O
pecado do sapo é a feiura.
Sentença
da velha Nicácia, cozinheira de meu pai
Fu
nasceu dentro de um dos 30 mil ovos que sua gorda e solene
progenitora largou na água tranquila da lagoa, ligados no mesmo
cordão albuminoide que se estirava em oito metros. Naturalmente os
hóspedes desta tira ovífera não resistiram todos. Nem a metade.
Para falar franco, nem um décimo e sim fração ainda apreciável
mas relativamente ínfima: – oito! É um grande, obeso, solene
cururu de vinte centímetros, mosqueado de negro e vermelho sobre
fundo gris. Parece que Velasquez limpou no seu dorso os pincéis com
as tintas habituais. A bocarra sem dentes alonga-se indefinida até
depois dos dois grandes, doces e lindos olhos cismadores. As patas
sólidas, robustas, arqueadas como braços de lutador, sustentam o
peso de mais de um quilo de orgulho, imponência e lentidão.
Tem
quase oito anos de idade e chegou à maioridade fisiológica apenas
há três. Dizem-no Bufo marinus e outros Bufo acqua,
mas Fu ignora estes apelidos inexpressivos. Mora no fundo do quintal,
debaixo de pedras perto do tanque, há bastante tempo.
Apenas
uma vez cada doze meses abandona a circunspecção natural e foge,
aos pulos, trôpego, desgracioso, risível, atraído pela orquestra
disfônica dos colegas que berram apelos amorosos nas margens da água
imóvel da lagoa próxima, além do campo. Pouco menos de uma hora de
percurso.
Lá
chegando, se inscreve na livre concorrência e entra com os altos
roucos coaxos prestigiosos na protofonia aliciadora das fêmeas,
seduzidas pela maravilha musical.
Disputa,
afastando os concorrentes com a solidez muscular, a posse das noivas,
elegendo a mais fornida e serena a quem abraça, pondo o ventre na
espalda da noiva, num amplexo que dura horas e horas, dentro da água
quieta e acolhedora.
Segura-a
fortemente pelas axilas, pondo à prova a tenacidade dos braços onde
há tensão de seiscentos gramas em cada um. Não fica o casal imóvel
no natural embevecimento da junção mas se desloca, aos saltos ou
passos arrastados e mesmo a desposada não recusa abocanhar alguma
coisa digna do seu apetite. Fu é que não larga a posição
conquistada e neste exercício de equitação sexual deixa o tempo
passar sem notação de maior.
Num
dado momento a esposa se adelgaça na expulsão dos fios ovíferos.
Fu irriga-os com seu esperma. Está feita a fecundação.
Ainda
parece muito próxima da ictiofauna mas Fu sabe que é um gozo sempre
que se expele algum líquido do organismo. Não lhe importa semelhar,
neste particular, aos peixes. O prazer compensa a pilhéria da
comparação. As núpcias podem durar semanas. Difícil é defender a
posse com a onda dos machos desocupados e aflitos pela ausência de
trabalho. Fu distribui coices e ameaça dentadas fictícias com sua
boca assombrosa mas destituída de armas positivas. O abraço em que
se funde, ciumentamente, garante-lhe a propriedade da escolhida.
Quando afrouxa os braços é para soltar-se de vez, o ingrato.
Regressa
no mesmo ritmo sincopado ao canto de muro de sua residência, junto
do tanque onde a bica escorre água triste duas vezes por dia e Dica,
aranha-d’água, passeia sua esbelteza solteirona, leve e sutil.
Os
filhos atravessarão os estágios remorados de girinos, caudados e
feios como pequenos monstros. Depois da forma larvar terão aspecto
do tipo racial e avançarão no aperfeiçoamento. Precisarão de
sessenta meses para o nível de adultos. Que diferença das filhas da
rainha Ata, trabalhando, já aptas e dinâmicas, com cinquenta dias
de nascidas!…
Que
tem Fu com estes problemas? Cumpriu sua missão. Não lhe compete
tarefa alheia àquela que realizou com precisão e segurança.
Voltou
à sua mansão, às pedras, junto do tanque melancólico onde uma
velha folha boia, em giros concêntricos, ao empurro da corrente
mansa e limitada.
Como
todo réptil, adora a penumbra, o recolhimento silencioso nas horas
de calor, balbúrdia e tumulto na excitação luminosa do
encandeamento solar. Agachado, ventre na altura do solo, batendo o
papo mole, semicerrando os olhos luminosos, lentus in umbra, deixa o
dia morrer…
Com
o anoitecer vai à caça com majestade. Fixa inicialmente os lugares
táticos para a subsequente ação estratégica. Não gasta energias
numa perseguição inútil ou parcialmente proveitosa. Escolhe os
centros de interesse, encruzilhadas, pontos preferidos pela caça
onde aguarda a presença com um ar de quem preside o parlamento.
Raros
atinaram com a inteligência bufonídea e ninguém jamais apresentou
o cururu como exemplo de atividade útil. Curioso é verificar que
ele não perde, ou perde em proporção mínima, seus pulos e não há
menção de haver-se enganado na exata situação do miradouro
caçador. Para nossa perspicácia finória não há dedução
justificativa de Fu permanecer em determinados sítios aparentemente
vazios de interesses vitais. São exatamente estes os melhores e mais
abundantes escoadores de caça viva, voante e rápida, no nível
aquisitivo do salto e da bocarra aberta e glutona.
Vermes
preguiçosos, larvas ondulantes, insetos atrevidos são os manjares
do cardápio habitual. Não os podendo mastigar, engolindo duma vez,
cabe-lhe direito da escolha no tocante à sua consistência, sabor e
maciez. Raríssimas vezes a bocanhada é enganosa. Vezes, sucede, o
besouro é demasiado áspero e armado com excrescências agressivas
que impossibilitam uma assimilação delicada e subitânea. Fu
expele-os pedindo mudamente desculpas pelo erro técnico. Lá um ou
outro coleóptero, indignado com a tomadia total na própria boca de
Fu, fere-a forte e fero, obrigando-o à restituição imediata,
babado e íntegro. Os momentos mais intensos são os do encontro com
as nuvens espessas de mosquitos ou moscas noturnas que esvoaçam, num
bailado sem fim, num volteio consciente, de ordem estética
incompreensível, num só recanto, ascendendo e descendendo, numa
voluta espiralada como onda densa de fumo. Num lado, calculadamente
imóvel onde uma voluta descreve sua volta leve, Fu saboreia, em
bocanhadas sucessivas, miríades que valem como liliputianas frações
de carne viva.
Com
o leve esfriar da madrugada é que Fu em passo trejeitado e contínuo
regressa ao lar. De volta ainda apanha um ou outro besouro erradio e
boêmio. Jamais pende para o lado do mamoeiro, das árvores perto da
velha calçada porque aí reside a ondulante elegância famélica de
Raca, a jararaca flexível e passeadeira noturna.
Nestas
horas escuras seu vulto maciço e silencioso perpassa, impreciso, por
quase todos os recantos do quintal, numa muda pesquisa misteriosa.
Fora
do quintal, além da estrada torta e deserta, brilha a derradeira
lâmpada da cidade distante.
No
alto do poste negro a luz derrama sua doce claridade para as coisas
humildes e simples. O círculo de metal que a encima projeta a
luminosidade para uma área que o capim esverdeado e poeirento
delimita. Ali vivem um drama de atração imediata e trágica,
besouros, mariposas, mosquitos, em voejo teimoso ao derredor do globo
que guarda aquele fulgor de encantamento, deslumbrando a noite,
revelando os movimentos dos animais pequeninos, aprisionados à sua
magia perene e dos que andam e se arrastam no solo, igualmente
seduzidos pelo poder radiante do clarão feiticeiro.
Fu
é cliente da festa maravilhosa mais ofuscadora nos escurões do
verão. Embriagados pela irradiação que lhes perturba o equilíbrio
íntimo, besouros, mosquitos, mariposas tornam descendentes pela
fadiga os círculos tornejantes ao bojo de vidro resplandecente, e
ficam volteando, obstinados, tontos, ébrios, ao rés do chão,
justamente ao alcance da bocarra de Fu que os apanha, incontáveis,
passando-os da intensidade clara para as trevas do estômago.
Outros
bufonídeos comparecem fascinados mas sem que percam o sentimento
interior que os aproxima das presas cobiçadas. A linha circular dos
grandes sapos imóveis representa um friso, onde o plano prosaico da
alimentação completa a visão nas alturas dos voos lindos de
insetos enamorados unicamente pela atração fulgurante da lâmpada
solitária. Lá embaixo os parados cururus de imensos olhos
materializam o nível terreno do utilitarismo, aproveitador
incessante da luta desinteressada, nobre e superior dos alados Romeus
da Julieta refulgente, inacessível e próxima. Quando a insistência
do voejar ao redor do sonho cintilante esgota as reservas da
resistência, vão decaindo, baixando, fiéis ao mesmo desenho
movimentado mas em descensão insensível e contínua até o inferior
onde ronca, cavernoso e rouco, o coro profundo dos cururus.
Ninguém
concebe que aquela lâmpada destinada a iluminar o caminho seja
cúmplice dos escuros sapos que se arrastam na penumbra, e como as
formas leves, aladas e graciosas, feitas para a vida ao ar e à luz,
livres e altas, fiquem palpitando nas mandíbulas espumantes dos
cururus terrestres e enlameados.
Graças
ao auxílio da luz ofuscadora, Fu pode deglutir mariposas de asas
trêmulas e sonoras, transparentes e brancas como feitas de seda de
ventarolas do Japão. Seriam destinadas a uma morte fulminante nos
altos do céu, no encontro com um pássaro de penas luminosas, jamais
à goela úmida, rubra e lôbrega de um batráquio rastejante. A
cúmplice de Fu é a lâmpada solitária que clareia o fim da estrada
silenciosa.
Não
me interessa, olhando-o majestoso, soberbo, importante como um
mandarim do Celeste Império, sua secularíssima tradição mágica
na cultura do mundo, símbolo das fontes de água viva ou da vulva
feminina, animal encantado, perturbador e sinistro, amigo fiel das
feiticeiras e com elas queimado nas repressões aos sabbats
sacrílegos.
Interessa-me
perquirir dos segredos do sentimento humano da “simpatia”, as
reservas irreveláveis de sua mecânica, a imprecisão do
pronunciamento, as injustiças de sua fragrância funcional. Fu é o
mais expressivo motivo para o solilóquio modesto.
Certo
que a simpatia é sempre uma relação, concordância,
interdependência de sentimentos, mesmo no raro quadro da previsão,
da antecipação, da intuição, há uma base inconsciente de
interesse no convívio. Esperemos uma retribuição ideal na simples
oferta daquela amizade em potencial, possibilidade ampla para o
futuro entendimento que o afeto consolidará. Mas este obscuro
interesse inconsciente não credencia, na inicial, o halo de força
atrativa que a simpatia determina. Todas as teorias de afinidades
intelectivas e “átomos em gancho”, vinculadores da cadeia
amistosa, são apenas esboços de explicações intelectuais para um
sentimento imediato e poderoso em sua força indefinível e profunda.
Há
mesmo a permanência simpática para elementos inúteis ou
descuidados da reciprocidade humana. Há criaturas mais receptivas
que irradiantes. Há os conhecidos devotos do venha-a-nós e
serenamente esquecidos do o-vosso-reino. Aqueles cujas mãos
exercitam o movimento único da contratação muscular no ato do
recebimento e nunca a distensão generosa na doação, no
oferecimento, na entrega. Mesmo assim, justificamos pela diversidade
de temperamento, originalidade pessoal, mania de egoísmo
desculpável, a retenção nas trocas que mantêm as amizades
vulgares e comuns.
Intimamente,
a base da simpatia é a utilidade. Utilidade secreta, recôndita,
possivelmente jamais efetivada mas existente, viva, provável de ação
exterior.
Não
são, entretanto, os tipicamente simpáticos os que são
funcionalmente úteis. A utilidade não inclui na escala dos valores
recíprocos a simpatia. Há criaturas admiráveis, indispensavelmente
úteis e inenarráveis, insuportavelmente antipáticas. Que chegamos
a dispensar o auxílio generoso, oportuno, espontâneo, pela
necessidade de afastá-las de nós, livrando-nos do invencível,
injustificável, cruel constrangimento que suas pessoas provocam,
despertando-nos misteriosa, ilógica, desumana repulsa. Vezes
defeitos são elementos colaborantes para uma atração sedutora,
inexplicável, poderosa. Há seres que debalde lutam para a conquista
deste sentimento que entregamos, graciosamente, à primeira vista, a
desconhecidos.
Aracnídeos
e cobras despertam repugnância, asco, pavor instintivo. Raca,
Licosa, Titius, Gô determinam movimentos inconscientes de
afastamento, de defesa, de nojo. Fu consegue apenas ser antipático.
A feiura de Niti ou de Sofia tem admiradores. Haloam-nos versões
clássicas de lendas, sabedorias, presenças divinas de deuses que
antigamente receberam tributos e fizeram milagres.
Quando
se vê Sofia, grave, silenciosa, piscando os olhos familiares à
deusa ateniense, há uma impressão vaga de que ao seu derredor
“outrora retumbaram hinos”. Titius, Gô, Licosa, Raca chamam
desejos de morte, de anulá-los, esmagando-lhes a vida agressiva,
rebelde, indomável. Fu pede apenas a imagem de uma reação parcial
que o faça sofrer. Não se pensa em matá-lo mas em dar-lhe
sofrimento, tortura, humilhação. Não aparecem os valores úteis de
sua voracidade indiretamente benéfica.
Vale,
soberanamente, sua triste, grotesca, lamentável hediondez.
Fu,
tomando-se em média uma boa noite de capturas abundantes, livrará o
homem de cerca de quinze quilos mensais de insetos, vermes e
mariposas. Não incomoda pelo canto porque a sua família, anfíbia
mas eminentemente terrestre, é quase silenciosa, como deviam ser
certos programas de rádio. Sua presença nos recintos iluminados é
sempre uma perseguição aos inimigos comuns. Não está ali para
perturbar a festa mas para livrá-la de adversários temíveis. No
comum, enxota-se a Fu e os adversos voam e roem livremente. Esta
liberdade explicar-se-á pelo tamanho dos perseguidos e pela ausência
de concordância estética nas feições de Fu.
Assim,
a simpatia é um sentimento provocado pela harmonia exterior do
simpatizado. Nenhum outro elemento influi preliminarmente.
A
tradição do sapo venenoso merecia pequena divulgação no tocante à
sua periculosidade. Fu possui realmente peçonha, distribuída com
inteligência pelo dorso, em bolsas, as duas maiores, as paratoides,
atrás da cabeça, como inchações que lhe alteassem os ombros. Mas
este veneno só pode ser projetado por compressão. É preciso que
alguém comprima os sacos para que o veneno esguiche. São órgãos
pura e totalmente defensivos. A prudência de Fu foi obter que, pela
sua disposição, as glândulas segregadoras fiquem normalmente
prontas a ejacular a peçonha dentro da boca do animal que o
abocanhar. Se uma cobra morder Fu largá-lo-à imediatamente porque o
veneno na mucosa é de penetração inconcebivelmente violenta. Via
de regra a cobra morrerá, exceto se for a boipeva e congêneres,
imunes por nossa infelicidade. Assim, arrisca-se um tanto quem
agarrar Fu, apertando-o por coincidência nas paratoides, lugar
próprio para ser apertado e decorrentemente sede natural da reação.
Mas a pele é uma muralha respeitada pela peçonha de Fu. Para ação
mais séria convém que a pele esteja dilacerada. Assim
verificar-se-á contaminação. Para que alguém fique envenenado por
Fu é indispensável prestar colaboração prévia e acentuadamente
minuciosa ao pacatíssimo agressor. Para Fu tornar-se criminoso é
lógico que a futura vítima ofereça generosamente todos os
elementos de amável cumplicidade.
O
veneno de Fu não lhe serve de arma de caça nem ofensiva. É
semelhante às unhas do tamanduá-bandeira ou às cerdas do
porco-espinho. Indispensável aproximar-se do animal e pôr-se em
posição que lhe facilite o golpe. Doutra forma a peçonha de Fu é
apenas de efeito moral. Veneno de sapo! Longe dele!…
Nunca
me foi possível estudar de perto a fama hipnótica dos olhos de Fu.
Seu olhar demorado e fixo parece-me, até prova expressa em
contrário, mero e natural cuidado em acompanhar a possível presa em
suas evoluções ou marcha descendente até o alcance do seu salto,
salto lerdo para qualquer presa relativamente ágil. Já tenho
presenciado o longo namoro de Fu com um coleóptero e a imobilidade
promissora deste, deixando-o aproximar-se, com dignidade, até
centímetros quando o besouro vai-se embora deixando Fu
indignadíssimo. Parece que o aparelho fascinador estava
descarregado.
Também
não julgo extenso e satisfatório o conhecimento entomológico de
Fu. Tenho-o visto abocanhar besouros e restituí-los depressa à
liberdade, ficando de bocarra aberta, visivelmente arrependido da
tentativa de deglutição. Dizem-me que ele, agarrando um
potó-pimenta, fica uma hora babando de pura penitência ou delongada
contrição por todos os pecados anteriores. Apesar de veterano
(embora não tenha vinte ou trinta anos de idade) Fu ainda não
distingue com segurança entre besouros facilmente assimiláveis e
certos escaravelhos que não admitem promoção à classe dos
acepipes. Estes enganos não constituem raridade. Têm sido até
filmados, para descrédito da perspicácia de Fu.
Mistério
é a sua fragmose. É o hábito de vedar a entrada da toca com seu
próprio corpanzil. Emocional atitude para animal que possuísse e
defendesse a fêmea e os filhos. Mas nem mesmo a ocasional e efêmera
senhora Fu dá-se ao trabalho de criar a filharada. A fragmose deve
ser vestígio de uma ação que se perdeu, uma sobrevivência nos
costumes atuais do bufonídeo. Ato sem significação razoável na
sua ecologia, inexplicável como fato iterativo. Posto de vigia será
o primeiro agredido numa invasão. Pelo que me conste, Fu é
inteiramente destituído de qualquer resquício de valentia. Nada tem
a defender ou guardar, exceto a vida, e esta colocação é mais
ostensiva ao ataque que reservada à defesa.
Não
se trata de respiração. Fu respira pelos pulmões e tem mesmo um
auxílio cutâneo para a operação. Respira como nós bebemos água,
aos sorvos. Ele bebe, engole o ar. Será que a fragmose seja um
simples processo de comodidade respiratória? Não é, evidentemente.
O
cururu não conhece a fecundação interna e seu exagerado abraço
apenas é auxílio, naturalmente indispensável e decisivo, para que
a fêmea expulse os óvulos que ele fecunda externamente. Participa
dos dois processos. O fato positiva sua antiguidade assombrosa mas
não é documento nem possível dedução para a imagem sempre grata
do sapo criando os filhos, alimentando-os, fazendo grupo amorável em
companhia da esposa. A separação é logo a seguir à ejaculação
fecundadora e os atos de união subsequentes têm o mesmo final
desamoroso. Por que então Fu obedece a um misterioso instinto de
guardar a entrada de sua toca solitária, defendendo-a com o próprio
corpo? Para que esta famosa fragmose e qual sua origem? Fu conserva
um majestoso silêncio relativo ao assunto.
Caiu
a noite e o grilo estridula um canto insistente e alto. Fu abandona
com solene lentidão sua toca, perto do tanque, e trejeita o andar
canhestro e capenga na pista dos insetos viciados ao sacrifício.
O
quiriri noturno sussurra nas mil vozes confusas e vagas, acordadas
para a batalha nas trevas. Não caíram ainda as primeiras águas
despertando a saparia barítona dos charcos. Os anuros foram os
primeiros vertebrado a emitir som. Nas cartilagens formadoras da
laringe há um par de dobras da parede interna valendo cordas vocais,
rudimentares mas reconhecíveis e ainda sacos vocais que dilatam a
pele externa da garganta, servindo de ressonadores. Tanto elogiam o
grilo e a cigarra na classe dos cantores mas esquecem o sapo que,
cronologicamente, iniciou a série produzindo não os ruídos
rítmicos que poeticamente se tornaram “cantos” mas emissão
vocal, som que nasceu da vibração de cordas especificamente
destinadas a esta função. Não esperem concatenação e sequência
rítmica, marcando um desenho melódico, primário e pobre. A cantiga
do sapo não impressiona no conjunto mas algumas notas são puras e
de beleza real. As notas profundas ressoam como os “graves”
soltos de certos instrumentos de sopro e há nalguns as claridades
matinais, agudas e transparentes, de flautim.
Impossível
atinar-se por que e como o grande cururu imaginou e deduziu que a luz
da lâmpada distante esteja atraindo, hoje muito mais do que ontem,
os fiéis deslumbrados do seu vermelho clarão.
O
vulto maciço, atlético, desajeitado, sombreia o bordo da calçada,
passa o túnel de Gô, ladeia a goiabeira onde o canário dorme e, de
um salto, pesado, vagaroso, seguro, mas com a decisão de um programa
deliberado, transpõe a brecha do muro e some, dissipado, diluído no
escuro da noite tropical.
Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro
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