terça-feira, 28 de novembro de 2023

Casas de papel


A maré trazia vitórias e batalhas, de forma que a estreia de Penélope na vida da cidade grande poderia ser resumida a um estado de constante desamparo e encantamento.
Havia uma imensa gratidão pelas portas abertas.
Também um medo da novidade, do calor.
E, claro, a culpa:
Cem anos que ele jamais viveria.
Tão egoísta, tão insensível era partir.

***

Era novembro quando ela chegou, e, embora normalmente não fosse a época mais quente do ano, vez ou outra uma semana vinha lembrar que o verão se aproximava. Se havia um momento ruim para chegar, era aquele: um mapa meteorológico binário de calor, umidade, calor. Até os moradores pareciam estar sofrendo.
Como se não bastasse, ela era claramente uma intrusa. O quarto dela no acampamento na verdade pertencia a um esquadrão de baratas, e, minha nossa, ela nunca tinha visto criaturas tão aterrorizantes. Tão grandes! Além de incansáveis. Lutavam dia após dia pelo território.
Não é de se admirar que sua primeira aquisição no país tenha sido uma lata de Baygon. E um par de chinelos.
Para todos os efeitos, ela viu que neste lugar se chegava longe com um calçado vagabundo e umas latinhas de um bom inseticida. Assim ela seguiu em frente. Dias. Noites. Semanas.

***

O acampamento ficava incrustado na malha indomável e desornada que eram os subúrbios.
Ali lhe ensinaram, do zero, a falar o idioma. Às vezes ela dava uma volta pelas redondezas, pelas fileiras de casas peculiares — cada uma instalada no meio de um gramado enorme e aparado. Pareciam feitas de papel.

Quando perguntou sobre elas para um professor de inglês, desenhando uma casa e apontando para o papel, ele caiu na gargalhada.
Eu sei, eu sei! — Mas logo explicou a ela. — Não, não é papel. É fibro. Fibrocimento.
Ela repetiu devagar.
Isso.

***

Outro detalhe do acampamento, com seus pequenos aposentos, é que lembrava muito a cidade; esparramava-se, mesmo em um espaço tão apertado.
Havia pessoas de todas as cores.
De todas as palavras.
Havia os orgulhosos de nariz empinado e os delinquentes fracassados da pior espécie. Havia também as pessoas que sorriam o tempo todo, para manter as inseguranças resguardadas. Mas o que todos tinham em comum é que pareciam gravitar, em graus variados, em torno de pessoas da mesma nacionalidade. O país de origem falava mais alto que quase tudo, e era assim que as pessoas se conectavam.
Penélope chegou a encontrar conterrâneos, inclusive da mesma cidade que ela. Geralmente, eram muito gentis, mas estavam em família — e o sangue falava ainda mais alto que o país de origem.
De vez em quando, ela era convidada para um aniversário ou uma celebração de onomástico — ou mesmo para uma reuniãozinha com wódka e pierogi, barszcz e bigos —, mas era estranho, porque ela sempre ia embora cedo. O cheiro daquela comida no ar sufocante estava tão deslocado ali quanto ela.
Mas no fundo não era isso que a incomodava.
Não, o que mais a afligia era ver e ouvir homens e mulheres se levantando e pigarreando para mais uma interpretação de “Sto Lat”. Cantavam para a terra natal como se cantassem para a terra dos sonhos — como se não houvesse razões para deixá-la. Clamavam por amigos e familiares, como se as palavras pudessem trazê-los.

***

Mas, como eu contei, outros momentos eram gratificantes — o Réveillon, por exemplo, quando ela caminhou pelo acampamento à meia-noite.
Em algum lugar não muito longe soltaram fogos; dava para ver em meio aos prédios. Havia grandes plumas de vermelho e verde no ar, pessoas gritando felicitações, e ela parou para ver.
Sorriu.
Observou o movimento das luzes no céu e se sentou na rua pedregosa. Penélope abraçou o próprio corpo e se balançou, só um pouquinho. Piękne, pensou, é lindo, e era ali que ela viveria. Aquela ideia a fez fechar os olhos com força e falar com o chão fervilhante.
Wstań. — E de novo. — Wstań, wstań.
Levante-se.
Mas Penélope não se mexeu.
Ainda não.
Logo mais.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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