– Esta
– se disse o homem como se fosse para uma guerra – esta é a
minha prece do possesso. Estou conhecendo o inferno da paixão. Não
sei que nome dar ao que me toma ou ao que estou com voracidade
tomando senão o de paixão. O que é isso que é tão violento que
me faz pedir clemência a mim mesmo? É a vontade de destruir como se
para este momento de destruir eu tivesse nascido. Momento que virá
ou não. A minha escolha depende de eu poder ou não me ouvir. Deus
ouve, mas eu ouvirei? A força de destruição ainda se contém um
instante em mim. Não posso destruir ninguém ou nada pois a piedade
me é tão forte como a ira. Então quero destruir a mim – que sou
a fonte da paixão. Não quero pedir a Deus que me aplaque, mas amo
tanto a Deus que tenho medo de tocar nele com o meu pedido. Meu
pedido queima. Minha própria prece é perigosa de tão ardente e
poderia destruir em mim a imagem de Deus, que ainda quero salvar em
mim. No entanto só a Ele eu poderia pedir que pusesse a mão sobre
mim e arriscasse queimar a dele. Não me atendas porque meu pedido é
tão violento que me atemoriza. Mas a quem pedir – neste rápido
instante de trégua – se já afastei os homens? Afastei os homens.
Fui fechando as doçuras de minha natureza a cada golpe que recebia e
as doçuras negadas foram se enegrecendo como nuvens simples que vão
se fechando em escuridão e eu abaixo a cabeça à tempestade. Como
seria a ira divina se esta minha me deixa cega de força total? Se
esta cólera só destruísse a mim. Mas tenho de proteger os outros –
os outros têm sido a fonte de minha esperança. Que faço para não
usar esta onipotência que me toma? O que me direi eu? Senão a
verdade. Senão a verdade. Só outra coisa eu conheci tão total e
cega e forte como esta minha vontade de me espojar na violência: a
doçura da compaixão. Só isto ainda posso tentar pôr no outro
prato da balança – pois no primeiro prato estão o sangue e o ódio
ao sangue que dói. Que estou querendo? Quero que a cada uma de
minhas dores corresponda hoje e agora um ato de cólera.
Mas
eu sei o que foram as minhas dores. A cólera é fácil expô-la. Mas
a dor – esta me envergonhava. Porque minha dor vem de que não saí
feliz de meus outros pecados mortais. Minha violência – que é em
carne viva e só quer como pasto a carne viva – esta violência vem
de que outras violências vitais minhas foram esmagadas. Minhas
outras violências pecadoras que se pareciam tanto com um direito
meu. No começo elas se pareciam tanto com minhas maiores suavidades.
Eu tinha nascido simplesmente e também simplesmente quis ir tomando
para mim o que queria. E a cada vez que não podia e a cada vez que
era proibido, a cada vez que me negavam eu sorria e pensava que era
um manso sorriso de resignação. Mas era a dor que se mascarava em
bondade. Eu sabia que era dor errada diante de Deus – e pior diante
de mim – quem quer que eu seja. Cada vez que meus pecados não
venciam, eu sofria mas sem me sentir com direito de sofrer e tinha de
esconder não apenas a dor. O que estava sendo pisado em mim? na
minha verdade de outrora o que estava sendo pisado em mim? Os pecados
mortais.
Os
pecados mortais clamavam em mim por mais vida. Clamavam com vergonha.
Os pecados mortais em mim pediam o direito de viver. Minha gula pelo
mundo: eu quis comer o mundo e a fome com que nasci pelo leite –
esta fome quis se estender pelo mundo e o mundo não se queria
comível. Ele se queria comível sim – mas para isso exigia que eu
fosse comê-lo com a humildade com que ele se dava. Mas fome violenta
é exigente e orgulhosa. E quando se vai com orgulho e exigência o
mundo se transmuta em duro aos dentes e à alma. O mundo só se dá
para os simples e eu fui comê-lo com o meu poder e já com esta
cólera que hoje me resume. E quando o pão se virou em pedra e ouro
aos meus dentes eu fingi por orgulho que não doía, eu pensava que
fingir força era o caminho nobre de um homem e o caminho da própria
força. Eu pensava que a força é o material de que o mundo é feito
e era com o mesmo material que eu iria a ele. E depois foi quando o
amor pelo mundo me tomou: e isso já não era a fome pequena, era a
fome ampliada. Era a grande alegria de viver – e eu pensava que
esta sim, é livre. Mas como foi que transformei sem nem sentir a
alegria de viver na grande luxúria de estar vivo? No entanto no
começo era apenas bom e não era pecado. Era um amor pelo mundo
quando o céu e a terra são de madrugada, e os olhos ainda sabem ser
tenros. Mas eis que minha natureza de repente me assassinava, e já
não era uma doçura de amor pelo mundo: era uma avidez de luxúria
pelo mundo. E o mundo de novo se retraiu e a isso chamei de traição.
A luxúria de estar vivo me espantava na minha insônia sem eu
entender que a noite do mundo e a noite do viver são tão doces que
até se dorme. Que até se dorme, meu Deus. E a água – na minha
luxúria de viver – a água se derramava pelos dedos antes de
chegar à boca. E eu amava o outro ser com a luxúria de quem quer
salvar e ser salvo pela alegria. Eu não sabia que só o meio-termo
não é pecado mortal. Eu tinha vergonha do meio-termo. Os pecados
são mortais não porque Deus mata, mas porque eu morro deles. Eu é
que não pude arcar com os pecados mortais. O que não consegui com
eles é isto o que hoje me violenta e a que respondo com violência.
Os meus pobres meios canhestros não me conseguiram nem terra nem céu
e a fúria me toma. Ah mas se por um instante eu entender que a fúria
é contra os meus erros e não contra os dos outros – então esta
cólera se transformará nas minhas mãos em flores. Em flores e em
coisas leves e em amor. Eu ainda não sei controlar meu ódio mas já
sei que meu ódio é um amor irrealizado e meu ódio é uma vida
ainda nunca vivida. Pois vivi tudo – menos a vida. E é isto o que
não perdoo em mim e como não suporto não me perdoar então não
perdoo os outros. A este ponto cheguei: como não consegui a vida
quero matá-la. A minha cólera – que é ela senão reivindicação?
– a minha cólera – eu tenho que saber neste minuto raro de
escolha – a minha cólera é o verso de meu amor. Se eu quiser
escolher finalmente me entregar sem orgulho à doçura do mundo então
chamarei minha ira de amor. Tanto temi jurar-me para sempre com esta
primeira palavra que mal ouso pronunciar (amor) que fugi para a
violência e para os olhos ensanguentados da paixão. Tudo, mas tudo
por medo de me prostrar aos teus pés e aos pés anônimos do outro
que sempre Te representou. Que rei sou eu que não se curva? Tenho de
escolher entre a quebra do orgulho e o amor-correnteza da ignorância
e da doçura. A minha verdade antiga ainda me serve? Deus proibiu os
sete pecados não por exigência de perfeição, mas apenas por
piedade de nós. De mim que como os outros também tento não ser
dele e tento não ser dos outros. Eu sei que os outros são Ele.
Neste instante tenho de escolher entre amar ou ter ódio. Sei que
amar é mais lento e a urgência me consome. Cobre minha fúria com
Teu amor já que também eu sei que minha ira é apenas não amar.
Minha ira é arcar com a intolerável responsabilidade de não ser
uma erva. Sou uma erva que se sente onipotente e se assusta. Tira de
mim a falsa onipotência destruidora. Faz com que neste instante de
escolha eu entenda que aquele que fere está no mesmo pecado que eu:
no orgulho que leva à ira e portanto ele fere assim como estou
querendo ferir só porque não acredita. Só porque não confia. Só
porque se sente um rei espoliado. Ajuda aos que sofrem de ira porque
eles estão apenas precisando se entregar a Ti. Mas como Tua grandeza
me é incompreensível faz com que Tu te apresentes a mim sob uma
forma que eu entenda: sob a forma do pai ou da mãe, do amigo, do
irmão, da amante, do filho. Ira, transforma-te em mim em perdão já
que és o sofrimento de não amar.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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