Penélope
atravessou mundos, e Clay atravessou a cerca:
Ele
cruzou a pequena via entre as Cercanias e a nossa casa, onde as ripas
de madeira adquiriram um tom cinza, fantasmagórico. Naquela época,
tínhamos uma portinhola de madeira para o Aquiles — ou melhor,
para Tommy entrar e sair com ele. No quintal, ele agradeceu por não
ter que pular; manhãs-seguintes eram naturalmente terríveis, e os
instantes a seguir seriam cruciais:
Primeiro,
ele passou pelo caminho sinuoso de maçãs deixado pela mula.
Depois,
pelo labirinto de merda de cachorro.
Ambos
os réus ainda estavam dormindo; um deles, empertigado na grama, o
outro, estirado no sofá da varanda dos fundos. Lá dentro, a cozinha
cheirava a café — fui mais rápido que ele, pelo visto em muitos
sentidos. Então foi a vez de Clay entrar no meu compasso.
***
Como
de costume, eu estava tomando café da manhã na varanda.
Estava
apoiado no corrimão de madeira, sob o céu quente e com o cereal
frio. Os postes ainda estavam acesos. A caixa de correio de Rory
jazia na grama.
Quando
Clay abriu a porta da frente e parou a poucos passos de mim,
continuei comendo o cereal até acabar.
— Meu
Deus! Mais uma caixa de correio?
Clay
sorriu, um sorriso nervoso, senti, mas minha cordialidade se limitava
a isso. Afinal, o endereço estava no bolso dele; remendei da melhor
forma que pude.
No
início, não me mexi.
— E
aí? Tá com você? — perguntei.
De
novo, percebi que ele assentiu.
— Pensei
em poupar você do trabalho de procurar.
Minha
colher tilintou na cumbuca.
Algumas
gotas de leite respingaram no corrimão.
— Tá
no seu bolso?
Outro
aceno.
— Você
tá pensando em ir?
Clay
me observava.
Ele
me observava sem dizer nada, ao passo que eu tentava, de alguma
forma, entendê-lo, esforço que era constante naquela época. Éramos
bem parecidos fisicamente, mas eu era uns quinze centímetros mais
alto. Meu cabelo era mais cheio, e meu corpo também, mas era questão
de idade. Enquanto eu trabalhava agachado em carpetes, assoalhos e
concreto todo dia, Clay ia para a escola e corria. Seguia uma série
rigorosa de abdominais e flexões, e tinha o corpo rijo, firme e
definido. Acho que dá para dizer que éramos diferentes versões da
mesma coisa, e nossos olhos eram prova disso. Tínhamos fogo nos
olhos, e não importava de que cor eram, porque o fogo sobressaía.
No
meio disso tudo, eu sorri, e foi doloroso.
Balancei
a cabeça.
Os
postes piscaram.
Perguntei
o que era preciso perguntar.
E
estava prestes a dizer o que era preciso ser dito.
***
O
céu se abriu, a casa se fechou.
Não
me aproximei, não apontei o dedo, não intimidei.
Só
falei:
— Clay.
Depois,
ele me contou que foi aquilo que o irritou.
A
paz do momento.
Em
meio àquela atmosfera estranhamente doce, ele pagou o preço. Algo o
invadiu, preenchendo sua garganta, esterno, pulmões, e amanheceu por
completo na rua. Do outro lado, as casas permaneciam irregulares e
silenciosas, feito uma gangue de arruaceiros, só esperando meu
comando. Mas nós dois sabíamos que eu não precisaria de ninguém.
Após
alguns segundos, me afastei do corrimão e com o olhar depositei o
peso do meu desprezo em seus
ombros. Eu poderia perguntar da escola. E a escola? Mas nós dois
sabíamos a resposta. E que direito tinha eu de pedir que ele ficasse
na escola? Justo eu, que também tinha largado antes de me formar.
— Pode
ir. Não tenho como impedir, mas...
E
o resto se desfez.
Uma
sentença tão difícil quanto a própria tarefa… E, no fim das
contas, esta era a verdade:
Quem
ia tinha que voltar.
Quem
cometia o crime tinha que enfrentar a punição.
Voltar
e voltar para casa:
Duas
coisas diferentes.
Ele
podia ir embora da rua Archer e trocar os irmãos pelo homem que nos
abandonou — mas voltar para casa significava me enfrentar.
— É
uma grande decisão — falei, mais direto dessa vez, cara a cara,
não mais olhando para seus ombros. Fiz mais do que falar, mencionei
as palavras. — E, se não estou enganado, tem uma grande
consequência.
Primeiro
Clay olhou para mim, depois para longe.
Reconheceu
meus punhos endurecidos pelo trabalho, minhas mãos, meus braços, a
jugular no meu pescoço. Percebeu a relutância dos nós dos meus
dedos, apesar da vontade de ir até o fim. Mas, acima de tudo, ele
viu o fogo em meus olhos, implorando:
Não
nos deixe por ele, Clay.
Não
nos deixe.
Mas
caso você vá.
***
O
fato é que, hoje, já aceitei.
Clay
sabia que precisava fazer aquilo. Só não estava certo de que
conseguiria.
Entrei
em casa, e ele ainda ficou lá fora um tempo, ancorado na varanda
pelo peso de sua escolha. Afinal, eu nem tinha conseguido pronunciar
minha promessa. Qual era a pior coisa que poderia acontecer com um
garoto Dunbar, afinal?
Para
Clay, isso estava claro, e havia razões para partir, e razões para
ficar, e eram basicamente as mesmas. Ele estava preso em um ponto no
meio do processo — de destruir tudo que tinha para se tornar o que
precisava ser —, e o passado, cada vez mais próximo, pesava nas
suas costas.
Parado
na rua Archer, à espreita.
Markus Zusak, in O construtor de pontes
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