quinta-feira, 9 de novembro de 2023

O algoz no bolso



Penélope atravessou mundos, e Clay atravessou a cerca:
Ele cruzou a pequena via entre as Cercanias e a nossa casa, onde as ripas de madeira adquiriram um tom cinza, fantasmagórico. Naquela época, tínhamos uma portinhola de madeira para o Aquiles — ou melhor, para Tommy entrar e sair com ele. No quintal, ele agradeceu por não ter que pular; manhãs-seguintes eram naturalmente terríveis, e os instantes a seguir seriam cruciais:
Primeiro, ele passou pelo caminho sinuoso de maçãs deixado pela mula.
Depois, pelo labirinto de merda de cachorro.
Ambos os réus ainda estavam dormindo; um deles, empertigado na grama, o outro, estirado no sofá da varanda dos fundos. Lá dentro, a cozinha cheirava a café — fui mais rápido que ele, pelo visto em muitos sentidos. Então foi a vez de Clay entrar no meu compasso.

***

Como de costume, eu estava tomando café da manhã na varanda.
Estava apoiado no corrimão de madeira, sob o céu quente e com o cereal frio. Os postes ainda estavam acesos. A caixa de correio de Rory jazia na grama.
Quando Clay abriu a porta da frente e parou a poucos passos de mim, continuei comendo o cereal até acabar.
Meu Deus! Mais uma caixa de correio?
Clay sorriu, um sorriso nervoso, senti, mas minha cordialidade se limitava a isso. Afinal, o endereço estava no bolso dele; remendei da melhor forma que pude.
No início, não me mexi.
E aí? Tá com você? — perguntei.
De novo, percebi que ele assentiu.
Pensei em poupar você do trabalho de procurar.
Minha colher tilintou na cumbuca.
Algumas gotas de leite respingaram no corrimão.
Tá no seu bolso?
Outro aceno.
Você tá pensando em ir?
Clay me observava.
Ele me observava sem dizer nada, ao passo que eu tentava, de alguma forma, entendê-lo, esforço que era constante naquela época. Éramos bem parecidos fisicamente, mas eu era uns quinze centímetros mais alto. Meu cabelo era mais cheio, e meu corpo também, mas era questão de idade. Enquanto eu trabalhava agachado em carpetes, assoalhos e concreto todo dia, Clay ia para a escola e corria. Seguia uma série rigorosa de abdominais e flexões, e tinha o corpo rijo, firme e definido. Acho que dá para dizer que éramos diferentes versões da mesma coisa, e nossos olhos eram prova disso. Tínhamos fogo nos olhos, e não importava de que cor eram, porque o fogo sobressaía.
No meio disso tudo, eu sorri, e foi doloroso.
Balancei a cabeça.
Os postes piscaram.
Perguntei o que era preciso perguntar.
E estava prestes a dizer o que era preciso ser dito.

***

O céu se abriu, a casa se fechou.
Não me aproximei, não apontei o dedo, não intimidei.
Só falei:
Clay.
Depois, ele me contou que foi aquilo que o irritou.
A paz do momento.
Em meio àquela atmosfera estranhamente doce, ele pagou o preço. Algo o invadiu, preenchendo sua garganta, esterno, pulmões, e amanheceu por completo na rua. Do outro lado, as casas permaneciam irregulares e silenciosas, feito uma gangue de arruaceiros, só esperando meu comando. Mas nós dois sabíamos que eu não precisaria de ninguém.
Após alguns segundos, me afastei do corrimão e com o olhar depositei o peso do meu desprezo em seus ombros. Eu poderia perguntar da escola. E a escola? Mas nós dois sabíamos a resposta. E que direito tinha eu de pedir que ele ficasse na escola? Justo eu, que também tinha largado antes de me formar.
Pode ir. Não tenho como impedir, mas...
E o resto se desfez.
Uma sentença tão difícil quanto a própria tarefa… E, no fim das contas, esta era a verdade:
Quem ia tinha que voltar.
Quem cometia o crime tinha que enfrentar a punição.
Voltar e voltar para casa:
Duas coisas diferentes.
Ele podia ir embora da rua Archer e trocar os irmãos pelo homem que nos abandonou — mas voltar para casa significava me enfrentar.
É uma grande decisão — falei, mais direto dessa vez, cara a cara, não mais olhando para seus ombros. Fiz mais do que falar, mencionei as palavras. — E, se não estou enganado, tem uma grande consequência.
Primeiro Clay olhou para mim, depois para longe.
Reconheceu meus punhos endurecidos pelo trabalho, minhas mãos, meus braços, a jugular no meu pescoço. Percebeu a relutância dos nós dos meus dedos, apesar da vontade de ir até o fim. Mas, acima de tudo, ele viu o fogo em meus olhos, implorando:
Não nos deixe por ele, Clay.
Não nos deixe.
Mas caso você vá.

***

O fato é que, hoje, já aceitei.
Clay sabia que precisava fazer aquilo. Só não estava certo de que conseguiria.
Entrei em casa, e ele ainda ficou lá fora um tempo, ancorado na varanda pelo peso de sua escolha. Afinal, eu nem tinha conseguido pronunciar minha promessa. Qual era a pior coisa que poderia acontecer com um garoto Dunbar, afinal?
Para Clay, isso estava claro, e havia razões para partir, e razões para ficar, e eram basicamente as mesmas. Ele estava preso em um ponto no meio do processo — de destruir tudo que tinha para se tornar o que precisava ser —, e o passado, cada vez mais próximo, pesava nas suas costas.
Parado na rua Archer, à espreita.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

Nenhum comentário:

Postar um comentário