A
maré trazia vitórias e batalhas, de forma que a estreia de Penélope
na vida da cidade grande poderia ser resumida a um estado de
constante desamparo e encantamento.
Havia
uma imensa gratidão pelas portas abertas.
Também
um medo da novidade, do calor.
E,
claro, a culpa:
Cem
anos que ele jamais viveria.
Tão
egoísta, tão insensível era partir.
***
Era
novembro quando ela chegou, e, embora normalmente não fosse a época
mais quente do ano, vez ou outra uma semana vinha lembrar que o verão
se aproximava. Se havia um momento ruim para chegar, era aquele: um
mapa meteorológico binário de calor, umidade, calor. Até os
moradores pareciam estar sofrendo.
Como
se não bastasse, ela era claramente uma intrusa. O quarto dela no
acampamento na verdade pertencia a um esquadrão de baratas, e, minha
nossa, ela nunca tinha visto criaturas tão aterrorizantes. Tão
grandes! Além de incansáveis. Lutavam dia após dia pelo
território.
Não
é de se admirar que sua primeira aquisição no país tenha sido uma
lata de Baygon. E um par de chinelos.
Para
todos os efeitos, ela viu que neste lugar se chegava longe com um
calçado vagabundo e umas latinhas de um bom inseticida. Assim ela
seguiu em frente. Dias. Noites. Semanas.
***
O
acampamento ficava incrustado na malha indomável e desornada que
eram os subúrbios.
Ali
lhe ensinaram, do zero, a falar o idioma. Às vezes ela dava uma
volta pelas redondezas, pelas fileiras de casas peculiares — cada
uma instalada no meio de um gramado enorme e aparado. Pareciam feitas
de papel.
Quando
perguntou sobre elas para um professor de inglês, desenhando uma
casa e apontando para o papel, ele caiu na gargalhada.
— Eu
sei, eu sei! — Mas logo explicou a ela. — Não, não é papel. É
fibro. Fibrocimento.
Ela
repetiu devagar.
— Isso.
***
Outro
detalhe do acampamento, com seus pequenos aposentos, é que lembrava
muito a cidade; esparramava-se, mesmo em um espaço tão apertado.
Havia
pessoas de todas as cores.
De
todas as palavras.
Havia
os orgulhosos de nariz empinado e os delinquentes fracassados da pior
espécie. Havia também as pessoas que sorriam o tempo todo, para
manter as inseguranças resguardadas. Mas o que todos tinham em comum
é que pareciam gravitar, em graus variados, em torno de pessoas da
mesma nacionalidade. O país de origem falava mais alto que quase
tudo, e era assim que as pessoas se conectavam.
Penélope
chegou a encontrar conterrâneos, inclusive da mesma cidade que ela.
Geralmente, eram muito gentis, mas estavam em família — e o sangue
falava ainda mais alto que o país de origem.
De
vez em quando, ela era convidada para um aniversário ou uma
celebração de onomástico — ou mesmo para uma reuniãozinha com
wódka e pierogi, barszcz e bigos —, mas era estranho, porque ela
sempre ia embora cedo. O cheiro daquela comida no ar sufocante estava
tão deslocado ali quanto ela.
Mas
no fundo não era isso que a incomodava.
Não,
o que mais a afligia era ver e ouvir homens e mulheres se levantando
e pigarreando para mais uma interpretação de “Sto Lat”.
Cantavam para a terra natal como se cantassem para a terra dos sonhos
— como se não houvesse razões para deixá-la. Clamavam por amigos
e familiares, como se as palavras pudessem trazê-los.
***
Mas,
como eu contei, outros momentos eram gratificantes — o Réveillon,
por exemplo, quando ela caminhou pelo acampamento à meia-noite.
Em
algum lugar não muito longe soltaram fogos; dava para ver em meio
aos prédios. Havia grandes plumas de vermelho e verde no ar, pessoas
gritando felicitações, e ela parou para ver.
Sorriu.
Observou
o movimento das luzes no céu e se sentou na rua pedregosa. Penélope
abraçou o próprio corpo e se balançou, só um pouquinho. Piękne,
pensou, é lindo, e era ali que ela viveria. Aquela ideia a fez
fechar os olhos com força e falar com o chão fervilhante.
— Wstań.
— E de novo. — Wstań, wstań.
Levante-se.
Mas
Penélope não se mexeu.
Ainda
não.
Logo
mais.
Markus Zusak, in O construtor de pontes
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