência, junto do tanque onde a bica escorre água triste duas vezes por dia e Dica, aranha-d’água, passeia sua esbelteza solteirona, leve e sutil.
Os filhos atravessarão os estágios remorados de girinos, caudados e feios como pequenos monstros. Depois da forma larvar terão aspecto do tipo racial e avançarão no aperfeiçoamento. Precisarão de sessenta meses para o nível de adultos. Que diferença das filhas da rainha Ata, trabalhando, já aptas e dinâmicas, com cinquenta dias de nascidas!…
Que tem Fu com estes problemas? Cumpriu sua missão. Não lhe compete tarefa alheia àquela que realizou com precisão e segurança.
Voltou à sua mansão, às pedras, junto do tanque melancólico onde uma velha folha boia, em giros concêntricos, ao empurro da corrente mansa e limitada.
Como todo réptil, adora a penumbra, o recolhimento silencioso nas horas de calor, balbúrdia e tumulto na excitação luminosa do encandeamento solar. Agachado, ventre na altura do solo, batendo o papo mole, semicerrando os olhos luminosos, lentus in umbra, deixa o dia morrer…
Com o anoitecer vai à caça com majestade. Fixa inicialmente os lugares táticos para a subsequente ação estratégica. Não gasta energias numa perseguição inútil ou parcialmente proveitosa. Escolhe os centros de interesse, encruzilhadas, pontos preferidos pela caça onde aguarda a presença com um ar de quem preside o parlamento.
Raros atinaram com a inteligência bufonídea e ninguém jamais apresentou o cururu como exemplo de atividade útil. Curioso é verificar que ele não perde, ou perde em proporção mínima, seus pulos e não há menção de haver-se enganado na exata situação do miradouro caçador. Para nossa perspicácia finória não há dedução justificativa de Fu permanecer em determinados sítios aparentemente vazios de interesses vitais. São exatamente estes os melhores e mais abundantes escoadores de caça viva, voante e rápida, no nível aquisitivo do salto e da bocarra aberta e glutona.
Vermes preguiçosos, larvas ondulantes, insetos atrevidos são os manjares do cardápio habitual. Não os podendo mastigar, engolindo duma vez, cabe-lhe direito da escolha no tocante à sua consistência, sabor e maciez. Raríssimas vezes a bocanhada é enganosa. Vezes, sucede, o besouro é demasiado áspero e armado com excrescências agressivas que impossibilitam uma assimilação delicada e subitânea. Fu expele-os pedindo mudamente desculpas pelo erro técnico. Lá um ou outro coleóptero, indignado com a tomadia total na própria boca de Fu, fere-a forte e fero, obrigando-o à restituição imediata, babado e íntegro. Os momentos mais intensos são os do encontro com as nuvens espessas de mosquitos ou moscas noturnas que esvoaçam, num bailado sem fim, num volteio consciente, de ordem estética incompreensível, num só recanto, ascendendo e descendendo, numa voluta espiralada como onda densa de fumo. Num lado, calculadamente imóvel onde uma voluta descreve sua volta leve, Fu saboreia, em bocanhadas sucessivas, miríades que valem como liliputianas frações de carne viva.
Com o leve esfriar da madrugada é que Fu em passo trejeitado e contínuo regressa ao lar. De volta ainda apanha um ou outro besouro erradio e boêmio. Jamais pende para o lado do mamoeiro, das árvores perto da velha calçada porque aí reside a ondulante elegância famélica de Raca, a jararaca flexível e passeadeira noturna.
Nestas horas escuras seu vulto maciço e silencioso perpassa, impreciso, por quase todos os recantos do quintal, numa muda pesquisa misteriosa.
Fora do quintal, além da estrada torta e deserta, brilha a derradeira lâmpada da cidade distante.
No alto do poste negro a luz derrama sua doce claridade para as coisas humildes e simples. O círculo de metal que a encima projeta a luminosidade para uma área que o capim esverdeado e poeirento delimita. Ali vivem um drama de atração imediata e trágica, besouros, mariposas, mosquitos, em voejo teimoso ao derredor do globo que guarda aquele fulgor de encantamento, deslumbrando a noite, revelando os movimentos dos animais pequeninos, aprisionados à sua magia perene e dos que andam e se arrastam no solo, igualmente seduzidos pelo poder radiante do clarão feiticeiro.
Fu é cliente da festa maravilhosa mais ofuscadora nos escurões do verão. Embriagados pela irradiação que lhes perturba o equilíbrio íntimo, besouros, mosquitos, mariposas tornam descendentes pela fadiga os círculos tornejantes ao bojo de vidro resplandecente, e ficam volteando, obstinados, tontos, ébrios, ao rés do chão, justamente ao alcance da bocarra de Fu que os apanha, incontáveis, passando-os da intensidade clara para as trevas do estômago.
Outros bufonídeos comparecem fascinados mas sem que percam o sentimento interior que os aproxima das presas cobiçadas. A linha circular dos grandes sapos imóveis representa um friso, onde o plano prosaico da alimentação completa a visão nas alturas dos voos lindos de insetos enamorados unicamente pela atração fulgurante da lâmpada solitária. Lá embaixo os parados cururus de imensos olhos materializam o nível terreno do utilitarismo, aproveitador incessante da luta desinteressada, nobre e superior dos alados Romeus da Julieta refulgente, inacessível e próxima. Quando a insistência do voejar ao redor do sonho cintilante esgota as reservas da resistência, vão decaindo, baixando, fiéis ao mesmo desenho movimentado mas em descensão insensível e contínua até o inferior onde ronca, cavernoso e rouco, o coro profundo dos cururus.
Ninguém concebe que aquela lâmpada destinada a iluminar o caminho seja cúmplice dos escuros sapos que se arrastam na penumbra, e como as formas leves, aladas e graciosas, feitas para a vida ao ar e à luz, livres e altas, fiquem palpitando nas mandíbulas espumantes dos cururus terrestres e enlameados.
Graças ao auxílio da luz ofuscadora, Fu pode deglutir mariposas de asas trêmulas e sonoras, transparentes e brancas como feitas de seda de ventarolas do Japão. Seriam destinadas a uma morte fulminante nos altos do céu, no encontro com um pássaro de penas luminosas, jamais à goela úmida, rubra e lôbrega de um batráquio rastejante. A cúmplice de Fu é a lâmpada solitária que clareia o fim da estrada silenciosa.
Não me interessa, olhando-o majestoso, soberbo, importante como um mandarim do Celeste Império, sua secularíssima tradição mágica na cultura do mundo, símbolo das fontes de água viva ou da vulva feminina, animal encantado, perturbador e sinistro, amigo fiel das feiticeiras e com elas queimado nas repressões aos sabbats sacrílegos.
Interessa-me perquirir dos segredos do sentimento humano da “simpatia”, as reservas irreveláveis de sua mecânica, a imprecisão do pronunciamento, as injustiças de sua fragrância funcional. Fu é o mais expressivo motivo para o solilóquio modesto.
Certo que a simpatia é sempre uma relação, concordância, interdependência de sentimentos, mesmo no raro quadro da previsão, da antecipação, da intuição, há uma base inconsciente de interesse no convívio. Esperemos uma retribuição ideal na simples oferta daquela amizade em potencial, possibilidade ampla para o futuro entendimento que o afeto consolidará. Mas este obscuro interesse inconsciente não credencia, na inicial, o halo de força atrativa que a simpatia determina. Todas as teorias de afinidades intelectivas e “átomos em gancho”, vinculadores da cadeia amistosa, são apenas esboços de explicações intelectuais para um sentimento imediato e poderoso em sua força indefinível e profunda.
Há mesmo a permanência simpática para elementos inúteis ou descuidados da reciprocidade humana. Há criaturas mais receptivas que irradiantes. Há os conhecidos devotos do venha-a-nós e serenamente esquecidos do o-vosso-reino. Aqueles cujas mãos exercitam o movimento único da contratação muscular no ato do recebimento e nunca a distensão generosa na doação, no oferecimento, na entrega. Mesmo assim, justificamos pela diversidade de temperamento, originalidade pessoal, mania de egoísmo desculpável, a retenção nas trocas que mantêm as amizades vulgares e comuns.
Intimamente, a base da simpatia é a utilidade. Utilidade secreta, recôndita, possivelmente jamais efetivada mas existente, viva, provável de ação exterior.
Não são, entretanto, os tipicamente simpáticos os que são funcionalmente úteis. A utilidade não inclui na escala dos valores recíprocos a simpatia. Há criaturas admiráveis, indispensavelmente úteis e inenarráveis, insuportavelmente antipáticas. Que chegamos a dispensar o auxílio generoso, oportuno, espontâneo, pela necessidade de afastá-las de nós, livrando-nos do invencível, injustificável, cruel constrangimento que suas pessoas provocam, despertando-nos misteriosa, ilógica, desumana repulsa. Vezes defeitos são elementos colaborantes para uma atração sedutora, inexplicável, poderosa. Há seres que debalde lutam para a conquista deste sentimento que entregamos, graciosamente, à primeira vista, a desconhecidos.
Aracnídeos e cobras despertam repugnância, asco, pavor instintivo. Raca, Licosa, Titius, Gô determinam movimentos inconscientes de afastamento, de defesa, de nojo. Fu consegue apenas ser antipático. A feiura de Niti ou de Sofia tem admiradores. Haloam-nos versões clássicas de lendas, sabedorias, presenças divinas de deuses que antigamente receberam tributos e fizeram milagres.
Quando se vê Sofia, grave, silenciosa, piscando os olhos familiares à deusa ateniense, há uma impressão vaga de que ao seu derredor “outrora retumbaram hinos”. Titius, Gô, Licosa, Raca chamam desejos de morte, de anulá-los, esmagando-lhes a vida agressiva, rebelde, indomável. Fu pede apenas a imagem de uma reação parcial que o faça sofrer. Não se pensa em matá-lo mas em dar-lhe sofrimento, tortura, humilhação. Não aparecem os valores úteis de sua voracidade indiretamente benéfica.
Vale, soberanamente, sua triste, grotesca, lamentável hediondez.
Fu, tomando-se em média uma boa noite de capturas abundantes, livrará o homem de cerca de quinze quilos mensais de insetos, vermes e mariposas. Não incomoda pelo canto porque a sua família, anfíbia mas eminentemente terrestre, é quase silenciosa, como deviam ser certos programas de rádio. Sua presença nos recintos iluminados é sempre uma perseguição aos inimigos comuns. Não está ali para perturbar a festa mas para livrá-la de adversários temíveis. No comum, enxota-se a Fu e os adversos voam e roem livremente. Esta liberdade explicar-se-á pelo tamanho dos perseguidos e pela ausência de concordância estética nas feições de Fu.
Assim, a simpatia é um sentimento provocado pela harmonia exterior do simpatizado. Nenhum outro elemento influi preliminarmente.
A tradição do sapo venenoso merecia pequena divulgação no tocante à sua periculosidade. Fu possui realmente peçonha, distribuída com inteligência pelo dorso, em bolsas, as duas maiores, as paratoides, atrás da cabeça, como inchações que lhe alteassem os ombros. Mas este veneno só pode ser projetado por compressão. É preciso que alguém comprima os sacos para que o veneno esguiche. São órgãos pura e totalmente defensivos. A prudência de Fu foi obter que, pela sua disposição, as glândulas segregadoras fiquem normalmente prontas a ejacular a peçonha dentro da boca do animal que o abocanhar. Se uma cobra morder Fu largá-lo-à imediatamente porque o veneno na mucosa é de penetração inconcebivelmente violenta. Via de regra a cobra morrerá, exceto se for a boipeva e congêneres, imunes por nossa infelicidade. Assim, arrisca-se um tanto quem agarrar Fu, apertando-o por coincidência nas paratoides, lugar próprio para ser apertado e decorrentemente sede natural da reação. Mas a pele é uma muralha respeitada pela peçonha de Fu. Para ação mais séria convém que a pele esteja dilacerada. Assim verificar-se-á contaminação. Para que alguém fique envenenado por Fu é indispensável prestar colaboração prévia e acentuadamente minuciosa ao pacatíssimo agressor. Para Fu tornar-se criminoso é lógico que a futura vítima ofereça generosamente todos os elementos de amável cumplicidade.
O veneno de Fu não lhe serve de arma de caça nem ofensiva. É semelhante às unhas do tamanduá-bandeira ou às cerdas do porco-espinho. Indispensável aproximar-se do animal e pôr-se em posição que lhe facilite o golpe. Doutra forma a peçonha de Fu é apenas de efeito moral. Veneno de sapo! Longe dele!…
Nunca me foi possível estudar de perto a fama hipnótica dos olhos de Fu. Seu olhar demorado e fixo parece-me, até prova expressa em contrário, mero e natural cuidado em acompanhar a possível presa em suas evoluções ou marcha descendente até o alcance do seu salto, salto lerdo para qualquer presa relativamente ágil. Já tenho presenciado o longo namoro de Fu com um coleóptero e a imobilidade promissora deste, deixando-o aproximar-se, com dignidade, até centímetros quando o besouro vai-se embora deixando Fu indignadíssimo. Parece que o aparelho fascinador estava descarregado.
Também não julgo extenso e satisfatório o conhecimento entomológico de Fu. Tenho-o visto abocanhar besouros e restituí-los depressa à liberdade, ficando de bocarra aberta, visivelmente arrependido da tentativa de deglutição. Dizem-me que ele, agarrando um potó-pimenta, fica uma hora babando de pura penitência ou delongada contrição por todos os pecados anteriores. Apesar de veterano (embora não tenha vinte ou trinta anos de idade) Fu ainda não distingue com segurança entre besouros facilmente assimiláveis e certos escaravelhos que não admitem promoção à classe dos acepipes. Estes enganos não constituem raridade. Têm sido até filmados, para descrédito da perspicácia de Fu.
Mistério é a sua fragmose. É o hábito de vedar a entrada da toca com seu próprio corpanzil. Emocional atitude para animal que possuísse e defendesse a fêmea e os filhos. Mas nem mesmo a ocasional e efêmera senhora Fu dá-se ao trabalho de criar a filharada. A fragmose deve ser vestígio de uma ação que se perdeu, uma sobrevivência nos costumes atuais do bufonídeo. Ato sem significação razoável na sua ecologia, inexplicável como fato iterativo. Posto de vigia será o primeiro agredido numa invasão. Pelo que me conste, Fu é inteiramente destituído de qualquer resquício de valentia. Nada tem a defender ou guardar, exceto a vida, e esta colocação é mais ostensiva ao ataque que reservada à defesa.
Não se trata de respiração. Fu respira pelos pulmões e tem mesmo um auxílio cutâneo para a operação. Respira como nós bebemos água, aos sorvos. Ele bebe, engole o ar. Será que a fragmose seja um simples processo de comodidade respiratória? Não é, evidentemente.
O cururu não conhece a fecundação interna e seu exagerado abraço apenas é auxílio, naturalmente indispensável e decisivo, para que a fêmea expulse os óvulos que ele fecunda externamente. Participa dos dois processos. O fato positiva sua antiguidade assombrosa mas não é documento nem possível dedução para a imagem sempre grata do sapo criando os filhos, alimentando-os, fazendo grupo amorável em companhia da esposa. A separação é logo a seguir à ejaculação fecundadora e os atos de união subsequentes têm o mesmo final desamoroso. Por que então Fu obedece a um misterioso instinto de guardar a entrada de sua toca solitária, defendendo-a com o próprio corpo? Para que esta famosa fragmose e qual sua origem? Fu conserva um majestoso silêncio relativo ao assunto.
Caiu a noite e o grilo estridula um canto insistente e alto. Fu abandona com solene lentidão sua toca, perto do tanque, e trejeita o andar canhestro e capenga na pista dos insetos viciados ao sacrifício.
O quiriri noturno sussurra nas mil vozes confusas e vagas, acordadas para a batalha nas trevas. Não caíram ainda as primeiras águas despertando a saparia barítona dos charcos. Os anuros foram os primeiros vertebrado a emitir som. Nas cartilagens formadoras da laringe há um par de dobras da parede interna valendo cordas vocais, rudimentares mas reconhecíveis e ainda sacos vocais que dilatam a pele externa da garganta, servindo de ressonadores. Tanto elogiam o grilo e a cigarra na classe dos cantores mas esquecem o sapo que, cronologicamente, iniciou a série produzindo não os ruídos rítmicos que poeticamente se tornaram “cantos” mas emissão vocal, som que nasceu da vibração de cordas especificamente destinadas a esta função. Não esperem concatenação e sequência rítmica, marcando um desenho melódico, primário e pobre. A cantiga do sapo não impressiona no conjunto mas algumas notas são puras e de beleza real. As notas profundas ressoam como os “graves” soltos de certos instrumentos de sopro e há nalguns as claridades matinais, agudas e transparentes, de flautim.
Impossível atinar-se por que e como o grande cururu imaginou e deduziu que a luz da lâmpada distante esteja atraindo, hoje muito mais do que ontem, os fiéis deslumbrados do seu vermelho clarão.
O vulto maciço, atlético, desajeitado, sombreia o bordo da calçada, passa o túnel de Gô, ladeia a goiabeira onde o canário dorme e, de um salto, pesado, vagaroso, seguro, mas com a decisão de um programa deliberado, transpõe a brecha do muro e some, dissipado, diluído no escuro da noite tropical.

Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro

Nenhum comentário:

Postar um comentário